Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Tragédia aérea, escândalo político, jornalismo complacente

A cada novo dia, nova prova: o governo, por intermédio do ministro da Defesa, enganou a nação brasileira ao longo de dois meses. A maior tragédia aérea brasileira está acoplada a um escândalo político de grandes proporções. Com a cumplicidade de grande parte da mídia que, mais uma vez, veiculou acusações infundadas emitidas por autoridades sonsas e/ou irresponsáveis.


Waldir Pires é um político honrado, corajoso, dono de uma biografia impoluta. Isso não o livra da constatação de que conduziu a apuração das causas da colisão do Boeing da Gol com o jato Legacy de forma, no mínimo, leviana. Mas é preciso que se diga que não o fez em benefício próprio. Sua intenção era favorecer o governo. Ou o partido do governo. Se no intervalo entre o primeiro e o segundo turno eleitoral se evidenciassem os fatos que agora começam a aparecer, o governo sairia muito chamuscado do pleito.


Waldir Pires politizou a tragédia desde o primeiro momento. E agora está pagando por isso. Os pilotos do Legacy eram americanos, logo eram liminarmente culpados – estavam na altitude errada, desligaram o transponder, não obedeceram às regras. O jornalista do New York Times que voava no Legacy declarou logo nos primeiros dias que há ‘pontos cegos’ no espaço aéreo da Amazônia. O ministro Waldir Pires caiu de pau nele. Quando apareceram informações sobre o abalo emocional dos controladores que estavam na torre de Brasília na hora da tragédia, o ministro desmentiu. Com mentiras. Quando a categoria dos controladores resolveu agir e iniciar uma operação padrão para chamar a atenção da sociedade, o ministro fez pouco caso, declarou que não havia atrasos nos vôos, estava tudo normal nos aeroportos brasileiros. Mentiu novamente.


No Senado, o ministro Pires voltou atrás, admitiu tudo o que havia contestado. Na segunda-feira (4/12), depois das denúncias do Fantástico sobre o estado do equipamento de controle, o ministro enrolou, enrolou e acabou declarando que mandaria apurar. Waldir Pires contou mais lorotas nos últimos 60 dias do que o Barão de Munchausen em toda a sua vida.


Rabo entre as pernas


E a maior parte da mídia repetiu o seu vergonhoso desempenho no caso Escola Base. Reproduziu acusações sem investigar, acreditou em leviandades, abdicou do dever de fiscalizar o poder público, esqueceu que lhe competia buscar a verdade e ajudar a justiça. Este Observatório da Imprensa não dormiu no ponto: chamou a atenção para a semelhança com o caso da Escola Base na sua edição radiofônica de 5/10/2006 [‘Os culpados da tragédia do vôo 1907’, leia aqui o texto e ouça aqui o áudio].


Na grande imprensa a voz dissonante foi a da Folha de S.Paulo, e no jornalão quem se destacou foi a articulista Eliane Cantanhêde, que iniciou a desmonte da lorotagem na sua coluna política e depois em reportagens arrasadoras. Mesmo assim, os demais jornais mantiveram-se impassíveis e sonolentos. Não era com eles.


Nove semanas depois da catástrofe aérea, a revista Época mostrou para que servem as revistas semanais – completar o trabalho dos diários, investigar em profundidade. A entrevista com os dois controladores da torre da Brasília, ainda que mantidos em rigoroso anonimato, derrubou o castelo de areia inventado pelo governo.


Não fosse a edição do sábado (2/12) do Jornal Nacional e o Fantástico do dia seguinte, poder-se-ia dizer que a Rede Globo ficou com o rabo entre as pernas ao longo do período. Intimidou-se com a guerrilha antimídia iniciada pelo governo e continuada pelos críticos de mídia chapa-branca. E reproduziu sem piar, ao longo de 60 dias, as destrambelhadas intervenções do ministro da Defesa.


Dia fatídico


Essas revelações sobre as verdadeiras causas do desastre serviram para desmascarar os afiadíssimos neocríticos da mídia, blogueiros, bloguistas ou meros linchadores. Empolgados com a tarefa de comprovar que a grande mídia deu mais atenção às fotos da dinheirama do Dossiê Vedoin do que ao noticiário da tragédia, esqueceram-se da tragédia propriamente dita. Não se comoveram com as 154 mortes, não se tocaram com a dor das famílias, não se indignaram com a incúria das autoridades nem com as mentiras para encobri-la. Esta gente leva a sério a missão de mostrar que o poderoso governo federal é uma indefesa vítima da imprensa.


A tragédia-escândalo de 29 de setembro serviu também para desmontar uma simplificação que tanto agrada aos totalitários: a mídia brasileira, embora perigosamente concentrada, não é homogênea, segue caminhos e vocações diferentes.


O instinto jornalístico da Folha não é igual ao do Estado de S.Paulo, também o de Época se comparado com Veja, IstoÉ e CartaCapital. Mídia não é entidade, é a designação para um coletivo. A Rede Globo custou a acordar, mas a Band, a Record e o SBT continuam ressonando.


Também temos um dia fatídico em setembro: o americano é 11-S, o nosso é 29-S. Ainda vai assombrar muita gente.