Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Small Brother ocupa Big Brother

Em função do que escrevo e de como escrevo – mas não apenas, ainda bem –, constantemente sou caluniado, visto e concebido como populista, maniqueista, simplicista, anacrônico, fascista, pretensioso, bitolado sectário esquerdista, incapaz de entender as mediações e complexidades do mundo, da vida, da arte, do saber, da amizade, da academia, da teoria, do amor, de tudo e de nada, enfim e em começo.

Não quero fazer uma autodefesa de mim mesmo, isoladamente, na suposição de que seja vítima de algum complô, coitadinho do Luís Eustáquio, para brincar um pouco, em diálogo com um poema de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, que assim diz: “Coitado do Álvaro de Campos!/ Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!/Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!/Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos,/Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,/Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco, àquele/Pobre que não era pobre, que tinha olhos/tristes por profissão”.

Estamos todos chafurdados no mundo que produzimos, passiva e ativamente. Sou, portanto, sim, hipócrita. Sou fascista, sectário, anacrônico, simplista, medíocre, pretensioso e, se iniciei este parágrafo com o verbo (estamos) na primeira pessoa do plural, não é porque tenha empregado um plural majestático, mas porque efetivamente todos, sem exceção, somos o mundo em que habitamos.

Com isso, não quero me arrogar estar inventando a roda. Muitos já disseram o que precariamente ora digo. Por exemplo, Roland Barthes (1915-1980), crítico literário francês, a propósito, disse o que estou dizendo de uma forma singular, em sua aula inaugural no Collège de France, em 07 de janeiro de 1977: “Em todo signo habita este monstro: um estereótipo”, donde se conclui, concordando com Barthes, que em toda palavra, em todo ato de linguagem, enfim, o monstro do estereótipo nos habita, inevitavelmente, com sua monstruosa cara violenta, fascista, sectária, hipócrita, anacrônica.

As dominâncias das endireitadas comunicações sociais

Quero crer, como possibilidade, que Roland Barthes, ao dizer, na mesma aula inaugural, que a linguagem é fascista e o é não porque nos obriga a calar, mas, pelo contrário, porque nos obriga a falar, que o crítico literário francês, autor, dentre outros, deMitologias, ecoasse principalmente o teórico da linguagem russo, Mikhail Bakhtin (1895-1975), que, antes dele – de Barthes – em Marxismo e filosofia da linguagem, propôs, como questão de método o seguinte: “Não dissociar os signos das formas concretas de comunicação social (entendendo-se que o signo faz parte de um sistema de comunicação social organizada e que não tem existência fora deste sistema, a não ser como objeto físico”, donde seja possível concluir que o signo (a palavra, a linguagem) comunica antes de tudo o que prevalece numa dada época história (fascismo, hipocrisia, reducionismo, sectarismo, anacronismo, tendo em vista o nosso atual presente histórico).

Sou, portanto, tudo que me acusam e preconcebem, embora “eu” não seja “eu”, enquanto tal, mas uma forma linguística concreta de comunicação social. Nesse sentido, quando me acusam ou me preconcebem não o fazem precisamente em relação a mim, pois antes de tudo criticam o perfil de comunicação social que identificam no que escrevo, falo, penso, faço.

É por isso que disse acima que este não seria um artigo de autodefesa, mas sim de defesa da comunicação social que algumas pessoas “bem-pensantes” prejulgam em mim, razão pela qual, criticando preconceituosamente o perfil de comunicação social que tento expressar, criticam não a mim em particular, mas, genericamente, o campo das esquerdas, tido e havido, principalmente nos tempos atuais, como sectário, anacrônico, ressentido, fascista, maniqueista, carrancudo, limitado, autoritário, burro, populista.

Mas essa visão não constitui, ela mesma, de tão onipresente, um clichê, um estereótipo das e nas dominâncias das endireitadas comunicações sociais contemporâneas? Não será, pois, tal preconceito, um dos lugares do fascismo monstruoso do mundo atual, principalmente se considerarmos a sua função rótulo: “Você é isso, seu ditador populista anacrônico sectário; e ponto final!”

