Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A literatura que não está na mídia

Digo ao sempre gentil e atencioso Damásio, rodeado de outros garçons, pois é
ainda muito cedo, que meu amigo italiano quer uma cachaça das boas. Precisamos
jantar, são apenas oito da noite, mas antes o professor Giovanni Ricciardi quer
um aperitivo. A pinga é aprovada e repetida duas vezes, o que dá seis doses. O
casal que nos acompanha dispensa a cachaça.


O professor visita o Brasil há décadas. Nem sempre tratamos bem aqueles que
no estrangeiro se interessam pela literatura brasileira. E Giovanni Ricciardi a
estuda, traduz e ensina a seus alunos em Roma e em Nápoles há três décadas. Nem
pensa em aposentar-se. Mas uma das viagens ele a fez especialmente para receber
da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) um prêmio por seu trabalho em
favor de nossas letras na Itália.


Ele quer saber de nossos autores e livros, mas faz uma pergunta para a qual
ainda não encontrou uma resposta precisa: por que a mídia fala tão pouco dos
escritores brasileiros?


De cada viagem ele volta com uma visão geral da literatura brasileira que
poucos pesquisadores brasileiros têm. E a obtém visitando escritores, escolas,
universidades. A pinga estava boa, mas ele não podia repetir mais: no dia
seguinte iria a Santo Ângelo (RS), a convite da reitora da universidade local, a
professora Mara Regina Rosler.


Dou-lhe Quando alegre partiste, o novo romance do jornalista Moacir
Japiassu (Editora Francis, 287 páginas), que mora em Cunha (SP), depois de ter
vivido e trabalhado no Rio e em São Paulo. Mostro-lhe as introduções de Augusto
Nunes, que nasceu em Taquaritinga (SP) e vive entre São Paulo e o Rio, e de
Giulio Sanmartini, que nasceu e mora em Belluno (Itália), depois de viver muitos
anos no Brasil. Estava autografado para mim, mas eu já tenho outro, comprado na
Livraria Argumento, no Rio Design, shopping que nos dá as boas-vindas com um
poema de Affonso Romano de Sant’Anna, na parede, à direita da entrada principal.


Tenho em comum com todos os citados o conhecimento da paz das pequenas
cidades. É outro o olhar de quem vê as coisas metropolitanas a partir do lastro
das pequenas cidades. Mas isso é assunto repleto de injunções controversas, que
a seu tempo será um dia retomado.


História clandestina


Meu caminho foi inusitado: morei sempre em pequenas cidades, com breves
incursões às metrópoles para fazer as pós-graduações. Teria Moacir Japiassu
arrebentado desse jeito – é o terceiro romance no último lustro – se vivesse no
Rio ou em São Paulo? Respondo o que se passa comigo: trinta livros em trinta
anos, mas a conclusão do próximo romance, Goethe e Barrabás, já
contratado pela Girafa, aguarda que possa recuperar as horas perdidas com o
trânsito. Ai, como é difícil o ponto final!


Não paramos de escrever e cortar. Escrever é cortar! Mas em São Carlos, no
interior de São Paulo, onde morei durante vinte e três anos, nenhum lugar da
cidade aonde eu precisasse ir distava mais do que dez minutos, e eu escrevia e
cortava todos os dias! Todos sabem que o trânsito é o maior ladrão do escritor.
Ele rouba o tempo, o nosso grande tesouro.


Sigo recomendando a leitura a meu amigo Giovanni Ricciardi. ‘O Augusto Nunes
disse que o escritor Moacir Japiassu cavalga o idioma com a destreza de
amansador de potros’.


Como já amansei um potro um dia – todos temos um passado inconfessável –
mostro este trechinho ao italiano:




‘A alforria, que o ciúme é a mais tormentosa das clausuras, se a encontrou
devastada também fertilizou o caminho por onde ela haveria de passar dali para a
frente. Sexo, sempre; amor, talvez; paixão, nunca mais. Passou a reservar tais
arroubos a poetas, escritores, filósofos, criaturas distantes que, agora, faziam
sua cabeça de mulher livre e desimpedida. ‘Na lista dos homens para os quais eu
daria na hora, tem até um padre; vocês já leram O fenômeno humano, de
Teilhard de Chardin?’, incitava as amigas, que adoravam suas atitudes nada
convencionais. O apartamento da Barata Ribeiro, o ‘Ateliê da Vera’,
transformou-se em ponto de encontro de um grupo de intelectuais da Zona
Sul’.


