‘Eduardo Oliveira é um leitor do PÚBLICO a residir, actualmente, no Japão, onde lê o jornal ‘na versão electrónica quase todos os dias’ e recebe ‘ a versão impressa de domingo’.
Dirige-se ao provedor pedindo esclarecimentos sobre o uso, em vários órgãos de comunicação social, da frase ‘doença prolongada’, em notícias de óbitos: ‘Esta expressão é utilizada exclusivamente em relação ao cancro? Em que outras situações é utilizada? Se não é exclusiva de cancro porque não utilizar a palavra ‘cancro’?’
Uma questão simples, mas só aparentemente. Porque, todos os dias escrita e lida, todos os dias presente nas páginas da imprensa, a frase oculta-se numa origem difícil de localizar.
Vários jornalistas consultados, portadores de experiências diversas e mais ou menos vastas, convergem no desconhecimento das circunstâncias em que a alocução entrou no léxico jornalístico. E reflectem sobre ela, como se o fizessem pela primeira vez.
Não está prescrita em nenhum manual, não parece ter sido criada por nenhum mestre de jornalismo, não se usa segundo uma regra rígida que não admita excepções. Mas persiste. Certamente, em nome de um pudor inicial de respeito pela privacidade, que evita nomear uma palavra símbolo de mal e, por isso, em si mesma, ‘maldita’. De tal forma, que passou a usar-se, em sentido figurado, em qualquer contexto: ‘o ódio é um cancro que enfraquece o espírito’ (Dicionário Houaiss).
Os princípios gerais da comunicação jornalística ensinam a linguagem exacta e directa, como o melhor veículo para informar. O contrário da indefinição que a expressão ‘doença prolongada’ representa. Também recomendam vigilância contra lugares-comuns, frases feitas, ‘clichés’ de linguagem. O contrário de uma alocução que entra na galeria de exemplos de um certo ‘jornalês’. E, no entanto, talvez seja já difícil distinguir a quem mais se deve a actualidade da expressão. Se aos jornais que a terão criado, se à comunidade que a adoptou. Isto é: são os jornalistas que codificam a doença que a fonte lhes transmite ou é já a fonte que comunica a doença sob a forma eufemística, por assim a querer ver noticiada?
E, perguntando com o leitor, a expressão apenas serve para substituir a palavra cancro, ou oculta também outras doenças?
A variedade de enfermidades, a difícil definição de algumas, a ‘maldição’ social que atinge outras, tem justificado, certamente o recurso àquela formulação ou a outras, comparáveis, embora menos usadas, como ‘doença incurável’.
A propósito, cita-se o trabalho de Nelson Traquina, ‘O jornalismo português e a problemática da VIH/SIDA: um estudo exploratório’, onde se refere que ‘significativamente, a primeira notícia [sobre sida] publicada [em 5 de Abril de 1982 ] no Diário de Notícias tinha o título Cancro nos homossexuais’. (1)
Seja para referir mortes provocadas por doenças do foro oncológico ou outras, a imprensa portuguesa não é consensual na caracterização das razões do óbito. O ‘Expresso’ recorreu à expressão ‘doença prolongada’ para noticiar os desaparecimentos recentes de personalidades, publicamente, conhecidas, como o general Kaúlza de Arriaga, o maestro Thilo Krassmann, o bispo D. António Monteiro e o dirigente desportivo Henrique Reis Pinto.
Esta prática não decorre, no entanto, de nenhuma decisão tomada no jornal: ‘não vejo outro motivo para explicar o uso da expressão que não seja a tradição, uma vez que o seu significado está hoje já descodificado’ – disse, ouvido a propósito, Henrique Monteiro, subdirector do semanário.
Sobre as causas daquelas mortes, bem como do falecimento do deputado Acácio Barreiros, o ‘Diário de Notícias’ informou de forma idêntica.
Situando o eufemismo – tal como Henrique Monteiro – numa atitude de pudor perante a doença, Mário Bettencourt Resendes não recorda qualquer doutrina específica sobre a matéria, contemplada no Livro de Estilo do ‘DN’. Jornalista há cerca de 30 anos (actual director-geral de publicações, após 12 anos como director do jornal) não se recorda de nenhuma decisão sobre o uso da expressão: ‘foi passando de geração em geração, como forma de respeitar a privacidade do falecido, num misto de pudor, bom senso e sensibilidade’.
A fórmula não parece ser portuguesa e não é apenas usada entre nós. O jornal francês ‘Libération’ informou os seus leitores que Claude Nougaro faleceu na sequência de uma doença prolongada (‘des suites d’une longue maladie’), enquanto o ‘Figaro’ informava que o cantor fora vítima de cancro. Tal como o ‘Le Monde’. Jornal que, no entanto, também noticiou que o historiador Michel Trebitsch morreu de cancro (‘à la suite d’un cancer’). O jornal noticia conforme dispõe ou não de informação precisa, ou é a vontade das famílias que determina a diferença?
