Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Qual será o perfil dos futuros jornalistas legislativos?

O Senado Federal se prepara para realizar mais um concurso que irá selecionar profissionais de Comunicação Social. Existe uma vaga para Jornalista e outra para Comunicador Social, em termos gerais. A realização de concurso já é uma praxe do Parlamento e trabalhar em uma das mídias legislativas já virou sonho de consumo de muito profissional de imprensa. Mas nem sempre foi assim. A realidade atual é fruto de uma jornada de 24 anos de enfrentamento de preconceitos e de persistência na defesa intransigente dos paradigmas jornalísticos por parte dos profissionais.

O ano era 1988. O Brasil acabara de promulgar a nova Constituição Federal e o Senado Federal ainda sofria com os ecos desmoralizadores do chamado Trem Dalla que, em 1984, no apagar das luzes da presidência do senador Moacyr Dalla (então PDS – hoje DEM – capixaba), promoveu um trem da alegria empregando sem concurso 1.558 pessoas, a maioria formada por apaniguados políticos, parentes e, principalmente, jornalistas. Foi num cenário como esse que o Senado Federal, sob a administração do senador Humberto Lucena (PMDB-PB) e do diretor-geral jornalista Manoel Vilela Magalhães, decidiu promover o primeiro concurso público para selecionar dez jornalistas para aquela Casa. Era uma ação inédita e preconizava uma revolução no modo de se fazer comunicação institucional no Brasil.

A reação da imprensa, capitaneada pelos jornais Estado de S. Paulo e Gazeta Mercantil, foi imediata e intensa. Acusavam o Senado de desejar implantar um jornalismo “chapa branca” e de querer equipar ainda mais os senadores com profissionais para baratearem suas campanhas eleitorais. Na verdade, o parlamento tentava suprir uma deficiência da imprensa que, com seu modelo econômico de cobertura, desprezava grande parte dos trabalhos legislativos, em especial a ação das comissões temáticas.

Bagagem profissional e acadêmica

Com a iniciativa deles, ali se plantava uma semente que mudaria o curso da divulgação institucional e da cobertura político-parlamentar do jornalismo brasileiro e também da interação cidadão-parlamento. Antes de deixar o cargo, Lucena ainda editou, em 15 de dezembro, a resolução nº 191/1988. Por meio dela, a estrutura de assessoria de imprensa da Comunicação do Senado já abria as portas para o surgimento de uma rádio, de uma televisão, de um jornal e agência e da modernização da Voz do Brasil.

Em 1989, Lucena foi sucedido na presidência da Casa por Nelson Carneiro (PMDB-CE), período em que o concurso foi realizado. As provas tomaram todo o ano de 1989. Não foi um concurso como os atuais, que tudo acaba em um fim de semana. Organizado pela Universidade de Brasília, ele contou inicialmente com uma prova teórica. Dos milhares de inscritos, apenas 170, aproximadamente, passaram desta etapa. Nas etapas seguintes, sobreviveriam apenas aqueles que acertassem mais de 70% dos pontos. Hoje em dia basta à metade.

Ao longo daquele ano, ainda foram aplicados exames de conhecimento da língua portuguesa, de idioma estrangeiro (inglês ou francês), redação e tradução, regimento interno do Senado Federal e do Congresso Nacional, capítulos da Constituição referentes à Comunicação Social e ao funcionamento do Poder Legislativo. Finalmente, já ao final de 1989, uma prova de conhecimentos práticos em jornalismo impresso, televisivo e radiofônico. Deste intenso funil, 36 jornalistas foram selecionados e a classificação final foi definida após a prova de títulos e qualificações, onde a bagagem profissional e acadêmica do candidato contava ponto.

Proposta audaciosa

Na lista final dos aprovados do primeiro concurso do Senado Federal estavam profissionais de conceito indiscutível no mercado. Egressos de periódicos como Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil, Correio Braziliense, das TVs Globo, Manchete e Record, Radiobrás, Editora Abril, da área acadêmico universitária. Quem tinha menos bagagem profissional tinha, pelo menos, uns 12 anos de profissão. Muitos exerciam função de destaque em suas mídias como editores, chefes de reportagem, repórteres especiais, coordenadores de Comunicação Social – até diretor de Jornalismo tinha. Todos apostavam numa maneira diferente de fazer jornalismo.

Nem por isso a imprensa comercial amainou suas críticas. Jornalistas foram sumariamente demitidos de seus empregos pelo simples fato de se terem inscrito no concurso. Um cotidiano paulista chegou a publicar a lista final dos aprovados na coluna de obituário, com se desejasse dizer que aqueles haviam morrido para a profissão. Por dois anos, a pressão teve resultado e nenhum dos aprovados foi chamado a tomar posse. Metade do prazo de validade do concurso já havia se esvaído.

