Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A cultura muito mais que digital

Termo novo e amplo, o conceito de cultura digital capta e reflete praticamente todas as transformações características da Sociedade da Informação. Estrutura-se e se dissemina em redes, ganha potência com os instrumentos tecnológicos, abre espaço para a colaboração e estimula a interlocução direta entre todos os atores da cadeia de produção de bens culturais – sejam obras materiais ou patrimônios imateriais. “A cultura digital é uma transversalidade”, explica o ativista Rodrigo Savazoni, um dos organizadores do Festival de Cultura Digital, realizado em dezembro, no Rio de Janeiro.

Nesta entrevista, Savazoni traça um panorama das iniciativas de cultura digital no Brasil e chama atenção para o vigor do movimento, que sofre um baque com as mudanças de rumo do Ministério da Cultura: “É um movimento sólido, enraizado nas comunidades. Mesmo com o retrocesso no MinC, muitas iniciativas de cultura digital estão estruturadas para enfrentar qualquer situação, até porque as pessoas fazem porque amam, porque acreditam.”

“Não é uma linguagem nova… É uma transversalidade”

O que é cultura digital? Que conceitos estão embutidos nessa nova e ampla concepção?

Rodrigo Savazoni– Definir o que pertence à cultura digital é um grande desafio porque existe um debate em torno desse conceito. Cultura digital também é cultura colaborativa, cultura de redes, cibercultura… Há vários termos, diferentes autores, diversos agentes pensando essa temática. Gosto de usar cultura digital porque essa expressão se difundiu bastante nos últimos anos e consegue agregar algo que começa a se tornar mais claro para as pessoas, ainda que seja difícil entender exatamente. Para tentar explicar, faço a recuperação histórica de uma cultura que emerge a partir de dois elementos centrais. Um, o desenvolvimento da microinformática, na passagem dos anos 1960 para 1970, quando o computador deixa de ser um equipamento científico, de calcular dados, e se torna um objeto funcional, utilizado pelas pessoas em geral. Outro momento fundamental é o surgimento da internet. E aí temos três etapas. As primeiras conexões, em 1960, com o uso acadêmico da rede. A difusão gradativa dos ambientes, ainda não gráficos, nos anos 1980. E por fim outra revolução, que é o surgimento da web, no início dos anos 1990. Então, há uma cultura precedente, que contribuiu para esse processo, que sonhou com essas possibilidades e buscou realizá-las. Estou falando de uma cultura que passa a se desenvolver a partir do momento que essas tecnologias entram nas nossas vidas, transformando várias dimensões do viver. A política, a sociedade…

Você quer dizer que a cultura digital não se resume a uma modalidade de arte?

R.S.– Exatamente. A cultura tem várias dimensões. Existe naquilo que tradicionalmente ficou conhecido como cultura – as artes reconhecidas, a literatura, a música, a pintura, o patrimônio edificado, entre outras. Mas há outras formas de cultura – os patrimônios imateriais, as relações entre as pessoas, as tecnologias e técnicas desenvolvidas pelos humanos. A digitalização incide sobre tudo isso. Portanto, a cultura digital não é um “setor a mais” no campo cultural. Não é uma linguagem nova, por exemplo… É uma transversalidade.

“A rede permite o reconhecimento da cultura pelo mundo”

Você pode dar um exemplo concreto de como o fator digital transforma os padrões de cultura?

R.S.– Com o digital, nós saímos de uma cultura baseada no modelo de um para muitos, que é a cultura mainstream do século 20, com intermediários detentores de poderio econômico, que desenvolvem uma indústria de propriedade intelectual, a construção de conglomerados midiáticos, que colonizam a cultura. Tudo isso sofre uma reversão com o digital. Passa-se a ter uma cultura emergente, que se descreve de baixo para cima, de muitos para muitos, trazendo consigo uma potência de diversidade. A cultura digital remove os antigos intermediários e cria espaço tanto para o surgimento de novos intermediários quanto para uma “desintermediação”, em que as pessoas agem diretamente umas com as outras em seus processos de culturais, políticos, econômicos, sociais.

