Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O desafio ante a justa medida

Nos dias 30/11 e 1/12, foi realizado, em Brasília, o II Seminário Internacional de Inteligência, sob a organização da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência). Como a temática da segunda edição foi ‘Estado, Mídia e Terrorismo’, este articulista foi convidado a exercer a função de moderador para o painel de encerramento, sob o título de ‘A informação pós-atentado – responsabilidade da mídia’. A composição da mesa incluía as presenças de Francisco Carlos Teixeira da Silva (doutor em história contemporânea pela UFRJ, e comentarista da Globonews para assuntos internacionais), o jornalista Marcelo Rafael Rech (editor do site InfoRel) e o correspondente do Financial Times na Venezuela, Andrew Webb-Vidal.


Reproduzo, a seguir, o texto com o qual abri os trabalhos do painel, iniciando com uma citação extraída de Noam Chomsky, quando este, em 1/4/2005, proferiu um discurso sobre ‘Mídia e terrorismo’, ao receber o título de doutor honoris causa outorgado pela Universidade de Bolonha:



‘A guerra ao terrorismo é pura propaganda e os meios de comunicação, incluídos os europeus, fazem o jogo dos poderosos, desviando o público das questões realmente importantes.’


O tema-título selecionado para a presente sessão, talvez diferentemente dos painéis que a precederam, induz à compreensão prévia de um subtexto no qual se admita a idéia de a mídia, dependendo de como noticie um atentado, ser capaz de atenuar, ou agravar, as dimensões do fato. Em síntese, o que se está prenunciando é que o impacto maior ou menor de um atentado possa derivar de um modo específico de codificação, seja no âmbito do código verbal, seja na esfera da modelagem audiovisual. Se tal suposição for correta, a aludida ‘responsabilidade da mídia’ ver-se-á, de imediato, comprometida com um processo de ideologização, seja intensificando, seja amenizando.


Como regular, para efeito de codificação, a densidade dramático-existencial e política de um ato terrorista? Ao minimizá-lo, a mídia incorre no sério risco de insinuar uma certa atmosfera de banalização quanto a algo que, em si mesmo, eticamente, é inaceitável e, politicamente, significa grave ameaça à democracia. Por outra, ao destacá-lo, a mídia, tanto contempla os propósitos dos que engendraram a barbárie quanto dissemina, no psiquismo social, inevitável estado de apreensão. Portanto, como se pode deduzir, solução não há, caso fiquemos aprisionados pelo exercício de uma lógica da binaridade.


Tentando, pois, outra angulação crítica para a situação-problema, afigura-se um cenário muito mais amplo e complexo que tanto expõe a mídia quanto inclui o imaginário-receptor numa rede de cumplicidade entre a exposição midiática do terror e certa atração irresistível do público pelo horror. Ao mencionar as duas palavras (terror e horror), parece inevitável que, ao menos por força da curiosidade, se contemple a devida diferença semântica que as duas palavras guardam entre si, com base nos indícios de caráter etimológico. Assim, vale lembrar que a palavra terror está associada a termos como ‘terra’, ‘território’ (e derivações), enquanto a palavra horror se vê unida a vocábulos como ‘homem’ e ‘hora’. A exploração etimológica muito oferece como ilustração: o terror é de caráter ‘espacial’; o horror é de cunho ‘temporal’. Daí que se torna possível a formação da palavra ‘terrorismo’.


Todavia, não é imaginável, em nenhuma língua, o que seria a formação análoga da palavra ‘horrorismo’. Por ser a palavra ‘terror’ ligada ao sentido de ‘espaço’ é que ela se presta à relação entre ‘acontecimento’ e ‘ideologia’. Já a palavra ‘horror’, por ser integrada ao conceito de ‘tempo’, apenas agrega o significado relativo a ‘impacto temporal’, ou seja, o ‘horror’ representa a dimensão da ‘duração subjetiva’, motivada por uma violência exterior. Por conseguinte, entendo que a conexão mídia/terrorismo não se possa desvincular de angulações em torno dessa fronteira entre o terror (gerado pelo ‘outro’) e o horror (vivenciado pelo ‘eu’).


Paisagem alterada


Do teórico Paul Virilio, provém rentável observação, ao sinalizar, no livro A cidade em pânico, o trágico equívoco no qual incorre o mundo moderno, ou seja, a crença de pensarmos a vida sempre como ‘plenitude’, ignorando seu contraponto fundamental: o sentido da ‘finitude’. O problema da mídia é que ela oferece ambos (plenitude = monumento; e finitude = ruína) como ‘produtos indiferenciados’. Assim o faz também por saber que, na esfera da recepção, se encontra ampla platéia disposta para igual consumo indistinto. Igualmente, não podemos ignorar a crescente demanda por informação e imagens, fato incensado pelas novas tecnologias midiáticas. A convivência, quase permanente, com tais suportes de comunicação contribui para esse estado indiferenciado de consumo.


Para a expansão crítica do olhar, portanto, é indispensável erradicar a ingenuidade. Nesse sentido, cabe pontuar que a responsabilidade sugerida para este painel não se limita à mídia e, menos ainda, nela se encerra.


Se é verdade que ‘terrorismo’ é personagem decisiva para o enredo histórico da contemporaneidade, igualmente verdadeiro é o reconhecimento do quanto, desde os primórdios da civilização, o terror é presença permanente. Há muito, o mundo registrou uma lição construída pela razão perversa: o terror e o horror fascinam. Lembremo-nos do imponente templo da crueldade, o Coliseu, no qual 80 mil pessoas, semanalmente, se concentravam para saborearem as atrocidades como espetáculo. De Tibério a Nero, obviamente inclusos, Calígula e Cláudio, longo tempo de carnificinas serviu a um público sedento por sempre mais. De lá para cá, é verdade, a paisagem do mundo, em muito, foi alterada, mas não pôde ser banida a pulsão sádica que seduz o olhar na direção de acontecimentos gerados pela ferocidade destrutiva.


Disfarce do progresso


Por alguma força indomável, o ser humano ainda persegue a trilha da demolição, da corrosão. Sob esse aspecto, a mídia apenas promove a mediação entre os anseios subjetivos do público e os registros objetivos da história. É nessa perspectiva crítica que o pós-ato não pode ser desvinculado de sofisticada rede de pré-atos, cujo patrocínio fica, de um lado, a cargo de um processo voraz de expansão de mercados e, de outro, a saga irresponsável do fanatismo.


Há, na espiral do poder constituído no mundo, um movimento ditado pelo desejo maquínico que parece não demonstrar sinais regressivos, gerando proliferantes bolsões de miséria em escala planetária. O imaginário capitalista não oferece, pelo menos no desenho proposto, soluções alternativas para conter o espraiamento da pobreza, a não ser o confinamento em condições aviltantes, sob o disfarce do progresso e do desenvolvimento gradativos que fazem dos avanços científicos e tecnológicos a maquiagem de um futuro de esplendor. Para tanto, não me custa, uma vez mais, recorrer a Noam Chomsky, quando este sentencia: ‘A população não sabe o que está acontecendo, nem ao menos sabe que não sabe’ (in: Segredos, mentiras e democracia. Brasília, UnB, 1997. p. 14).


Enfim, diante da breve reflexão (ou provocação), fica uma pergunta: com quantos setores e segmentos, a mídia tem de dividir responsabilidade? Aqui, interrompo a reflexão, a fim de dar voz aos expositores convidados. Obrigado.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha – Rio de Janeiro)