O jornalista Bernardo Kucinski, um dos principais formuladores da política do PT na área de comunicação e ex-assessor do Palácio do Planalto, afirma que a mídia brasileira foi ‘autoritária’ na discussão das propostas encampadas pelo governo Lula para o setor – notadamente, o Conselho Federal de Jornalismo e a Ancinav.
Kucinski criou polêmica recente, ao defender que a Radiobrás tinha ‘vergonha de ser estatal’ e criticar a gestão de Eugênio Bucci – que rebateu dizendo ter afastado o ‘jornalismo chapa-branca’.
Ele sugere que a Radiobrás seja reorganizada, de modo a existir uma agência de divulgação do governo e, em separado, um projeto de uma ‘rede pública de informação’. Enquanto Bucci defendeu a cobertura do escândalo do mensalão pela empresa, Kucinski afirma que ela não deveria ter aderido ao uso do termo ‘adotado pela grande imprensa’.
Ele diz na entrevista seguir que não participou do texto do programa de governo do PT para comunicação em que, contraditoriamente, elogiava o caráter público da Radiobrás. Contudo, seu nome aparece como contribuinte do texto.
A entrevista a seguir foi feita por e-mail, o que não permitiu o contraditório. Kucinski, 69, defende nela uma lei de incentivo à ‘mídia alternativa’.
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Em seu texto ‘A babel é aqui’, o sr. diz que houve incompreensão sobre sua posição a respeito do papel que a Radiobrás deveria exercer e indica um esboço do que considera uma opção de caminho (divisão de atribuições). O sr. pode elaborar sua opinião sobre o papel da estatal?
Bernardo Kucinski – Penso que a TV Nacional, da Radiobrás, junto com a TVE do Rio de Janeiro, poderiam nuclear a implantação de uma rede pública nacional de informação, com outras emissoras do mesmo tipo, inclusive educativas e universitárias. Esse projeto exigiria a vontade política do governo federal, negociação com governos estaduais e com o Congresso, alocação de recursos e mudanças na legislação.
Também poderia ser formada uma rede de rádio pública, a partir das rádios Nacional do Rio e Nacional de Brasília. Outra parte da Radiobrás seria dedicada a informação oficial do Estado, campanhas de utilidade pública, e promoção da imagem do Brasil. Informação estatal, precisa e abundante . Poderia absorver em princípio a NBR, a Agência Brasil, TV Internacional e Rádios da Amazônia.
No caderno ‘Comunicação e Democracia’ (programa do PT), que contou com sua colaboração, é feito um elogio à ‘política editorial mais independente’ e ao ‘jornalismo de caráter público’ da Radiobrás no primeiro mandato de Lula. Posteriormente, o sr. postula que a empresa tem ‘vergonha de ser estatal’ e aponta fragilidades no conceito defendido pela direção da Radiobrás de ‘jornalismo público’, ironizando a própria definição. O sr. não endossa o texto da campanha ou mudou de opinião?
B.K. – Eu não participei da elaboração do texto do caderno. Respeito a opinião majoritária que gerou o elogio à Radiobrás e o entendo válido na medida em que a Radiobrás deu mais espaço aos movimentos sociais e grandes conferências nacionais desses movimentos. Mas insisto que a Radiobrás se equivocou na cobertura da crise e no tratamento dos assuntos de Estado.
Na sua opinião, como deveria ser a cobertura da Radiobrás do episódio do mensalão?
B.K. – Uma empresa com a responsabilidade de pertencer ao aparelho de Estado, tida como referência pelo resto da imprensa e pela imprensa estrangeira, não poderia ter aderido à narrativa de ilações, insinuações e de presunção de culpa, nem a linguagem de mensalão e mensaleiros, adotadas pela grande imprensa; também deve evitar tratamento sensacionalista, não só nesse caso, em todos os temas e situações. Deveria respeitar os princípios básicos do jornalismo, que a grande imprensa não respeitou: ouvir sempre o outro lado, em especial os acusados, não prejulgar, ser objetiva, ponderada e isenta, atendo-se o mais possível aos fatos comprovados.
Qual sua opinião sobre Eugênio Bucci e seu comportamento durante a polêmica?