Diante de uma postura de refém da imprensa do Senado Federal, os aprovados e não nomeados no concurso decidiram elaborar um plano de comunicação para a Casa. Era uma proposta audaciosa, porém simples, diante da estrutura atual. Concebia uma mudança na Voz do Brasil, introduzindo reportagens e acabando com o teor laudatório do programa; substituir os inúteis press releases por um serviço de agência de notícias impressa; um sistema informatizado de boletins radiofônicos; implantar uma rádio e uma televisão de circuito fechado; e criar a Central de Vídeo para distribuir imagens às emissoras de todo o Brasil.

Jornalismo cidadão

O projeto de comunicação estava pronto e com o retorno à presidência do Senado Federal de Humberto Lucena, pouco a pouco todos os aprovados foram convocados e tomaram posse. O projeto começava a ganhar contornos concretos. O primeiro grande desafio desta equipe foi, com auxílio do CPCE da Universidade de Brasília, documentar e cobrir as CPIs que culminaram com o impeachment do presidente Collor. Ali estava a grande oportunidade de demonstrar que aquele grupo de profissionais não visava fazer o “jornalismo chapa branca” do qual fora acusado antes mesmo de tomar posse.

Em 1993, já com Itamar Franco presidente da República, em parceria com jornalistas da Câmara dos Deputados os jornalistas do Senado Federal cobriram a revisão da Constituição e produziam diariamente um boletim radiofônico e televisivo, veiculado em rede nacional de rádio e TV. A competência técnica e profissional mais uma vez se mostrava presente. E muito do que era dito nos boletins era ignorado pela grande imprensa. A segunda metade da década de 90 foi marcada, já sob a administração de José Sarney, pela consolidação desta estrutura com a transformação dos serviços radiofônicos e da Central de Vídeo, na rádio e na TV Senado.

Como dito no início, hoje trabalhar nestas mídias é sonho de consumo de muitos profissionais. Não é apenas a questão salarial – que no início nem era assim tão boa –, mas a possibilidade de se fazer um jornalismo cidadão, transparente e plural. Coisas que nem sempre é possível praticar na chamada imprensa livre comercial.

Censura e uso indevido da máquina

Mas não pense o leitor que as coisas são fáceis. Que ao entrar no Senado o jornalista não enfrentará dificuldades que colocarão em xeque seus valores éticos e seus paradigmas jornalísticos. Que ele terá que comprar muitas brigas para fazer valer seu juramento de ser fiel aos fatos.

De 1988 para cá, vários outros concursos foram realizados. Alguns mais complexos, outros nem tanto. Mas os aprovados nestes concursos têm conseguido levar à frente a proposta de um jornalismo voltado à construção da cidadania, à transparência dos feitos públicos – tecnicamente chamada de accountability. Momentos críticos como a cassação de Luiz Estevão, as renúncias de José Roberto Arruda, Antônio Carlos Magalhães e Jader Barbalho, entre outros fatos, foram marcantes para construir a credibilidade perante a opinião pública e a imprensa privada destas mídias legislativas.

Para esta missão, os jornalistas legislativos não contam, em sua retaguarda, com amparo jurídico e regimental fortes o suficiente que protejam, não a eles, mas o cidadão, garantindo a este a verdade dos fatos. Atualmente, as normas existentes são poucas e, em alguns casos, vagas. O projeto de lei nº 229/2011, de autoria da então senadora Marinor Brito (PSOL-PA), busca definir normas de gestão transparente e democrática para todas as mídias legislativas existentes no Brasil e operadas em níveis municipal, estadual e federal. Mas o projeto aguarda que lhe seja designado um relator na Comissão de Constituição e Justiça.

Ao longo de todos estes anos, não foram raras as vezes em que profissionais das mídias do Senado federal tiveram que encarar ordens de superiores e até de parlamentares que representariam, de alguma forma, censura ou uso indevido da máquina midiática para fins eleitorais e eleitoreiros. Nestas oportunidades, tiveram que encarar com peito aberto as ordens superiores, agarrados somente nos paradigmas profissionais. Em alguns casos, perderam cargos de chefia por discordar de determinações editoriais não tão cristãs.

Relações Públicas e Jornalismo

Somente agora, por exemplo, está sendo elaborado um manual de redação para as mídias legislativas do Senado. Rádio, Agência e Jornal do Senado já possuíam os seus, mas a TV, principal alvo das investidas, carece de um texto que dê amparo aos profissionais e garantam qualidade informativa aos cidadãos, contribuintes que pagam pela existência dos veículos. Ainda não é conhecido o seu teor, nem que força ele terá em termos jurídicos perante aos desejos parlamentares.