Giovanni vai folheando o romance. E eu, boquirroto, falo do percurso de
Moacir Japiassu como escritor: ‘Ele tem um romance que, como todo bom romance,
tem uma personagem solar, cuja grandeza paira bem acima das outras; é a história
de uma linda moça, de bom berço, como a Teresa d’Ávila, que, como Teresa, que
abandona a casa paterna para enclausurar-se num convento, abandona a sua para
ser prostituta; um beato, prefeito e um fotógrafo também são fascinantes. Foi
este o seu romance de estréia, A santa do cabaré.


O italiano vai bebendo por orelhas e boca, também eu destilo minha pinga
literária, misturada a venenos providenciais: ‘Se você se guiar pela imprensa,
parece que a literatura morreu há uns vinte anos e se esqueceram de sepultá-la’.
‘Nem bem tínhamos coabitado com A santa do cabaré, e Moacir Japiassu, que
chamo de compadre Japi, publicou Concerto para paixão e desatino, que me
fez lembrar uma definição de literatura que muito aprecio: é a história
clandestina da sociedade, no caso, da sociedade brasileira vista a partir da
Revolução de 1930, você precisa ver como José Américo de Almeida, João Pessoa,
que depois dará nome à capital da Paraíba, João Dantas e outras figuras
conhecidas aparecem diferentes do que sempre foram nos retratos, melhor dizendo,
espelhos de Moacir Japiassu’.


Prêmio singular


Os dois romances já eram bons demais, contudo Quando alegre partiste
consegue superá-los como se Moacir Japiassu tivesse obtido o tricampeonato.
Já não aparece indício algum do esforço pela frase bem cuidada, sua
característica. Os trinta capítulos vêm encimados de mêmores que ajudam o leitor
a situar o contexto da narrativa, que começa com o golpe de Estado de 1964.
Ganharão relevo no romance figuras muito conhecidas da História do Brasil, como
Júlio de Mesquita Filho, dono do jornal O Estado de S.Paulo, e
Adhemar de Barros, governador. Os dois fizeram em São Paulo o que Carlos Lacerda
fez no Rio: organizaram as forças sociais que imploraram, suplicaram que os
militares acabassem com o governo constitucional do vice de Jânio Quadros, a
quem tinham tentado impedir que assumisse o governo quando o titular
renunciara.


Vem o golpe e eis outra amostra de como escreve Moacir Japiassu:




‘Os homens haviam chegado repentinamente, no início da noite de terça-feira,
31, dispararam dois tiros, entraram pela Redação às carreiras, com metralhadoras
à mão. Tinham ordem de quem, perguntou o diretor de Redação, Alberto Dines; o
tenente respondeu que a ordem partira do ministro da Marinha. Dines pediu para
ver o papel; não havia papel; era tudo ‘verbal’’.


E logo é retomada a discussão se Altair, lateral esquerdo do Fluminense, é ou
não o novo Nilton Santos, do Botafogo!


Uma coisa é o leitor saber que a chamada ‘revolução de 1964’ triunfou sem
combate algum e que o ‘esquema militar’ do governo constitucional era pura
ficção. Outra, bem diferente, é repor este Brasil para exame à luz da imaginosa
criatividade de um escritor como Moacir Japiassu, para quem é fundamental levar
em conta que, ser tiros houvesse, fuzileiros navais dos EUA poderiam desembarcar
na costa brasileira apoiando os revoltosos. Quer dizer, o ‘esquema militar’ era
dos conspiradores, não de quem estava no governo.


Não é apenas um o narrador deste romance. Seu nome é legião e se não fosse
jornalista não teria escrito o livro com corte tão profundo na sociedade
brasileira do período.


O romance vem acrescido ainda de recortes de jornais, como alguns editoriais
do Correio da Manhã e do Jornal do Brasil, de opiniões como de
Carlos Drummond de Andrade, recuperada pelo professor Eduardo Jorge de Oliveira,
coordenador do Curso de Jornalismo da Universidade Estácio de Sá no campus II,
de Petrópolis.


Giovanni se despede. Conversaremos mais sobre literatura brasileira quando
ele voltar do Rio Grande do Sul. Certamente também ele me trará novidades, pois
nessas viagens vai nos unindo.


Quando alegre partiste é o melhor romance de 2005. Dou-lhe este prêmio
singular, conferido por minha rasa pessoinha. Não li nenhum melhor do que este
de Moacir Japiassu. Se consultado, todos saibam de antemão que meu voto é este,
é para ele. Não deixemos que desta vez engambelem o distinto público com livros
menores. Atenção, editores da Veja: o Brasil está também nos livros,
viram?