‘O bom jornalismo corre o risco de ficar em segundo plano e dar lugar, na lista de prioridades das empresas de comunicação, aos interesses comerciais e à busca do lucro a qualquer preço. É o que o jornalista Ruy Mesquita, diretor de Opinião de O Estado de S. Paulo, chamou de ‘murdochização’, ao receber o Prêmio Personalidade da Comunicação 2004, anteontem, na abertura do 7.º Congresso Brasileiro de Jornalismo Empresarial, Assessoria de Imprensa e Relações Públicas, que termina hoje com mais uma série de palestras.
O termo faz referência ao empresário Rupert Murdoch, que investe em empresas de comunicação no Reino Unido sem critérios ou compromissos com o bom jornalismo. O objetivo de Murdoch, ao comprar redes de televisão ou investir em times de futebol, é meramente obter o maior lucro possível. ‘O jornalismo sofre hoje uma terrível ameaça pelo que chamo de ‘murdochização’ da imprensa’, alertou Ruy Mesquita, ao agradecer o prêmio recebido anteontem.
O trabalho independente da política editorial, em relação ao aspecto comercial de uma empresa de comunicação, é fundamental para a prática do jornalismo, explicou Ruy Mesquita. ‘Julio de Mesquita Filho só fez seu trabalho porque tinha como diretor-financeiro seu irmão, Francisco Mesquita.
Foi condição básica para o êxito Francisco Mesquita entender a separação entre o empresarial e a política editorial’, contou o jornalista, filho de Julio de Mesquita Filho e sobrinho de Francisco Mesquita. ‘O Estado só pôde exercer o bom jornalismo porque houve união total e absoluta entre os membros da família.’
Ao referir-se novamente a Rupert Murdoch, Ruy Mesquita disse que a opção do empresário pela imprensa foi por considerar o setor rentável, independentemente de como obteria este retorno financeiro. ‘Se ele achasse que fabricar salsichas dá mais dinheiro, venderia salsichas.’
Engajamento – O diretor do Estado também lembrou outra importante característica do jornal. ‘Fomos sempre imparciais na informação, mas absolutamente engajados nos principais embates políticos nacionais e internacionais que consideramos importantes para a democracia’, observou. Além da posição engajada de Ruy Mesquita em favor da democracia, sua defesa incondicional da liberdade de imprensa foi levada em conta pela comissão que indicou o jornalista a receber o Prêmio Personalidade da Comunicação 2004.
É justamente a democracia que corre maior risco quando o interesse comercial se sobrepõe à independência editorial. ‘A fusão de grandes grupos e a incorporação de empresas de comunicação por grandes conglomerados, como vemos nos Estados Unidos, deve suscitar a reflexão das pessoas preocupadas em fazer um bom jornalismo’, diz Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo, um curso em parceria com a Universidade de Navarra. Ele cita como exemplo a Time/Warner e questiona se o grupo tem a mesma liberdade editorial – e credibilidade – de antes da fusão. ‘No Estado nunca o interesse comercial se sobrepôs à independência, mesmo nos períodos em que o jornal enfrentou censura e intervenção’, lembra. De acordo com ele, são valores que se perpetuam, principalmente a credibilidade, que sustentam a longevidade da empresa.
Perenidade – E longo prazo é justamente a chave do sucesso, de acordo com Jimmy Cygler, professor titular de MBA da ESPM Business School. ‘As empresas piraram’, diz Cygler, um americano de nascimento com cidadanias israelense e brasileira, há 14 anos por aqui.
‘Elas querem alto lucro em curtíssimo prazo, pressionadas por investidores e acionistas. Para isso, muitos executivos sacrificam diariamente, no processo de decisão, a perenidade da empresa, fatores que podem garantir sua sobrevivência por décadas’, explica, lembrando que para muitos executivos um mero trimestre hoje já é considerado ‘longo prazo’.
‘As pessoas se esqueceram que a razão de ser de qualquer empresa é servir a comunidade e o lucro é decorrência disso’, sentencia. Ele lembra que grandes conglomerados apontados há dez ou cinco anos como grupos bem-sucedidos simplesmente quebraram. ‘É muito mais inteligente ter como meta empresarial a perenidade e ter em mente que lucro não é a razão de ser de uma empresa, porque nenhum funcionário vai trabalhar motivado e fazer um produto se acordar todo dia pensando que sua meta na vida é enriquecer acionistas’, diz ele. Para o especialista, a seleção é feita pelo mercado, que reconhece a qualidade e a confiabilidade do produto e garante a perenidade da empresa.’
