Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Muito barulho, pouca informação

A operação policial que ganhou espaço na mídia nos últimos dias, e que revela a penetração dos chefões do jogo do bicho na complexa estrutura do crime organizado, denuncia também a crônica incapacidade da imprensa brasileira de desvendar as conexões entre o sistema do crime e o sistema da corrupção envolvendo agentes públicos de variados escalões.

O ponto de partida das reportagens foi a ação espetaculosa da polícia do Rio, que em uma operação planejada em conjunto com o Ministério Público estadual prendeu dezenas de acusados em processos por crimes financeiros originados na contravenção.

O resultado da ação policial ganhou manchetes, mas deixou de fora os principais chefões do esquema, os mesmos que periodicamente, alguns há décadas, frequentam as crônicas policiais.

Aquilo que o Globo chamou, há uma semana, de “um duro golpe” na contravenção, acaba se revelando, afinal, apenas mais uma estocada sem grandes efeitos no sistema do crime.

Dinheiro sujo

Ao fixar seu olhar no mundo mais ou menos exótico do jogo do bicho, que já foi glamurizado pela própria mídia em novelas da televisão e costuma ainda ser transplantado para o jornalismo de amenidades no período do carnaval, a imprensa omite do público as graves conexões entre a folclórica contravenção e o mundo dos grandes golpes financeiros, do narcotráfico e da corrupção.

Muito além da ação degenerativa que o poder dos contraventores sempre produziu nas autoridades policiais, falta ao noticiário se aprofundar na análise dos sistemas de lavagem de dinheiro que são comuns ao jogo do bicho, ao narcotráfico, aos grandes estelionatos e ao crime financeiro, ligado ou não a agentes públicos corruptos.

Como a chamada grande imprensa colocou sob suspeição os documentos e as revelações feitas pelo jornalista Amaury Ribeiro Jr. no livro A privataria tucana, esforçando-se para desqualificar seu trabalho, perdeu-se uma nova e excelente oportunidade para fazer a radiografia do sistema financeiro que permite lavar o dinheiro do crime, seja aquele dinheiro recolhido aos miúdos em quiosques mais ou menos clandestinos pelos chamados apontadores, sejam aqueles volumes grandiosos desviados dos cofres municipais, estaduais e federal pela evasão fiscal e pela corrupção.

Os arquivos de computadores apreendidos nas casas dos chefões do jogo do bicho no Rio, semana passada, devem conter planilhas e programas comuns a todos esses crimes, uma vez que a função desses aplicativos é fazer circular o dinheiro através dos filtros mais ou menos conhecidos que permitem transformar dinheiro sujo em patrimônio mais ou menos legal.

Manchado de sangue

O noticiário sobre o crime comum costuma se mesclar com os escândalos sobre casos de corrupção e grandes golpes financeiros no ponto em que todos os protagonistas precisam processar o dinheiro nas lavanderias internacionais para poderem se beneficiar de suas atividades ilegais.

Em geral, o trabalho da imprensa costuma travar a partir do momento em que se torna essencial analisar as conexões entre o crime e o sistema financeiro internacional. A falta de percepção ou de interesse em vasculhar esse território obscuro se revela, por exemplo, no fato de que os jornalistas, de modo geral, engolem como válido um ranking internacional sobre percepção da corrupção em diversos países no qual a Suíça aparece brilhando entre as nações mais honestas do mundo, quando se sabe que a extrema liberdade para o fluxo de dinheiro nos bancos daquele país é que faz a alegria de criminosos do mundo inteiro.

Esse é o esquema que dá segurança a fortunas feitas pela corrupção, que retornam aos locais de origem para refinanciar grupos políticos em várias partes do mundo.

Da mesma forma, é nos chamados paraísos fiscais que engordam as riquezas processadas nas chamadas lavanderias financeiras internacionais e cuja origem pode ser a escravização de uma nação africana, o contrabando de armas que produzem genocídios, e mesmo ações de terroristas que, no fim das contas, vão colocar sob risco o próprio sistema financeiro.

Durante a cobertura mais intensa da chamada “primavera árabe”, a imprensa deu grande destaque às fortuna acumuladas fora de seus países por tiranos e seus familiares. Mas raramente se produz a reportagem essencial que conta como esse dinheiro manchado de sangue se transforma em milionárias propriedades na Europa, em coleções de diamantes guardados nos cofres de grandes bancos e em participações em empresas da economia formal.

Sem esse aprofundamento, todo o noticiário sobre crimes de colarinho branco e casos de corrupção reais ou inventados e sobre o combate ao narcotráfico ou à contravenção é apenas entretenimento.