Manhã nublada em Lisboa na segunda-feira, 19 de dezembro. O grande assunto de toda a mídia é a crise financeira europeia. Ganha fácil dos espaços dedicados à final do campeonato mundial de clubes, decidido domingo (18) no Japão, quando o Barcelona aplicou no Santos a maior goleada dos últimos cinquenta anos em decisões do famoso torneio. O último recordista tinha sido justamente o Santos que, em Lisboa, no segundo jogo, goleara o Benfica por 5 x 2, no longínquo 11 de outubro de 1962, diante de 73.000 pessoas, depois de ter imposto 3 x 2 no Rio, no Maracanã, em 19 de setembro daquele mesmo ano.
Os políticos portugueses reclamam das pressões de Angela Merkel para os planos de austeridade que ela quer ver implementados – como já exigidos e obtidos dos governos da Grécia e da Itália –, mas alguns deles têm a sinceridade de reconhecer que sentem culpa pela dívida. O dinheiro, afinal, não foi bem empregado. Ou, como me explicou um garçom: você era convidado a tomar um empréstimo para reformar a casa, o banco lhe oferecia dinheiro também para um carro novo, para coisas de que você não estava precisando.
O dinheiro veio em sua maior parte da Alemanha e em alemão culpa e dívida têm étimos comuns. Culpa é Schuld. Dívida é Schulden. Parecidíssimas! Como se vê, a etimologia pode servir de viés interessantíssimo para fixar a viagem das palavras, suas escalas e significados de domínio conexo.
Escrevo esta coluna ouvindo Amália Rodrigues cantar: “Há sempre uma candeia/ Dentro da própria desgraça/ Há sempre alguém que semeia/ Canções no vento que passa./ Mesmo na noite mais triste/ Em tempo de servidão/ Há sempre alguém que resiste/ Há sempre alguém que diz não.”
Fados são proféticos
Foram os políticos que colocaram a Europa nessa desordem financeira que ameaça o mundo inteiro. Vai sobrar para o Brasil, não tenhamos dúvidas. Os jornais portugueses já dão pequenas notas em que a presidente Dilma Rousseff está preocupada com os efeitos da crise sobre o sistema brasileiro de proteção social, isto é, as numerosas bolsas disso e daquilo, começadas na Era FHC, cujo principal resultado foi garantir a reeleição de Lula e depois a eleição dela.
Jorram palavras sobre a crise em toda a mídia. Nos jornais, nas revistas, nos blogues, na televisão, no rádio etc. o assunto é sempre o mesmo: como é que poucas famílias, nas mãos das quais está o dinheiro de toda a Europa, podem ter o direito de prejudicar desse modo todas as outras famílias? Este foi o grande mote do discurso do primeiro-ministro inglês. Em Portugal, um deputado propôs marimbar a dívida.
Marimbar? Marimbo é um jogo de cartas, marimbar é dar o calote, trapacear, numa palavra alterar o velho dito: “Devo, não nego, pago quando puder”, para “Devo, nego, não pago.” Ele assegura que as pernas dos banqueiros já tremem diante da possível ameaça dos devedores. “É mais uma jota” essa bravata, disse um economista. Jota é ninharia. É a menor letra do alfabeto hebraico, um resquício da presença dos judeus em Portugal.
No almoço, alheira com migas de couve assada, farinha, torresmo. Pão, carne de caça, muito alho no tempero, daí o nome: alheira. E, claro, vinho. Nem o tema da dívida pode desmanchar as verdadeiras alegrias. Um psicanalista escreve que a principal arma do credor é a culpa do devedor.
Estou com certeza numa casa portuguesa. “Pão e vinho sobre a mesa. Fica bem essa franqueza, a alegria da pobreza.”
À noite tenho ido ouvir fados. Os fados são proféticos. Lembram o maktub (estava escrito) dos árabes. Pois este texto estava escrito. Eu apenas o tirei de dentro de mim. Michelangelo disse que suas estátuas já estavam dentro do mármore, ele apenas as tirava de lá. Mas não fazia uma estátua por semana…
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[Deonísio da Silva é escritor, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, professor e um dos vice-reitores da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, autor de A Placenta e o Caixão, Avante, Soldados: Para Trás e Contos Reunidos (Editora LeYa)]