B.K. – Minhas opiniões e eventuais críticas referem-se a idéias, não a pessoas. Não me cabe opinar genericamente sobre comportamento e sim sobre falas e decisões específicas.
O sr. defende a criação de um órgão análogo ao CFJ no segundo mandato?
B.K. – Sou a favor de um órgão desse tipo, desde que voltado fundamentalmente à implantação de acompanhamento de um código de ética da conduta jornalística, à defesa das condições de trabalho dos jornalistas e a conquista de novos direitos para os jornalistas, tais como a cláusula de consciência, mas sem a atribuição de controlar o acesso à profissão.
O programa de governo de Lula prega o estímulo, por meio de incentivos fiscais e/ou direcionamento de verbas publicitárias, a uma suposta imprensa independente, que poderia se contrapor à mídia ‘mainstream’. O sr. concorda com isso? Esse estímulo não se transformaria em dependência e atrelamento de linha editorial a interesses do governo?
B.K. – Não concordo com as premissas. As propostas que conheço não visam apoiar uma imprensa ‘independente’, expressão que considero equivocada, e sim a imprensa pequena, regional, alternativa e cultural, enfim a imprensa que não tem como objetivo principal o lucro e que traz aportes importantes à diversidade cultural, étnica e temática. Também não se trata de se contrapor a nada, e sim de apoiar a diversidade e ampliar a base de leitores no país.
Muitos desses veículos já se beneficiam da Lei Rouanet. Mas essa lei foi desenhada para a arte, e não para a imprensa o que dificulta um pouco a sua aplicação á imprensa. Uma das soluções seria criar uma espécie de Lei Rouanet específica para a projetos de imprensa escrita, internet e rádios comunitárias.
Ainda neste quesito, partindo de um corolário presumível, em sua opinião os grandes jornais (Folha, Estado, O Globo), revistas (Veja, Época), além da Rede Globo, não deveriam receber verbas publicitárias oficiais? Quem deveria receber, no escopo da imprensa já estabelecida?
B.K. – Esses veículos já recebem substanciais verbas publicitárias na forma de anúncios de estatais e até mesmo publicidade institucional do governo. Na minha opinião, o governo não deveria gastar suas verbas de publicidade em propaganda institucional, exceto em situações excepcionais ( promoção da imagem do Brasil no exterior, por exemplo).
Os recursos deveriam ser usados em publicidade de utilidade pública como campanhas sanitárias e de promoção de direitos e de orientação do acesso aos serviços públicos. Quanto às estatais do setor produtivo e bancos estatais, devem aplicar suas verbas por critérios técnicos próprios, na disputa do mercado e promoção de seus produtos,sem prejuízo dos seus programas de incentivo á cultura e artes.
Durante todo o primeiro mandato de Lula, a relação do governo com a mídia foi turbulenta – caso Larry Rohter, notas desautorizando especulação, o Conselho Federal de Jornalismo, a lista é longa. Desde a vitória no segundo turno, integrantes do governo e do PT (Tarso Genro, Marco Aurélio Garcia) vêm fustigando a grande imprensa em diversos graus de agressividade. Como o sr. avalia essa relação e como acredita que ela deva ser?
B.K. – Nem a lista é longa e nem se trata de fustigamento. De todos esses episódios o único certamente condenável foi a cassação do visto de Larry Rohter, um erro político grave, mas isolado. A proposta de formação do CFJ, oriunda da própria Federação Nacional dos Jornalistas, deveria ter sido democraticamente discutida no Congresso, eventualmente modificada e até rejeitada, mas a pressão dos barões da mídia consegui impedir até mesmo isso, assim como conseguiram impedir a discussão democrática da proposta da Ancinav. O autoritarismo veio da mídia, não do governo. O resto são episódios e falas normais já que a mídia está em discussão, como demonstra este pedido de entrevista.
O STF derrubou em caráter liminar a obrigatoriedade do diploma de jornalismo, e ainda irá analisar o mérito da questão. Como o sr. vê isso?