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‘‘Grande ameaça é a ‘murdochização’’, copyright O Estado de S. Paulo, 16/04/04
‘Eis o discurso de Ruy Mesquita na entrega do Prêmio Personalidade da Comunicação 2004
‘Como eu tinha dito, desde que a comissão encarregada de me participar a escolha do meu nome para esta homenagem (me comunicou), eu aceitei exclusivamente porque queria que fosse uma homenagem não a mim pessoalmente, mas ao jornal que neste momento eu dirijo. Porque os homenageados, os que merecem realmente esta homenagem – a minha parte nisso é apenas o mérito de ter seguido, na medida das minhas capacidades e qualidades que porventura eu tenha, exatamente os rumos traçados por aqueles que me antecederam – são os que estiveram desde o começo da família Mesquita como dona da empresa, lá no cabeçalho do jornal. Só puderam fazer esse tipo de jornalismo porque houve uma união total e absoluta entre os membros da família que participaram da vida do jornal como diretores.
O dr. Julio de Mesquita Filho pôde fazer o que ele fez e não poderia ter feito sem isso, porque ele teve ao lado Francisco Mesquita como diretor da parte empresarial do jornal e que era mais engajado que ele próprio, Julio de Mesquita Filho, em seus ideais político-ideológicos-culturais, que nortearam a sua direção da política editorial do jornal. A condição básica para o êxito de Julio de Mesquita Filho foi o fato de Francisco Mesquita entender perfeitamente a separação total e absoluta entre a parte empresarial, os interesses comerciais, o marketing e a política editorial.
Tiveram também, os dois, a sorte de ter em seus filhos o mesmo tipo de apoio que um deu ao outro quando estes assumiram cargos de direção ou cargos executivos, tanto aqueles, como meus irmãos e eu, que fomos para a parte de redação, como os filhos do dr. Francisco, que foram para a parte industrial e empresarial. Eu quero nomeá-los hoje para que eles recebam a homenagem que merecem: Luiz Vieira de Carvalho Mesquita, Julio de Mesquita Neto, José Vieira de Carvalho Mesquita e Luiz Carlos Mesquita.
Com as mortes de Julio e Francisco Mesquita no mesmo ano de 1969, Julio Neto assumiu o comando da redação ao mesmo tempo que José e Luiz Mesquita dividiam a área empresarial, antes comandada pelo pai. E deles Julio Neto teve o mesmo irrestrito apoio que tinha seu pai para prosseguir com sua política editorial absolutamente independente de considerações de ordem comercial e de temor de represálias do poder ditatorial. Foi o que lhe possibilitou a luta aberta contra a censura, que lhe valeu o maior prêmio da imprensa mundial, a Pena de Ouro, da Federação Internacional dos Editores de Jornais, ‘pela sua corajosa e solitária luta contra a censura à imprensa no Brasil’.
Se não fosse a manutenção dessa separação rigorosa entre o interesse comercial e os ideais políticos e culturais, nós não tínhamos chegado onde chegamos.
Infelizmente, é esse tipo de jornalismo que sofre hoje uma terrível ameaça e pode ter sua vida interrompida, daqui para a frente, pelo que chamo de ‘murdochização’ da imprensa, ou seja, a subordinação dos interesses da política editorial aos interesses de marketing dos jornais. Porque houve essa total sinergia entre o comando comercial e administrativo do jornal e o comando editorial que o jornal pôde assumir, sistematicamente, posições marcadas. Ao contrário dos jornais que se gabam de serem imparciais.
O Estado de S. Paulo, ao longo de toda a sua história, a começar pelo episódio da Guerra de 14, descrito aqui pelo meu filho sobre o comportamento do meu avô, Julio de Mesquita, assumiu posição nítida contra os alemães e a favor dos aliados, o que lhe custou a perda de todos os anúncios do comércio alemão daquela época, fortíssimo em São Paulo, o que provocou a primeira crise da vida financeira deste jornal. Depois disso, ao longo do tempo do meu pai, que foi certamente o mais difícil da vida do jornal, na medida em que a Revolução de 30, traída, o levou a se opor decididamente ao regime de Getúlio Vargas, primeiro liderando a Revolução de 32 e, depois da vitória política da Revolução de 32, com a traição de Vargas aos princípios que pareciam vencedores da constitucionalização do País, deu o Golpe de 37. O meu pai voltou para o exílio em 38, arriscando tudo e perdendo daquela vez porque o jornal foi ocupado pelas forças ditatoriais e durante cinco anos esteve ocupado pela ditadura. Quando Getúlio Vargas finalmente foi deposto, em 45, e o jornal foi devolvido à família, aí é que foi a fase em que a terceira geração, da qual faço parte, começou a trabalhar.
