Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A revolta que não sai no jornal

** ‘Número de pessoas atingidas por intoxicação no Blue Tree Park chega a 70’

** ‘Mais de 100 pessoas se intoxicaram em hotel’

As manchetes, os titulares correram as páginas dos jornais de todo o Brasil. Quando este artigo for publicado, é possível que o número de vítimas ultrapasse o número 250. Todas, número à parte, pessoas, pessoas como as tomam a sociedade brasileira, de classe média, Juízes de Direito em maiúsculas, esposas, filhos. Todas, Pessoas, enfim. Haviam ido a um congresso no Hotel Blue Tree Park, nome muito bonito em Miami, trazido para o sol do Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco.

O hotel, para quem não sabe, é um luxo de nobres árabes em versão classe média. Chama-no até de resort, na propaganda. Que diz mais:

‘Cercado por maravilhas naturais e de frente para um mar de areias brancas e águas cristalinas, o Blue Tree Park Cabo de Santo de Agostinho oferece um ambiente de requinte e bom gosto, aliado a uma completa estrutura de lazer e serviços. Situado a 37 km do sul da cidade do Recife, em frente das piscinas naturais formadas por arrecifes e a 45 minutos do aeroporto internacional’.

Nele existem apartamentos que atingem 61 metros quadrados de área individual, e para todos, Pessoas, queremos dizer, piscinas, quadras de tênis, campo de futebol, ciclovia, pista de cooper, fitness, windsurf, jet-ski, fitness center, home theater, kids club.

O primeiro óbito foi o de uma criança de 9 anos, filha de um casal de juízes. Espera-se que, óbito, seja o último. Mas de um total de 243 participantes do congresso, segundo o Jornal do Commercio, 104 sofreram vômito e disenteria. Como 600 participaram do inesquecível fim de semana, é razoável estimar que 256 apresentem os mesmos sintomas. Diante do escândalo, de Pessoas que jamais pensaram pagar tão caro por um congresso, o Poder Público foi acionado.

Em valores materiais, o que sempre pesa, o encontro rendera cerca de 1 milhão de reais ao Blue Tree Park, para quatro dias, metade paga pelos juízes, metade paga pela Associação dos Magistrados. Então o Poder Público tomou suas medidas, fez o que deveria ser uma rotina: fechou a cozinha, a padaria, o bar e o restaurante do resort, porque 35 cuidados obrigatórios de qualidade dos alimentos não eram cumpridos. Coisas elementares, mas fundamentais, como o controle da temperatura da câmara frigorífica, estavam desprezadas.

Belo restaurante, maravilhosos apartamentos, mas cozinha pequena, muito pequena e estreita para o número de empregados e de alimentos, percebe agora a Vigilância Sanitária. O que vale dizer, e os vigilantes não dizem: a criadagem pena aqui atrás para que sorriam lá na frente as Pessoas de 250 dólares de diária.

Uma outra Vigilância

Uma outra notícia, na mesma semana, vem do mundo das pessoas com ‘p’ minúsculo. Do mundo da criadagem, até o limite dos que não ganham 250 dólares por mês. O sítio pernambucano da Rede Globo, na quinta-feira (10/11) avisava:

‘A emergência cardiológica do hospital universitário Oswaldo Cruz, no bairro de Santo Amaro, no Recife, está com seu atendimento comprometido nesta quinta-feira (10) devido à superlotação. Por conta disso, os médicos estão fazendo uma triagem e atendendo apenas aos casos reais de emergência, como ocorrência de enfarto ou parada cardíaca, por exemplo’.

O redator, na pressa do online, nada nos esclarece das circunstâncias precisas em que alguém pessoa deve procurar a emergência, se antes ou depois do óbito. Digamos que na iminência, nesse autêntico serviço para iminentes. O que quer dizer, por esse novo critério: na emergência do Hospital Oswaldo Cruz, o indivíduo ou chega muito cedo ou muito tarde. Na primeira hipótese, não será atendido. Na segunda, será inútil qualquer atendimento.

Vejamos se o Diário de Pernambuco do dia seguinte nos explica melhor. Na página B7 da edição de sexta (11/11), publica-se a foto de uma senhora com a seguinte legenda: ‘Aposentada Lídia Abreu voltou novamente para casa, pela quarta vez, sem realizar um cateterismo’.

Não era um caso real de emergência, com absoluta certeza, porque a senhora andava e prestava declarações. Entremos então no texto:

‘A superlotação na emergência cardiológica do Hospital Universitário Oswaldo Cruz – problema crônico que se arrasta há anos na unidade – obrigou ontem o setor a restringir drasticamente os atendimentos. Dos habituais 70 pacientes recebidos durante o período da manhã, somente 13 foram admitidos ontem. O principal problema, segundo os médicos, é a falta de leitos e de infra-estrutura para atender à demanda de doentes que procuram o hospital. No início da tarde de ontem, os sete leitos disponíveis no setor abrigavam de fato 38 pacientes, o equivalente a mais de cinco vezes a sua capacidade….’.

