Algumas dezenas de meninas anoréxicas morreram este ano. Doença triste que leva meninas lindas, cheias de sucesso, cheias de beleza, cheias de mães de classe-média-alta encantadas com os dólares e euros que suas filhas ganhavam em Paris, Milão, Nova York. Olha que linda a minha filha na capa da Vogue, mostravam elas. Mas ela não está magrinha demais?, rebatia alguma tia ou amiga despeitada. Lógico que não, está linda. É tudo que toda mulher quer, 1m70, 40 quilos, alguns dólares no bolso e olhares de inveja das pobres mortais que suam molhando as suas chapinhas nas academias de bairro.
Oh, meu Deus, ela morreu. Não dava nem para imaginar que estava doente, estava tão bonita. Agora a mãe chora a perda da filha que lhe deu um carro importado e uma casa nova no Guarujá. Só agora percebeu o que qualquer leigo, sem olhar clínico, mas sem olhar cínico, mata numa só olhada: ela estava magra demais. E aí, a discussão está posta. O Jornal Nacional reserva vários minutos diários para discutir o problema. Ouve modelos. Ouve donos de agências. Ouve mães. Houve um monte de hipócritas e mentirosos chorando na TV.
O mais óbvio
E, como sempre, a Globo massifica o tema que é do seu interesse, e pauta toda a imprensa, a mídia nacional. No início da semana seguinte, a Veja estampa na capa: ‘A magreza que mata’. Outras tantas revistas de circulação nacional imprimem manchetes similares, quase que retiradas de reportagens do Jornal Nacional, na esperança de talvez vender meia dúzia de revistas a mais que na semana anterior. Por sinal, a Veja saiu com uma edição fina, pouca publicidade. E uma vendagem um pouco maior nunca cai mal, logicamente.
E assim seguiram as revistas e os jornais locais. As rádios e TVs locais. Os jornais de cada cidade vão ouvir endocrinologistas, modelos-mirins e mães de pretensas-futuras-modelos. Ê midiazinha besta.
Ah, vocês podem ter estranhado o início do parágrafo acima: ‘A Globo massifica tudo o que tem interesse’. Não sacaram? Às vezes as coisas mais óbvias são as mais difíceis de se ver. Ou de se acreditar.
Outras magrezas
Na sua atual novela das 8, um dos temas da trama é uma menina, novinha, lindinha, filha de um casal rico, descobrindo o amor com um clone de Rodrigo Santoro adolescente (tudo bem que a masculinidade e a virilidade do gajo não inspiram confiança), que toca um frondoso piano de cauda na sala da sua cobertura em prédio de luxo. Pois a agraciada menina sofre de bulimia. Uma das partes tão recorrentes quanto ansiadas da novela são as corridas da menina à privada, para vomitar tudo o que come.
E tudo que a Globo queria, neste momento, era uma notícia forte que pudesse jogar esse tema na mídia. Um gancho, no jargão jornalístico. Para a Globo, a morte da modelo internacional filha de classe-média-alta é um bom gancho para remeter o seu público à sua novela. Soa mal. Soa podre. Mas não é a primeira vez, nem será a última (não acredito que falei isso, mas como os jargões salvam a gente, é por isso que gosto tanto da Globo) que a Globo se delicia, como urubu, com a morte. Uma rede necrófila em cadeia nacional.
Quanto à manchete da Veja, ‘A magreza que mata’, no Brasil, não é a da anorexia. É a da desnutrição. É a magreza da fome. É a magreza da falta de comida. É a magreza da falta de educação. É a magreza da falta de informação. É a magreza do monopólio das telecomunicações.
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Jornalista, editor do caderno Municípios do Jornal da Cidade, Aracaju