Até que haja uma conjuntura ideal, o que garantirá a qualidade informativa aos cidadãos será a ação dos profissionais. Neste ponto, os concursos públicos realizados pelo Senado Federal, podem contribuir pela seleção de profissionais competentes, na teoria e na prática e compromissados com a função social de bem informar. Entretanto, o concurso que ora se apresenta para 2012 não parece ir neste caminho.

Transparência, verdade dos fatos e construção de imagem pública nem sempre são ações que trilham o mesmo caminho. No concurso de 1988, o Senado foi competente em fazer seleções separadamente para Jornalistas e Relações Públicas. Além das questões legais referentes ao exercício profissional – cada profissão requer uma formação diferenciada –, há o conflito de propostas, métodos e práticas. No edital do concurso ora anunciado, na ementa para Jornalistas está previsto a possibilidade que ele atue como Relações Públicas. De outro lado, na ementa para Comunicador Social – que em tese deveria ser para RP ou Publicitário, existe a previsão de que o selecionado trabalhe na produção jornalística para rádio, TV e jornal.

Este fenômeno, que os acadêmicos chamam de hibridação da Comunicação, não é salutar. Talvez não por outro motivo a comissão designada para elaborar o Manual das Mídias do Senado – citado antes – ainda não conseguiu definir se o papel destes meios é fazer Jornalismo ou Comunicação Institucional.

Qualidade informativa

É curioso que no edital, em ambos os casos, dentre os conteúdos previstos para as provas está o Código de Ética. Mas qual será aplicado? O da Publicidade, do Jornalismo ou das Relações Públicas? O edital do concurso elaborado pela FGV – que vem sendo alvo de muitas críticas – dá a ideia de que foi feito pela técnica do “gilete press” – em termos atuais, um copiar-colar – de antigos concursos de Técnico de Comunicação, onde o selecionado precisava tocar todos os instrumentos: da Publicidade às Relações Públicas, passando pelo Jornalismo. O edital peca ainda por não prever prova prática, nem de Jornalismo, nem de Comunicação, privilegiando o decoreba teórico. Não está claro se haverá uma simples redação. Pelo divulgado, o candidato não precisará fazer nenhum texto jornalístico, nem mesmo demonstrar que na prática domina as técnicas profissionais do rádio ou da TV.

Outra questão que chama a atenção é que, embora já exista no país extensa literatura técnico científica sobre Comunicação Legislativa – na maioria dos casos fruto de pesquisas acadêmicas de mestrado e doutorado – a temática foi ignorada pela FGV. A importância desta temática é tal, que a própria Universidade do Legislativo – Unilegis já realizou um curso de mestrado lato sensu em Comunicação Legislativa. É como se fôssemos realizar um concurso para contratar jornalista econômico ou desportivo e nada fosse perguntado sobre economia ou esportes.

A experiência profissional pregressa do candidato e o seu nível de especialização acadêmica também são ignorados no futuro concurso. Um jornalista com dez anos de televisão, jornal ou rádio não terá nenhuma diferenciação de um foca recém-formado.

Outro ponto curioso diz respeito à própria ação internacional do Senado Federal. Embora a Casa tenha representação no Parlamento do Mercosul, no Parlamento Latino-americano e no Parlamento do Pacto Amazônico – fóruns alvos da cobertura das mídias legislativas – e que seja signatária de acordos que visem a massificação do idioma castelhano no Brasil e o português nos demais países latino-americanos, o edital da FGV exclui o Espanhol de seus testes. No último concurso realizado pela Câmara dos Deputados, o Espanhol era obrigatório a todos que em seguida podiam optar numa cesta de idiomas pela segunda língua estrangeira a ser examinada.

É positivo que o Senado Federal dê sequência a seleção de seus profissionais de Comunicação por meio de concursos, mas estes certames precisam ser elaborados com maior precisão e profundidade. As novas gerações de jornalistas legislativos é que serão responsáveis pela manutenção da qualidade informativa, dos paradigmas e preceitos éticos jornalísticos e pela garantia de que as mídias legislativas continuam a ser instrumento de inclusão política, construção da cidadania e transparência pública e não se transformem em meras ferramentas de marketing político parlamentar.

Ainda há tempo para aperfeiçoar o edital do concurso de 2012.

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[Chico Sant’Anna é jornalista, doutor em Ciência da Informação e Comunicação pela Universidade de Rennes 1 – França, há 19 anos jornalista concursado do Senado Federal, editor do programa Diplomacia e autor do livro Mídia das Fontes: um novo ator no cenário jornalístico brasileiro. Um olhar sobre a ação midiática do Senado Federal]