Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘Não estamos acostumados à democracia’

Há pouco mais de dois anos, foi assassinado em Moscou o jornalista americano de pais russos Paul Khlebnikov, redator da revista Forbes na capital russa [ver remissão abaixo]. Teoricamente, o governo nada teve a ver com essa morte: Paul noticiara um furo de reportagem, citando nominalmente as cem maiores fortunas do país. Digo teoricamente porque estes novos milionários, que fizeram suas fortunas após o término da União Soviética, comprando empresas estatais a preços irrisórios, são em sua maioria ex-agentes da polícia secreta, o Komitet Gosudarstvennoj Bezopasnosti (Comitê para a Segurança do Estado), a KGB – portanto, ex-colegas de profissão do presidente Vladimir Putin.

Recentemente, foi assassinada a jornalista Anna Politkovskaya. Nesse homicídio se tem a quase certeza da participação do estado, haja vista que Anna atacava diretamente o novo ‘Kzar de todas as Rússias’ Vladimir Putin, pelas atrocidades perpetradas na separatista Chechênia, classificando-as como genocídio. Esse assassinato trouxe ao conhecimento do resto da Europa a eliminação física na Rússia de algo como 50 jornalista ‘dissidentes’.

Complô

Esses dois assuntos saíram da pauta dos informativos. Ora, pode-se entender que um crime tenha seu interesse exaurido ao ser desvendado e os criminosos devidamente punidos, mas no caso dos dois jornalistas mais nada se soube. Agora, outro assassinato incômodo ao governo russo foi cometido em Londres e a vítima foi o major Alexander Litvinenko (43 anos), ex-agente da KGB. Há seis anos ele fugira de Moscou justamente por causa da situação na Chechênia, pois tivera a audácia de dizer na cara de Putin que os serviços de segurança tinham se reorganizado em uma gangue de criminosos que traficava com o líder da guerrilha chechena. O encontro foi interrompido, ele, suspenso da FSB (KGB atual) e logo depois acusado de alta traição. Exilado no Ocidente, não parou de ser um crítico do novo regime russo. Em famosa entrevista coletiva, há poucos anos, declarou que Putin tinha ‘cinicamente orquestrado em 1999 uma série de sangrentos atentados terroristas em Moscou para poder desencadear de novo a guerra na Chechênia’.

Para entender seu assassinato devemos fazer uma pequena análise. A maior parte dos assassinatos políticos é obra de amadores. O assassino é imediatamente descoberto, capturado e morto, freqüentemente instantes depois de ter cometido o delito. Assim como foram os assassinatos de Indira Gandhi, de seu filho Raij Gandhi, mortos por fanáticos que os eliminaram à queima-roupa; ou de Yithzak Rabin, cujo assassino estava a dois passos de distância.

Quando por trás do assassinato há um complô, a distância aumenta, como no caso de Lee Oswald, o assassino de John Kennedy. No complô existe a presença de um grupo organizado como mandante, e o envenenamento, como no caso de Litvinenko, é típico. Ele começou a passar mal quando saiu de um restaurante japonês e nunca mais se recuperou. Foi usado contra ele o isótopo radiativo polônio 210, substância rara, difícil de se obter, que somente as potências nucleares podem deter, e estas não são mais de dez. Cabe uma pergunta: a que potência nuclear interessaria a morte de Litvinenko? A resposta é simples: somente a uma, a Rússia.

Dístico

Por que o jornalista que durante anos acusou o presidente Putin de crimes contra a humanidade só agora foi eliminado? Seu interesse pela causa chechena é coincidente com o da jornalista Anna Politkovskaya, cujo assassinato continua insolúvel, mas Livtinenko, profissional da informação, interessara-se em investigar os verdadeiros mandantes; certamente foi nesse ponto que assinou sua sentença de morte.

Todos os domingos, aproveitando o dia de folga, reúnem-se na praça principal de Belluno as emigrantes russas, falam de suas coisas, de seu país, de suas nostalgias, certamente uma forma de não perderem a sua identidade nacional. Apesar do trabalho humilde que fazem são instruídas, lêem e têm opinião política formada. Outro dia, conversando com uma deles, perguntei por que ainda na Rússia, com o término da sistema soviético, as liberdades individuais continuam sendo violadas e os meios de comunicação, censurados. A resposta que me chegou foi dramaticamente simples.

– É que não estamos acostumados à democracia.

As últimas palavras de Livtinenko podem não ter sido as últimas, podem até nem ter sido ditas, mas são as que ficarão registradas: ‘Os bastardos me mataram, mas não poderão matar todos’. Que estas possam servir como dístico aos que lutam pela liberdade de um povo que ‘não está acostumado à democracia’.

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Jornalista