Monday, 30 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Discussão improdutiva e improcedente

No final de 2011, começaram a pipocar os vídeos no YouTube: primeiro, foram alguns jogadores de futebol aqui no Brasil comemorando seus gols com a já conhecidíssima dancinha do “Ai se eu te pego”, criada na cola do sucesso musical homônimo de Michel Teló; depois, apareceram o jogador português Cristiano Ronaldo, o tenista espanhol Rafael Nadal e – pasmem – um time de basquete dos Estados Unidos, como mostrou uma matéria do Globo Esporte de 2 de janeiro. Mais recentemente – e além da descontração natural do mundo do esporte – soldados israelenses também caíram na rede fazendo a tal coreografia ao som dos versos grudentos “Nossa/Assim você me mata”.

Os sisudos intelectuais de plantão tentam tirar a graça da coisa toda partindo para uma ferrenha crítica à imprensa em geral pelo fato de Michel Teló estar na capa da revista Época desta semana, com os dizeres: “Com o sucesso ‘Ai se eu te pego’, o paranaense Michel Teló traduz os valores da cultura popular para os brasileiros de todas as classes”. Saindo em defesa da revista Época, basta verificar como a canção surgiu para entender que ela realmente é uma síntese do caldeirão da cultura popular brasileira – que vai da música regionalista gaúcha até o forró nordestino, passando pelo country de Barretos e o pelo funk carioca. Todos esses ritmos ultrapassaram todas as fronteiras dos estados e das regiões do Brasil fazendo a massa dançar. A internet, por sua vez, levou a fusão de ritmos para o mundo, feito jamais realizado por qualquer outro artista brasileiro.

Influências musicais

Michel, na verdade, é do estado do Mato Grosso, também reduto de Luan Santana, outro expoente do que se convencionou chamar de “sertanejo universitário”. De população formada basicamente por migrantes vindos dos estados do sul – Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná –, o caldo cultural que ali se formou juntou as influências musicais platinas dos gaúchos com a moda de viola do sertão. Por muito tempo, esse som ficou isolado nestes estados, dificilmente angariando fãs ou tocando nas rádios de Rio e São Paulo, até que outra fusão de culturas aconteceu: Barretos e seu rodeio meio americanizado, com direito a roupas de caubói – que poderiam servir de figurino a filmes B de faroeste – e ritmos da música country dos Estados Unidos. O próprio Luan Santana começou a sua carreira num palco secundário do evento gigantesco que é o rodeio da cidade do interior paulista. Foi ali que se popularizou o ritmo hoje chamado de “sertanejo universitário”, que não passa de uma mistureba entre o country rock dos EUA e a música sertaneja brasileira.

Contudo, uma simples americanização de um produto nacional não seria o suficiente para alcançar o mundo, pois já tivemos a Jovem Guarda nos anos 60, que jamais ultrapassou sequer o Rio São Francisco, quem dirá um oceano. Então, uma daquelas peculiaridades brasileiras – de estarmos sempre abertos a sons estrangeiros – também entra na fórmula mágica que transformou Michel Teló em sucesso internacional. No Nordeste, é comum os aparelhos de rádio captarem estações caribenhas, com toda sua variedade de ritmos dançantes – salsa, merengue, calipso (de onde surgiu o nome da banda paraense liderada pela vocalista Joelma). Para tais ritmos se fundirem ao forró nordestino e ao axé baiano, foi um pulo. E o que isso tudo tem a ver com Michel Teló? Numa rápida pesquisa na internet, encontra-se um artigo publicado no site do Yahoo Brasil (coluna “Mixando”, de Guilherme Bryan) onde há vários vídeos que comprovam a verdadeira origem do megahit “Ai se eu te pego”: uma funkeira – temos, então, a necessária “conexão Rio de Janeiro” para alcançar o sucesso nacional – chamada Sharon Acioly, de Porto Seguro, criou o bordão “Nossa, assim você me mata” em 2008 para brincar sedutoramente com seus dançarinos.

Temos então, primeiramente, dentro do território brasileiro, uma canção que reúne de Norte a Sul quase todas as influências musicais possíveis que já caíram no gosto popular, independentemente de classe social: a vanera dos bailões gaúchos, o sertanejo do centro-oeste, a letra maliciosa do funk, o visual country de Barretos, o ritmo dançante do forró nordestino, a coreografia do axé, além de um rosto bonitinho e um ar de malandro – muito bem representado por Michel Teló. Tudo o que as pessoas comuns mais adoram na hora de tomar uma cervejinha e cair na balada. E, pessoas querendo apenas dançar, esvaziar a cabeça e se divertir com amigos existem nos bares e nas boates do mundo inteiro, até mesmo dentro do vestiário de jovens atletas milionários.

Dancinha passageira

E, finalmente, o elemento a que todos os críticos meio que torcem o nariz, mas que é incontrolável: o YouTube e a internet. Para um hit local e uma coreografia engraçada cair nas graças de um jovem lá na Ucrânia, basta um link. Talvez, se a famigerada dança da “boquinha da garrafa” tivesse um veículo como o YouTube, quantas menininhas do mundo todo não teriam imitado a Carla Perez? Infelizmente, há alguns intelectuais que classificam como lixo cultural qualquer coisa que se popularize pela web. Ou, pior, para se tornar ruim aos olhos desses críticos basta ser popular no sentido de “apreciado pelas massas”, simplesmente.

Sinceramente, espero que os críticos intelectualizados parem de levar tudo tão à ponta de faca. Está na hora de evitarem a comparação improdutiva e improcedente entre cultura pop e a tal “cultura erudita”,e deixar de pensar que uma tira o valor da outra e vice-versa. Que os intelectuais continuem ouvindo Chico Buarque – a propósito, por que Buarque pode falar em “orifícios” numa de suas letras e o Latino não pode falar em kuduro? – e que a massa possa continuar a querer apenas uma coisa: breves momentos de diversão com a dancinha da moda, tão passageira quanto tantas outras que vieram antes.

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[Candice Soldatelli é jornalista e tradutora, São Marcos, RS]