Sim, mas como 7 leitos abrigam 38, como é possível? Então vem o que parece uma explicação, para essa média de 5,43 pessoas por cama:

‘Foi o caso do vigilante Luiz Ferreira, 60, diabético e hipertenso. Internado na unidade com um princípio de enfarte [grifo meu], ele estava há mais de 48 horas acomodado em um banco…’.

Ah, bom, na unidade somente se deita quem estira e estica em definitivo o corpo. Ou quem tiver a sorte de morrer primeiro.

O leitor já vê que entrar no mundo das pessoas com ‘p’ minúsculo é o mesmo que derrubar todo e qualquer projeto de um escritor com ‘e’ pequeno. Quando lemos essa notícia, nós imaginávamos ressaltar, no momento da escrita, os poderes extraordinários dos médicos do atendimento público. Agora vemos que isto é insuficiente. Os médicos não têm outra escolha. Eles decidem lá, numa lógica infernal, quem deve ser defunto e quem pode adiar o fim. Pensávamos antes que os médicos, nessa conjuntura, seriam Deus. Não, eles têm a força do Diabo. O seu poder não é bem o de salvar, mas o de condenar. Matam sem revólver. O paciente se salva por força inexplicável do próprio organismo.

Onde as notícias se encontram

Nós, que estamos à margem da louca produção, podemos ligar as notícias e vê-las com os olhos da experiência. A não ser a última hora para enviar o texto, nada nos apressa. Daí que podemos melhor ver, longe dos prazos da indústria da notícia. E vemos: há uma revolta silenciosa, há uma surda vingança dos excluídos no Brasil. Nada patológica, nada absurda, nada que espante, ainda que nos choquem e nos causem repulsa os efeitos dos monstros que criamos.

Ainda que não desejemos, ainda que não nos faça bem a vista e a notícia das vítimas encarnadas em Pessoas com P, bem compreendemos que elas também sejam atingidas. Uma expressão do que chamam distribuição de renda no Brasil poderia dizer que a massa de excluídos respira e se sufoca no meio do fausto. Ora, no caso da intoxicação geral do Blue Tree Park ninguém, ninguém se pergunta ou perguntou por que os empregados do hotel não foram também intoxicados. Era e é natural. Se eu, empregado, nado com fome em meio ao filé, por que dele também não retiro um pedaço? Mas não, até aqui, não se sabe de vítimas entre cozinheiros e garçons. É natural.

A hipótese mais provável é que do cardápio servido não comeram para matar a fome. Com a minha experiência, digo que certamente provaram, furtaram pequenos, muito pequenos nacos, tão pequenos quanto as suas pessoas de pessoas com ‘p’. Mas comer, comer e se envenenar à farta, não. Isto ficou para os Doutores. E por isso escaparam.

Escrevemos fausto, e emendamos, fausto, que fausto, menos, bem menos. Temos visto em pequenos restaurantes como a nossa classe média trata a pessoa com ‘p’ que lhes serve. Que desprezo! O cidadão de direitos não olha para o empregado que existe sem nenhuma garantia. Dirige-lhe, melhor dizendo, rosna, vocifera o prato escolhido e se mantém raivoso, hostil, perigoso e áspero a qualquer aproximação. Pelas carnes gordas e carantonha tais Pessoas nos lembram sempre um buldogue, sem coleira sentado em frente à mesa de um circo. Imaginamos sempre a mágoa que fica num homem tratado assim por um cão, que usufrui a superioridade de uma sociedade de classes.

Menos que imaginamos às vezes. Vemos, percebemos, sentimos. Quando vamos comprar frios, queijos, sentimos. E aqui a nossa experiência particular deve ter algo de universal. É flagrante a má vontade com que um empregado ou empregada nos atende, é acintosa a indiferença e dificuldades que põe a qualquer consideração sobre tipo ou maciez do queijo escolhido. ‘Só tem este… Tem não… Acabou’, diz-nos, a custo. É grande a pena, a mesquinhez com que corta fatias que, sobrepostas, muito demoram a atingir o peso pedido. Isto em nós, em lugar de causar alguma raiva, muito nos envergonha. Porque sabemos que o empregado nos serve o que não poderá comer. A não ser por furtos, por pequenos e miseráveis furtos, como se fosse um mísero e pequeno roedor.

‘Tem não’ é pouco.

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Jornalista e escritor