O ‘Guardian’, inglês, também nomeou o mal de Nougaro, embora na imprensa anglo-saxónica também se use a expressão ‘long term illness’, não necessariamente em substituição da doença.
Ainda como mero exemplo, o diário espanhol ‘El Pais’ noticiava, recentemente, a morte de uma personalidade (Maria de Salamanca, Condessa de Los Llanos) como ‘consecuencia de un cáncer’, apesar de no Livro de Estilo deste jornal não se ter encontrado nenhuma recomendação específica sobre a questão. Ao contrário do que acontece com o Manual de Redacção do diário brasileiro ‘O Estado de S.Paulo’: ‘não há motivo para preconceito e o leitor merece a informação correcta, seja a morte decorrente de suicídio, seja de doenças como a Aids [sida] o cancro, a leucemia ou outras’.
Na imprensa portuguesa e para além dos dois casos referidos, citamos ainda alguns exemplos soltos (apenas ilustrativos, já que não resultam de uma recolha sistemática): O semanário ‘O Independente’ usou o eufemismo para noticiar as mortes de Thilo Krassmann e de Kaúlza de Arriaga, enquanto a revista ‘Visão’ e o diário ‘24 Horas’, nomearam a doença que vitimou o deputado Acácio Barreiros. Tal como o ‘Jornal de Notícias’ que usou a formulação ‘vítima de doença cancerígena’.
Sem um levantamento que permita tirar quaisquer conclusões seguras, registamos apenas que parece não haver normas universais, variando a conduta conforme os jornais e até conforme os jornalistas, numa matéria que não exclui a componente cultural.
No seu ‘manual’ (2), o jornalista Daniel Ricardo, considera que, em geral, os eufemismos ‘escamoteiam a informação. Ou desinformam’. Por isso, defende que ‘não há razão para se escrever que fulano morreu de doença incurável (ou prolongada), quando se sabe que a causa da morte foi, por exemplo, um cancro’.
O PÚBLICO segue esta linha, estabelecendo o seu Livro de Estilo, na entrada ‘doença’: ‘São chavões inaceitáveis ‘doença incurável’, ‘doença grave/que não perdoa’, ‘depois de prolongada doença’.E foi de acordo com este preceito que o jornal noticiou o desaparecimento das figuras atrás referidas (tendo usado, a propósito da morte do bispo de Viseu, a variante ‘na sequência de doença oncológica’).
Exactamente por isso, estranhou o provedor que o jornal tivesse referido Thilo Krassmann como ‘vítima de uma doença prolongada’, na notícia da sua morte: ‘Tem toda a razão, foi um erro’ – respondeu à interpelação a jornalista Bárbara Reis. A editora da secção Cultura, esclarece que, considerando que ‘as doenças não são uma vergonha’, a prática do jornal é dizer a causa da morte, excepto ‘quando há uma razão específica, como um pedido da família’.
Bárbara Reis inclui o eufemismo em apreciação numa lista de ‘cerca de 40 expressões ‘proibidas’ na secção Cultura’, com o intuito de se ‘evitar a repetição de ‘bengalas’ de escrita, frases feitas, expressões muito usadas e sinónimos rebuscados’.
Alguns casos: ‘foi a nota dominante’, ‘marcar presença’, ‘por terras de’, ‘comecemos pelo princípio’, ou o clássico ‘no nosso país’, que, por exemplo, exclui todos os leitores que não sejam portugueses’.
Mas então como se explica o erro?
A editora esclarece que a notícia foi feita com base em telegramas da agência de notícias Lusa, que usou a expressão (e a atribuiu a ‘fonte hospitalar’). Em conclusão: ao usar, nos termos em que o fez, material de agência, sem citar a origem, foi cometido um erro; ao usar, por essa via, uma expressão que o jornal reprova, foi cometido outro erro. Ambos tipificados nas regras do jornal. Além do mais, quem o alheio veste…
P.S. – Ao contrário do que se escreveu nesta coluna, no passado domingo, dia 4, Nuno Ramos de Almeida não é jornalista do diário ‘24 Horas’ (uma informação que se considerou de interesse para os leitores, dada a natureza das questões em apreciação). O desmentido é feito pelo jornalista, bem como pelo director-adjunto daquele jornal, Miguel Pinheiro.
Não é pelo facto de o nome de Nuno Ramos de Almeida ter figurado na ficha técnica do diário, até ao dia 16 de Março, que a informação publicada deixa de ser um erro. Por isso se corrige.
(1) ‘O jornalismo português em análise de casos ‘, Nelson Traquina, Ana Cabrera, Cristina Ponte, Rogério Santos, Editorial Caminho
(2) ‘Ainda bem que me pergunta, manual de escrita jornalística’, Editorial Notícias’