Também estimula as expressões culturais locais, de comunidades ou grupos sociais?

R.S.– Não acredito que a cultura digital, em si, faça com que as expressões locais se manifestem. É preciso um conjunto de fatores para que essas expressões se manifestem. Mas a rede potencializa as manifestações que surgem. Por exemplo: uma comunidade quilombola, que tem uma cultura ancestral, de caráter agrário, baseada nas relações comunitárias entre famílias. Essa cultura persistiu e sobreviveu por um século nesse contexto. A rede permite o reconhecimento dessa cultura pelo mundo. E a possibilidade de uma troca e antes impossível. Se a comunidade quilombola vai conseguir fazer essa movimentação vai depender de um conjunto de fatores. Não basta simplesmente ter acesso à rede. Há o processo de apropriação tecnológica, o trabalho de formação, de abertura dessas comunidades para lidar com as ferramentas da tecnologia.

“No Brasil, nós remixamos desde sempre”

O acesso aos instrumentos tecnológicos não garante o acesso à cultura digital?

R.S.– Essa é uma questão crítica. Hoje, a discussão está fragmentada. De um lado, há o debate sobre infraestrutura, acesso e espaço, onde estão engenheiros, técnicos, pessoal do setor mais clássico da comunicação. Apartadas, do outro lado, estão a educação, a saúde, a cultura, a ciência… dentro de um grande rótulo de “conteúdo”, à espera do que lhes vai ser dado, como meio, para produção e difusão. É como se a gente estivesse fazendo uma obra e discutindo a posição do cano na parede, sem pensar em que tipo de água vai passar… se é água potável ou não… Com o debate centrado na questão estrutural, as coisas ficam dissociadas.

Como o digital altera o jeito de produzir cultura?

R.S.– A cultura digital é de participação, colaborativa, favorece as trocas horizontais, permite que as pessoas ponham a mão na massa, produzam, distribuam o que produzem, criem redes articuladas… Pensando a música, que é a arte mais avançada, que desenvolveu um mercado mais estruturado, como é que os artistas vão lidar com esse universo digital, que modifica completamente as relações de produção, econômicas e políticas no consumo musical? Hoje o fã deixa de ser um consumidor para ser um agente na construção da carreira do artista. Antes, havia os fãs clubes, mas agora o diferente é que os fãs passam a ser elementos ativos. O Teatro Mágico, por exemplo, é uma banda que jamais pagou jabá, jamais passou pelo filtro das grandes gravadoras, e consegue fazer sucesso se articulando em rede. Na distribuição, o modelo é muito parecido. Em alguns casos, você é o seu próprio camelô, e faz uma venda enorme, pode viver do seu trabalho.

Qual a posição do Brasil no mundo da cultura digital em relação a outros países? Dá para dizer que, por ter fortes características de criatividade e colaboração, o brasileiro assimila com mais facilidade essa concepção nova?

R.S.– Do ponto de vista da organização das redes culturais, o Brasil é uma referência global. Países como Espanha, Estados Unidos, Holanda tiveram grandes investimentos em desenvolvimento tecnológico e um significativo crescimento nesse campo. Em diálogo com agentes desses países, percebemos que eles olham para o Brasil como um par. E é verdade que o Brasil tem uma característica, do ponto de vista da relação com os processos tecnológicos, que se revela em inúmeras dimensões da nossa vida. Se nos remetermos à antropofagia, dentro do pensamento oswaldiano [o escritor Oswald de Andrade, autor do Manifesto Antropófago], encontraremos o conceito de que “o que vem de fora não me é estranho”. Quer dizer, eu recebo, reprocesso e devolvo recriado. Isso nada mais é do que a recombinação, o remix, que é a essência dessa cultura participativa, digital. Digamos que, no Brasil, nós remixamos desde sempre. Essa não é uma cultura estranha a nós. Um exemplo prático é o mutirão, aqui é muito forte; outro, a ocupação urbana nas periferias. Arquitetos do mundo todo prestam atenção às favelas brasileiras por conta desses nós caóticos que criam um todo uniforme, outro tipo de urbanidade.