B.K. – Sempre defendi a não-obrigatoriedade do diploma para o exercício do jornalismo profissional. Não mudei de idéia. Eu mesmo não tenho diploma, e sou professor de jornalismo. É preciso qualificar melhor os profissionais, principalmente do ponto de vista da ética profissional, mas a obrigatoriedade do diploma não é o melhor caminho.
O conceito de democratização dos meios de comunicação defendido pelo PT sempre incluiu cassação de concessões de rádio e TV e redistribuição da verba publicitária oficial. Isso não ocorreu no primeiro mandato. Por quê? O que leva a crer que algo mudará agora?
B.K. – Não são corretas as premissas. Não conheço nenhuma proposta de cassação de concessões. Na plataforma da campanha de 2002, o PT ignorou o assunto. Na deste ano, foi proposto o recadastramento das concessões, o que é um passo preliminar tanto para o saneamento de irregularidades como para a adoção de qualquer política pública.
Também não é possível um governo democratizar um meio de comunicação, exceto os de sua propriedade. O que o governo pode e deve é democratizar o mercado aplicando uma regulação anti-monopólio, com fazem outros países. Para facilitar o acesso da população é preciso batalhar pela inclusão digital e barateamento do preço dos veículos impressos.
O ministro Hélio Costa vem defendendo posições que coincidem com os interesses da Globo, como no caso da TV digital e no veto à entrada das teles no negócio TV. Como o sr. vê a atuação do Ministério das Comunicações do governo Lula?
B.K. – Tenho pouca informação sobre a questão da TV digital. Sei que a tecnologia digital permite reduzir substancialmente a concentração, sem cassar concessões existentes. A questão central, portanto não é o padrão a ser adotado, mas a forma de repartição dos intervalos do espectro eletromagnético, multiplicados pela nova tecnologia.
Em seu artigo ‘A babel é aqui’ o sr. afirma que a esquerda, petistas em especial, não são compreendidos em suas declarações porque haveria uma ‘desordem lingüística’ em curso no país, que teria alienado a grande imprensa, tirado de seus profissionais a capacidade de exercer criticamente sua profissão. O que o leva a crer que não seriam a esquerda e o PT os afetados por tal desordem lingüística?
B.K. – Não entendi bem a sua pergunta. Deve ser o efeito dessa desordem lingüística. De qualquer forma, penso que tem havido um rebaixamento geral do nível das discussões e falta de vontade de dialogar. Isso afeta todos.
No mesmo artigo, o sr. fala que a quase totalidade dos colunistas brasileiros ‘descolou-se dos ideais do povo’ ao assumir uma postura crítica à reeleição de Lula. O sr. crê que um jornalista deve abandonar o criticismo em favor de uma vontade expressa em urnas? Essa uniformidade não mimetizaria o ideário dos totalitarismos que o sr. rejeita como rótulo ao PT?
B.K. – Os colunistas não ‘assumiram uma postura critica’. Eles se engajaram ativamente na campanha contra Lula. Isso é um fato. Lula foi eleito por ampla maioria. É outro fato. E os dois fatos apontam para um descolamento dos colunistas em relação ao sentimento da maioria da população. Apenas isso. Na minha o jornalista nunca deve abandonar o espírito crítico.
Em artigo publicado no site ‘Carta Maior’, o sr. estabelece uma fronteira entre ‘nós’ (esquerda petista) e ‘eles’ (jornalistas de grandes órgãos), que seriam todos de ‘direita’. O governo Lula, em especial na fase da defesa da coalizão, abraça personagens tão diversos quanto Jader, Sarney, Renan, Collor, evangélicos petencostais, enfim, uma miríade que seria chamada de conservadora ou ‘de direita’ em qualquer plenária petista pré-2002. Isso para não falar do pragmatismo em temas econômicos, por exemplo. Não perde o sentido a fronteira pretendida?
B.K. – A esquerda existe, independente do governo do dia ser de coalizão. E eu não acho que os jornalistas dos grandes órgãos sejam todos de direita. Seria um absurdo. É grande a diversidade no meio jornalístico. O que se observa é uma maior alocação dos espaços nobres do jornalismo a comentaristas que defendem a ortodoxia econômica, fenômeno, aliás que ocorre também em alguns outros países.
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Secretário de Redação da Folha de S.Paulo, em Brasília