Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Viva loucamente, Gabriela

Gabriela, quando adolescente, era modelo. Aí, desenvolveu uma doença degenerativa, seus músculos atrofiaram e ela passou a andar de cadeira de rodas. Esse foi o resumo imbecil que me passaram, ao ser convocada para entrevistar uma das pessoas que mudaram a minha vida. Resumir pessoas é o mesmo que matá-las pela ausência da palavra, da emoção, da história e da oração. Resumir pessoas é tarefa para cirurgião – só um especialista em corpo humano ou em artes plásticas para saber o que ainda está pulsando e o que pode ser descartado.

Na época da entrevista, Gabriela tinha 29 anos, cabelos loiros e compridos, olhos azuis de céu de outono e um beijo da tristeza nas pálpebras. Ela morava em uma casa grande, bonita e com o charme das coisas antigas. Havia bastante espaço para andar com sua cadeira de rodas. Na sala de estar, havia fotos de sua infância luminosa e adolescência. Era criança digna de propaganda de café da manhã.

A mãe de Gabriela era superprotetora. Quis ficar ao lado da filha, durante a entrevista. Interrompia a garota, fazia observações irônicas e, repetidamente, humilhava os desenhos que o destino fez pela vida da família. Até que uma hora Gabriela deu um grito e a mãe retirou-se. Assim, o clima ficou bem mais leve e conseguimos conversar com naturalidade.

Gabriela começou a sentir que havia algo de errado com sua vida perfeita perto dos 16 anos. Em certos momentos, sentia dificuldades para caminhar. Para não assustar aos outros e não sentir-se vítima, não falava de suas dificuldades para ninguém. Os meses se passaram e era cada vez mais difícil dar um passo atrás do outro. O cúmulo foi o dia que ela estava na sala de aula e não conseguiu se levantar para ir ao banheiro.

Socar o próprio rosto

Já entrevistei várias pessoas que eram obrigadas a viver na cadeira de rodas. Pessoas que pensavam de maneira diferente, com histórias diferentes, com sonhos diferentes e marcas de expressão diferentes. Mas todas concordaram que é um lixo ter que depender de outras pessoas para realizar tarefas básicas do dia-a-dia, como ir ao banheiro. Isso porque sentem que estão incomodando os outros. Ser dependente da paciência e da boa vontade dos outros é uma das piores prisões do ser humano.

Gabriela disse que, ultimamente, sentia que seu coração poderia atrofiar a qualquer momento. O fotógrafo que estava comigo disse: “Deixe de ser boba, Gabriela. Seu coração não vai parar.” “Desculpe-me”, disse a garota, “mas isso não é uma invenção minha. O médico disse isso mesmo. Meu coração pode parar a qualquer momento, sim.” Eu e o meu colega mergulhamos em um silêncio de medo que não foi quebrado nunca mais. No auge da minha ingenuidade de repórter novata, fiz uma pergunta pela qual eu me arrependeria em todas as minhas noites de insônia. “E o futuro, Gabriela? Quais seus sonhos, como você se vê no futuro?” Ainda bem que a garota foi paciente e piedosa comigo. “Se eu viver até amanhã, já está bom.”

Eu resolvi perguntar isso porque, quando deparamos com pessoas em situações difíceis, geralmente enaltecemos o futuro como uma entidade que carrega bons agouros e esperança. Mas até disso Gabriela tinha se desapegado. Eu queria socar meu próprio rosto quando ouvi essa resposta. Acho que o fotógrafo também queria me socar. Provavelmente, essa entrevista rendeu a ele um melhor aproveitamento da vida, mas algumas madrugadas de terror também.

Objetivo e explicação

Para fazer a foto, o meu colega sugeriu que Gabriela se aproximasse de um arbusto recheado de rosas brancas, no jardim. “Posso fazer uma coisa diferente?”, pediu Gabriela, com a mesma expressão sapeca de suas fotos de infância. “Pode!”, incentivou o fotógrafo, talvez mais criança do que ela. Devagar, Gabriela apoiou as mãos nos braços da cadeira. E foi levantando muito lentamente. Senti aquele aperto na garganta, aquela vontade maluca de chorar e desaparecer do alto de minhas pernas saudáveis. Olhei para o fotógrafo: ele chorava loucamente, enquanto fotografava Gabriela equilibrando-se de pé. Chorei junto com ele. Apenas a garota sorria. Sorria igual criança aprendendo a andar e a descobrir o mundo. Chorei o resto do dia. E choro agora também, lembrando de tudo isso.

Sempre que me sinto um lixo por algum motivo bobo dessa vida, fico me perguntando se o coração de Gabriela ainda bate. Então, me dou conta que meu coração também bate, bate avidamente, procurando por esses pequenos grandes motivos que tornam a nossa existência muito mais valiosa. E entendo que tudo nessa vida tem um objetivo e uma explicação, mesmo que abstrata para nossos olhos humanos, beijados pela tristeza.

***

[Vanessa Bencz é jornalista, Joinville, SC]