Em 1969, quando entrei para a Faculdade de Comunicação da Universidade Federal Fluminense, em Niterói (RJ), sob a égide recente do AI-5, fui buscar ordenar o que já tinha de sobra: o gosto pela informação, principalmente a escrita, mas sabia que algo mais profundo, de cunho científico, devia estar por trás da missão de se fazer entender.
Ao mesmo tempo, o Brasil daqueles dias me fazia questionar tudo, duvidar de tudo, desconfiar de cada professor, e ser criteriosa na escolha dos novos amigos de profissão. Diria hoje que ‘me dei bem’ porque tive a sorte de encontrar gente responsável, sintonizada com as ânsias de um país oprimido. Aí, começou a novela. Até este ano, segundo a lei, quem exercesse a profissão poderia requerer ao Ministério do Trabalho seu registro profissional, sem precisar correr atrás do diploma. Esbarrei com dezenas, depois centenas, de ótimos profissionais da área, seja em redação, rádio, televisão, diagramação e fotografia, que eram advogados de origem ou tinham estudado Filosofia, Letras, cursos técnicos – lembro-me de um ex-médico que virou jornalista por vocação – e tantos outros. Não há como desmerecer esse contingente que esbanja gosto pelas palavras e respeito pelo seu conteúdo.
Informação direcionada
Mas nossa turma vitoriosa, diria eu, depois de um ano estudando Português, Inglês, Geografia, História etc., uniu-se em peregrinação para buscar profissionais capazes de nos passar os segredos da ciência da comunicação, emergente nas teorias das universidades européias e americanas, e, literalmente, em comissão, convencemos figuras do porte de Nilson Lage, Escobar, Muniz Sodré, entre muitos, a atravessar a Baía de Guanabara, de barca, e ir, nas noites cariocas, nos despertar o gosto pela pesquisa direcionada.
Assim, eles nos abriram os olhos e as almas para uma verdade absolutamente moderna, elevando-nos à categoria dos novos jornalistas conscientes do mecanismo programável de se formar opinião pública com o teor aparentemente mágico e inconseqüente da manipulação dos barões da notícia, dos donos dos veículos, da força avassaladora da publicidade, do domínio crescente dos grupos e redes de comunicação que se formavam não só no Brasil, mas em todo os cantos do mundo, dos quais, as massas não teriam como escapar, exercendo quase o papel de rebanhos de gado conduzido a idéias massificadas trabalhadas nos porões das fábricas de notícias.
Saímos da universidade, em 1973, com esse novo estigma. Éramos uma das primeiras turmas de jornalistas formados por uma faculdade de Comunicação Social. Enfrentaríamos o corporativismo dos patrões, e ainda, encararíamos o preconceito de muitos profissionais românticos que se julgavam onipotentes da arte de informar, pouco se auto-identificando com a dureza de fazer o papel de disseminadores das propostas dominantes pelo mercado da comunicação. Sim, trazíamos a reflexão da universidade, que nos ateou o fogo do conhecimento instigador. Entramos no jogo para valer. Minha geração constitui-se de companheiros que, em sua maioria, briga por um lugar ao sol e defende os cursos formadores de profissionais gabaritados não em técnicas profissionalizantes, para serem operários das fábricas de informação direcionada, mas, sim, atores conscientes no teatro produzido para entreter ou anestesiar a opinião pública inconsciente.
Comandantes de cabeças
Quando, em 1975, concomitantemente com o exercício profissional, cursando também na UFRJ o mestrado em Comunicação, comecei a lecionar em universidade, pude sentir, na pele e na alma, a importância de despertar na meninada exatamente isso, a consciência do processo todo.
Costumava contar a piadinha na primeira aula sobre o ‘bom’ jornalista aos olhos do mercado, que no seu primeiro dia de trabalho, ao ser cobrado por uma reportagem sobre Jesus Cristo, perguntou ao chefe: ‘Escrevo contra ou a favor?’ Com essa figuração grotesca, eu tentei sempre desmistificar, na garotada, de saída, a idéia adolescente de que o jornalista é um pequeno ‘deus da palavra’, por ser ele, na engrenagem insólita do quadro informativo industrial, tão somente um operário a serviço dos interesses dos fabricantes, na verdade.
A indústria deseja operários qualificados, mas não os deseja questionadores do processo cruel, que sejam capazes de modificar o produto que serve não só aos fabricantes, mas aos patrocinadores, que podem estar nos poderes aliados à mídia, certamente, na seara do domínio político ou no feudo dos que se julgam eternos comandantes das cabeças alheias.
Rebanhos aos pastos
Na área pública, trabalhei como assessora de comunicação, nas áreas da municipalidade carioca, como urbanismo, educação e saúde, além do gabinete. do prefeito, também atendi a Câmara Municipal, o Tribunal Regional Eleitoral e a Mútua dos Magistrados, mas considerei sempre a importância da formação acadêmica para a percepção do trabalho responsável de divulgar o setor público entre os veículos em geral. Respeito as opiniões contrárias, mas me cabe defender o diploma, por considerações que considero pertinentes.
Extinguir a necessidade do diploma de bacharel em Comunicação Social, especialidade em Jornalismo, não chega a ser uma novidade, pois sabemos que em muitos países ele não é exigido. Mas, nesses lugares de referência, geralmente, os poderes são exercidos em condições culturais em que as pessoas conseguem viver a liberdade de escolha dos seus canais de televisão, têm poder aquisitivo para ler um leque de mídia impressa, cujas manchetes não camuflam pendores ideológicos, e mostram a cara, não escondem os interesses, são o que são, em regimes abertos, claros, com leitores e espectadores de nível de escolaridade suficiente para decisão avaliada. Mas, aqui, senhores, me vejo no meio de uma novela cujo ibope aponta para a mudança do próximo capítulo de acordo com o índice de vendagem do principal anunciante.
Em horário nobre, preciso dizer aos meus dois sobrinhos, de 20 e 21 anos, que estão cursando atualmente Jornalismo, a quem recentemente ajudei em pesquisa sobre McLuhan, que não se preocupem com a reflexão, mas que dominem apenas as técnicas para que sejam ‘operários’ com padrão de qualidade a serviço dos ditames das grandes redes, porque o que importa mesmo, parece, não é o crescimento do nível de informação dos públicos, mas sim, a condução dos rebanhos aos pastos onde ruminem suas vidas sem incomodar o nível de lucro dos ‘criadores’ desse alimento enlatado chamado ‘comunicação’. Que se preparem para serem os melhores serviçais dos reis do gado do jornalismo.
Quanto ao meu diploma, em pergaminho, vou emoldurar e expor, porque será elevado à categoria de peça de museu, finalmente.
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Assessora de imprensa da Serla-RJ, 57 anos, jornalista e professora universitária, Rio de Janeiro