(………) Mas repito que a grande ameaça que pesa sobre a imprensa escrita é a ameaça da ‘murdochização’, é a ameaça da governança corporativa, que faz com que as empresas jornalísticas sejam administradas com critérios de empresas de qualquer tipo. O sr. Murdoch escolheu o setor da mídia porque achou que parece que daria mais dinheiro do que fabricar salsichas. Mas se ele estivesse convencido de que fabricar salsichas dava mais dinheiro do que dirigir jornais e televisões, certamente que ele iria fabricar salsichas.
Esse é o grande perigo que corre a imprensa: que jornais como O Estado de S. Paulo não possam mais existir em futuro não muito remoto.’’
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‘Miguel Jorge relembra a trajetória do jornalista’, copyright O Estado de S. Paulo, 18/04/04
‘Na entrega do Prêmio Personalidade da Comunicação 2004, anteontem, coube ao jornalista Miguel Jorge, que fez parte da equipe original que implantou o Jornal da Tarde e depois foi, durante dez anos, diretor de Redação do Estado, saudar o jornalista Ruy Mesquita.
‘Sei que ele só concordou em estar aqui’, disse Miguel Jorge, ‘se os homenageados fossem os jornais que dirige, e não ele próprio, Ruy Mesquita.
Isso porque a história desses jornais confunde-se com a história da família Mesquita. A alma desses jornais é a alma dos Mesquita’.
Observou que não se pode falar do Jornal da Tarde, que revolucionou a imprensa paulista, ‘sem falar do empreendedor Ruy Mesquita. Ele mesmo já disse que este foi o trabalho de que mais gostou em toda sua extensa e rica vida profissional’.
Miguel Jorge recordou alguns episódios da vida de Ruy que, ‘tal qual o pai, é um grande cidadão brasileiro, com toda uma vida ligada à história brasileira contemporânea, à liberdade de imprensa e ao prazer e orgulho de ser jornalista’.
Lembrou que, sempre inconformado com a censura ao Estadão e JT, quando foi vetada a publicação da notícia da demissão do então prefeito Figueiredo Ferraz, Ruy Mesquita enviou um irônico protesto ao ministro Buzaid: ‘Os censores nos impedem de noticiar todos os fatos relacionados à demissão do prefeito e de defender sua atuação em nossos editoriais. Aguardamos instruções da censura para que não se publiquem notícias referentes às derrotas do São Paulo Futebol Clube’ – o time do governador Laudo Natel, que demitira Figueiredo Ferraz.
Na juventude, Ruy lutou contra a ditadura de Getúlio Vargas. Em novembro de 1943, ele, seu primo José Vieira de Carvalho Mesquita, o Juca, e o amigo Celso Medeiros queriam divulgar um manifesto contra Getúlio, mas não tinham onde imprimir o material. Não pensaram duas vezes: tomaram o mimeógrafo do Clube Harmonia e botaram o manifesto nas ruas.
Reportagens – Com Fernando Mitre e Fernando Portela, Ruy Mesquita fez uma memorável série de reportagens a respeito das estatais brasileiras, que recebeu o título de ‘A República Socialista Soviética do Brasil’ e teve enorme repercussão no País.
Nos anos de chumbo da ditadura militar, em que se perseguia os jornalistas – e até se matava jornalistas -, ele escondeu um dos profissionais procurados em sua própria casa. Quando Wladimir Herzog foi preso e assassinado no DOI-Codi, Ruy acompanhou pessoalmente um jornalista do JT que, intimado a depor no quartel da Polícia do Exército, na Rua Tutóia, pediu ‘asilo’ em sua casa. Ao chegar, contou Miguel Jorge, Ruy chamou o oficial do dia, identificou-se e disse: ‘Veja que meu homem está inteiro, sem um arranhão.
Quero recebê-lo de volta exatamente como ele está entrando no quartel. Esse jornalista saiu vivo do interrogatório.
‘Essas histórias contam um pouco quem é Ruy Mesquita. Por isso’, afirmou Miguel Jorge, ‘saúdo o defensor da liberdade de imprensa, da democracia e de um país livre e justo. Saúdo o jornalista que, certa vez, ao ser perguntado sobre como gostaria de ser lembrado, respondeu: ‘Gostaria de ser lembrado exatamente como me lembro das pessoas a quem eu quis bem e que já desapareceram – ou seja, ser lembrado principalmente pelo prazer da companhia, pela afinidade. Gostaria de fazer parte da paisagem humana de muitos amigos, mesmo depois da minha morte, como muitos amigos e muitas pessoas queridas fazem parte até hoje da minha paisagem humana depois de terem partido’.’
