Não há, na história da República, um escândalo financeiro tão longevo e de tantas ramificações quando o caso Banestado. Alvo de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) no Congresso Nacional em 2003 e de uma força-tarefa formada por 40 procuradores, delegados, agentes e peritos do Ministério Público Federal e da Polícia Federal, a descoberta de um esquema ilegal de uso das contas CC5 – criadas pelo Banco Central para permitir transferências legais para o exterior – no banco do Estado do Paraná foi a precursora de uma série de outras investigações – muitas delas ainda em curso nos gabinetes de procuradores, delegados e juízes.
Um pedido de CPI protocolado junto à mesa diretora da Câmara dos Deputados levantou as expectativas de que uma parte do caso Banestado, até agora mantida em segredo nos arquivos do Congresso, volte à tona. O deputado Protógenes Queiroz (PCdoB-SP) conseguiu em dezembro 206 assinaturas para pedir a abertura de uma nova CPI, desta vez para investigar as privatizações promovidas durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP).
Ao receber o pedido de abertura da CPI, o presidente da Câmara, Marco Maia (PT-RS), não foi conclusivo sobre as perspectivas de sua instalação.
O pedido foi motivado pelas revelações do livro A Privataria Tucana, lançado pelo jornalista Amaury Ribeiro Júnior. Nele, o autor regressa à época das privatizações e relata os passos – e a movimentação das contas bancárias – de personagens importantes do contexto político e econômico nacional, muitos deles ligados ao ex-governador José Serra (PSDB-SP).
Esquema de corrupção
Apesar de muitos governistas terem assinado o pedido de CPI, ainda não se conhece o interesse do governo e do PT na instalação efetiva desta investigação. O desinteresse de ambos na abertura de uma investigação poderia ser explicado pela informação que consta da página 75 do livro: “Os arquivos ocultavam informações capazes de constranger tanto o governo Lula quanto o de FHC”.
A devassa no Banestado partiu de uma denúncia feita contra um dos gerentes do banco, que havia enviado dinheiro ao exterior ilegalmente por meio das CC5 e, em depoimento, relatou o esquema montado na instituição. De uma forma inédita na história do país, foram abertas duas frentes de investigação.
De um lado, a CPI do Banestado foi instalada em 2003 para apurar a evasão de divisas por meio do banco estatal. De outro, uma força-tarefa do Ministério Público Federal e da Polícia Federal foi montada no Paraná no mesmo ano para abrir inquéritos e investigar os clientes do banco que haviam incorrido no crime.
A força-tarefa resultou em inúmeras operações da PF para investigar o uso do câmbio ilegal no Brasil e acabou varrendo diversos doleiros do mercado. Resultam dela as mais importantes operações da PF já realizadas – como Farol da Colina, Suíça, Kaspar I e II e Satiagraha. O conjunto de ações integradas entre a PF e a MP foi encerrado em setembro de 2007 após ter denunciado 684 pessoas, obtido 97 condenações, investigado mais de 1.170 contas bancárias no exterior e bloqueado R$ 380 milhões no Brasil e R$ 34,7 milhões fora do país. Após seu término, os inquéritos ainda em andamento foram remetidos para procuradores em diversos Estados e geraram novas investigações.
A CPI do Banestado foi encerrada em 27 de dezembro de 2004 sem a aprovação de seu relatório final. Na época, os partidos fizeram um acordo para encerrar as investigações, após a comissão ter recebido dos Estados Unidos um lote de documentos sobre a movimentação de brasileiros em contas bancárias abertas no MTB Bank, outro escritório de lavagem de dinheiro americano. Segundo Ribeiro Júnior, a revelação dos dados do MTB foi determinante para que fosse desencadeada a “operação abafa” na CPI.
O livro, no entanto, não se dedica às razões por que o PT resolveu colaborar para sepultar a CPI. Seu foco é na tese de que a era das privatizações – inaugurada durante o governo Collor e ampliada e intensificada no governo FHC – patrocinou a venda de estatais brasileiras a “preço de banana” e enriqueceu políticos e empresários por meio de um esquema de pagamento de propinas. Segundo o autor, a venda de empresas como Vale, CSN, Light, Embraer e Usiminas, entre outras, foi antecedida por demissões, aumento de tarifas, investimentos e absorção das dívidas das companhias pelo Estado e concluída por meio do uso de moedas podres e intensa participação do BNDES no financiamento aos consórcios que as adquiriram.
Entre a primeira e a segunda etapas, Ribeiro Júnior tenta provar que houve um esquema de corrupção por meio do qual os tucanos montavam os consórcios vencedores dos leilões em troca de propina – no que chama de “propinização”, ao invés de privatização.
Sob sigilo
O principal argumento que sustenta a tese do autor foi mantido em sigilo pelo Congresso desde 2003, quando foi instalada a CPI do Banestado. Segundo Amaury Ribeiro Júnior, a caixa de número 6 que abriga o material levantado pela CPI contém um documento, reproduzido no livro à página 137, que demonstra que o ex-tesoureiro de campanha de Fernando Henrique Cardoso (em 1994 e 1998) e de José Serra (em 1990 e 1994), Ricardo Sérgio de Oliveira, recebeu somas consideráveis nas contas bancárias de empresas das quais é sócio.
Após a eleição de Fernando Henrique Cardoso, Ricardo Sérgio, indicado por Serra, assumiu a área internacional do Banco do Brasil, posto por meio do qual teria articulado a participação dos fundos de pensão – como Previ e Petros – nas privatizações.
Além de Ricardo Sérgio, o documento, reproduzido por Ribeiro Júnior no livro, também cita Gregório Marin Preciado, casado com uma prima de primeiro grau de Serra. Preciado teria movimentado dinheiro por meio do Beacon Hill, escritório de lavagem de dinheiro que foi o principal receptor dos valores enviados ilegalmente para fora do país pelas contas CC5 do Banestado. O autor, no entanto, não consegue provar que o dinheiro que circulou nas contas dessas pessoas tem origem nas privatizações e tampouco que Serra teria se beneficiado desses valores. Procurada pelo Valor, a assessoria de imprensa de José Serra não se manifestou. O ex-governador de São Paulo classificou o livro como “lixo”. A reportagem não encontrou Ricardo Sérgio em seu escritório. A assessoria do PSDB informou que o departamento jurídico do partido prepara uma ação judicial contra o livro.
“Não é um livro, é um documento”, resumiu o deputado Protógenes Queiroz durante um debate sobre A Privataria Tucana promovido pelo Centro de Estudos Barão de Itararé, realizado no Sindicato dos Bancários de São Paulo.
A afirmação decorre do fato de o autor se dedicar a esmiuçar o modus operandi da lavagem de dinheiro a partir dos mais ruidosos escândalos brasileiros dos últimos tempos, como o desvio de verbas da construção do novo fórum trabalhista de São Paulo pelo juiz Nicolau dos Santos Neto; a Máfia dos Fiscais do Rio de Janeiro; o desvio de verbas do INSS promovido pela servidora Jorgina de Freitas, entre outros casos.
Em todos eles, as investigações culminaram em uma sequência de operações que incluiu o desvio de recursos públicos, seguido da evasão de divisas por meio de doleiros, da circulação do dinheiro em contas de bancos americanos e da abertura de offshores em paraísos fiscais. Sem a identificação dos seus beneficiários finais, protegidos pelo sigilo oferecido nesses países, as offshores promoviam investimentos no Brasil, reinserindo o dinheiro lavado na economia. (Colaborou Cristiane Agostine)
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[Cristine Prestes é do Valor Econômico]