“Modelo coloca em xeque o próprio capitalismo”

Quais são os atores que se destacam, hoje, na cultura digital brasileira?

R.S.– O Brasil tem um padrão de redes culturais que começa a demonstrar o vigor desse movimento político-cultural. O Circuito Fora do Eixo é uma rede desse tipo, que mistura três elementos – a difusão das ideias de conhecimento livre, o software livre e a diversidade cultural. Outra que eu também colocaria dentro desse rol de redes culturais é a rede Metareciclagem porque grande parte das saídas do que os metarecicleiros trabalham são aquilo que em algum momento da nossa história se chamou arte. São híbridos, mas são expressões de linguagem. O Transparência Hacker também é uma rede… Tem a rede do Movimento Enraizados, de hip hop. E muitas outras.

Foram criadas políticas públicas para apoiar essas iniciativas?

R.S.– Grande parte desse processo foi potencializado por oito anos de governo Lula, em que as políticas foram absolutamente indutoras dessas transformações. O do in antropológico do então ministro da Cultura, Gilberto Gil, que consistia em massagear as forças reais da cultura brasileira e articulá-las, foi fundamental. Embora não se tenha colocado muito dinheiro, nem haja políticas estáveis – até porque isso a gente sabe que é trabalho não para um governo, mas para uma vida… Mas é um processo, foi inaugurado, foi definida uma rota que não existia antes dessa gestão. Os Pontos de Cultura, com os kits multimídia, testaram a dimensão do produzir linguagens, conteúdos, sonhos, visões, fábulas associadas à conectividade tecnológica. Esse é um embrião importante de um modelo de política pública que deveria ter sido ampliada, fortalecida. E surpreendentemente foi combatida, enfrentada. Hoje eu diria que está na UTI, esperando o que vai acontecer.

Como ficam os movimentos da cultura digital depois da guinada do novo Ministério da Cultura (MinC), que deu as costas para as iniciativas de cultura livre defendidas pela gestão anterior?

R.S.– As pessoas acreditavam que bastava tirar o indutor do governo e tudo ruiria porque embaixo não existia nada. O atual Ministério da Cultura se surpreendeu ao perceber que esse é um movimento sólido, enraizado nas comunidades. Tem uma força que criou uma crise política, uma das primeiras crises que a presidente Dilma Rousseff enfrentou. Mas, mesmo com o retrocesso no MinC, muitas iniciativas de cultura digital estão estruturadas para enfrentar qualquer situação, até porque as pessoas fazem porque amam, porque acreditam. Essa é uma característica desses movimentos. E o Festival da Cultura Digital mostra isso.

Até porque o MinC é só uma parte de uma grande constelação de forças. Veja, por exemplo, o Ministério das Comunicações se aproximando da cultura digital, a partir da Secretaria de Inclusão Digital. O ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Aloizio Mercadante, que tem interesse em fazer investimentos nesse campo. Há vários grupos debatendo políticas públicas em âmbito estadual e municipal. Santa Catarina está lançando edital nessa área. O Rio de Janeiro acabou de lançar um edital para lan houses… Isso está acontecendo no país inteiro. No Amapá, existe um conselho de cultura que tem uma cadeira para cultura digital. E estou falando do âmbito público, mas existem as formas autônomas de trabalho, em que as próprias redes vão entendendo quais são os circuitos econômicos e começam a trabalhar para ter seus meios de produção em um modelo que coloca em xeque o próprio modelo do capitalismo. Modelos de compartilhamento da estruturas de produção, por exemplo. Para que se possa viver daquilo que se quer viver.

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[Áurea Lopes, de ARede]