CASO SANTORO
‘Ministério Público, ética e oportunismo’, copyright Folha de S. Paulo, 17/04/04
‘A revelação de uma nova fita gravada, a qual reproduz conversa entre um procurador da República e um empresário apontado como bicheiro, tendo como objeto o pedido de propina feito por um subchefe do gabinete civil da Presidência da República, gerou imediatos efeitos no cenário político e jurídico brasileiro.
O fato de a conversa ter ocorrido de madrugada, às escondidas e considerando o teor das palavras ditas pelo membro do Ministério Público provocou violenta reação por parte de lideranças do governo, que passaram a afirmar a existência de uma conspiração que desmereceria de maneira total os fatos anteriormente noticiados referentes ao ‘Waldogate’. Além disso, embora tenha havido declarações públicas por parte do governo federal e de suas lideranças mais responsáveis, no sentido de concentrar as críticas na conduta de alguns procuradores e não generalizá-las para a instituição do Ministério Público, o fato é que, informalmente e nos corredores do Congresso, ouviam-se ameaças de represálias à instituição e suas atribuições, inclusive com acenos à ‘Lei da Mordaça’.
Tudo isso nos obriga a algumas reflexões.
O Ministério Público é fiscal da constitucionalidade e da legalidade dos atos da administração em geral. Exerce, portanto, uma atividade que deve primar pela ética e que deve ser realizada com absoluto respeito aos seus princípios, sob pena de invalidar juridicamente seu trabalho e de perder a sua autoridade moral. Independentemente do que for esclarecido na apuração prontamente instaurada pelo procurador-geral da República, a primeira impressão que ficou foi negativa, sendo difícil uma explicação totalmente convincente para ouvir alguém de madrugada, escondendo tal fato do chefe da instituição e ainda pelas frases referentes à queda de ministros e do governo. A conduta adotada causou claro dano institucional ao Ministério Público e atiçou os apetites de todos quantos querem vê-lo diminuído ou amesquinhado na sua capacidade de trabalho e investigação.
É preciso deixar claro que condutas profissionais que firam a ética devem ser repelidas com vigor, partam de onde partirem, e são absoluta exceção no cotidiano da instituição. A ética da convicção não pode ser substituída pela ética da responsabilidade, em que os fins justificam os meios, mesmo que seja para a apuração da conduta de alguém tido como um grande vilão.
Presta um grande desserviço à causa republicana e democrática quem possa deixar dúvidas quanto a seus métodos e sua motivação.
É preciso lembrar que há aproximadamente meio século, César Salgado, uma das maiores figuras do Ministério Público brasileiro, no seu ‘Decálogo do Promotor de Justiça’, já manifestava preocupação com o tema da ética, recomendando aos membros do Ministério Público que não maculassem suas ações com emprego de meios eticamente condenáveis. Por outro lado, o episódio referido transformou-se em ótimo pretexto para aqueles que não querem ser incomodados pelo Ministério Público. A chamada ‘Lei da Mordaça’ não está na agenda do governo -anuncia-se-, mas em nenhum momento se garante que o governo seja contra tal idéia.
O ideal de parcelas importantes do poder político e econômico é um Ministério Público dócil para os poderosos e feroz com os humildes.
Quando se trata de investigação criminal realizada pelo Ministério Público, alguns mal conseguem esconder que preferem eventuais mazelas dos porões de um inquérito policial a terem de deparar com uma investigação feita por promotores de Justiça. Outros têm grande dificuldade de conviver com mecanismos constitucionais de fiscalização e, na sua arrogância, acham que, umas vez eleitos, não precisam prestar contas da regularidade de suas administrações, como se o poder se legitimasse apenas pela investidura, e não também pelo exercício. Muitos sonham com a irresponsabilidade pelos seus atos, típica das monarquias absolutistas.
O país precisa que suas instituições republicanas funcionem e cumpram de forma efetiva o seu papel. Querer transformar um episódio isolado num grande fato político que ameace a integridade da instituição do Ministério Público é agir com inequívoco oportunismo e produzir uma cortina de fumaça destinada a impedir que se veja a luz que limpa e desinfeta os ambientes patológicos. (Luiz Antonio Guimarães Marrey, 48, é procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. Foi procurador-geral de Justiça por três mandatos (1996-98, 1998-2000 e 2002-04) e presidente do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça (1997).)’