Lutas efetivas por transformações sociais

Com isso quero dizer que, sobretudo nos tempos atuais, os clichês que realmente detêm uma dimensão fascista de base não são verdadeiramente constituídos pela simplista linguagem do “oito ou oitenta”. Para ser pós-moderno, logo atual, uptodate, um estereótipo, hoje, tem que ser requintado (requentado) e antes de tudo tem que simular, através de malabarismos retóricos, não ser um evidente e monstruoso clichê.

Quero claramente dizer, portanto, que a comunicação social, através de fulano ou sicrano, que concebe e prejulga a comunicação social das esquerdas como anacrônica, populista, autoritária, fascista constitui o próprio lugar do estereótipo contemporâneo, embora a si mesmo e ao mundo se apresente como complexo, inteligente, refinado, educado, não maniqueista, como, enfim, o abstrato, asséptico, universal e puro lugar da civilidade democrática.

Não quero dizer, com tal argumento, que não existam maniqueísmos, populismos, reducionismos, sectarismos, e que tais, na comunicação social das esquerdas. Antes de serem típicos dela, tais atributos fazem parte da comunicação social geral de nossa época. Ninguém e nada escapam deles, esse é o primeiro princípio ou esforço intelectual para contribuir com a produção de uma civilização sem eles, pelo menos como traços não mais predominantes de uma tal utópica era, uma vez que de uma forma ou de outra tais práticas e visões sempre existirão.

Esses argumentos me remetem de imediato a um ensaio do filósofo francês, Jacques Rancière (1940): “Os enunciados do fim e do nada”, é seu titulo. Nesse ensaio (publicado em português como capítulo do livro Políticas da escrita (1995, editora 34), Jacques Rancière defende que a parte predominante – e de maior prestígio – das teorias produzidas no mundo contemporâneo desempenha um papel revisionista em relação às teorias e conceitos desenvolvidos e vividos, não apenas no Ocidente, pelas populações organizadas (para não falar esquerdas, e já falando), através de efetivas lutas por transformações sociais, no período anterior à década de 70, antes de tudo.

Práticas teóricas que eternizem o atual paradigma

Consideremos, a propósito, a ideia de luta de classes. Para Rancière, as teorias contemporâneas – praticamente em todos os domínios do saber, no campo das ciências humanas – reviram (daí seu aspecto revisionista) criticamente a perspectiva marxista de que vivemos em uma sociedade de classes em conflito, consciente e inconsciente, substituindo-a, tal perspectiva, por uma infinidade de outras propostas, conceitos, ideias, desqualificando e/ou diluindo, assim, as teorias e práticas sociais que consideram que vivemos numa sociedade de classes e que, por consequência, assumem claramente o pressuposto de que a luta de classes continua sendo um conceito fundamental para a análise das produções simbólicas e acontecimentos do mundo atual.

O exemplo mais evidente, no campo da educação, dessa prática revisionista, como fundamento antimarxista de boa parte das teorias contemporâneas, constitui o uso corrente e recorrente, um verdadeiro clichê, que usualmente nós, educadores e comunicadores, fazemos em relação à proposta de inclusão no interior das escolas e instituições outras: mercado de trabalho, sistema de saúde, formas e tecnologias de comunicação.

Na área da educação, qualquer proposta ou projeto que não inclua uma ou mais vezes a palavra inclusão em seu interior, muito provavelmente será considerada, pelas instituições educacionais públicas e privadas de referência, preconceituosa e equivocada, para dizer o mínimo, principalmente se tal proposta, além de não incorporar a palavra inclusão, ousar assumir o “anacrônico” ponto de vista conceitual da ideia de luta de classes, como princípio fundamental a ser considerado no interior das instituições escolares, seja na relação entre alunos, entre professores e alunos; entre alunos, professores e matriz curricular utilizada; e antes de tudo tendo em vista a análise dos preconceitos, conflitos, sucessos e fracassos, no que diz respeito à aprendizagem escolar.

Para Jacques Rancière, o olhar predominantemente revisionista das mais diversas práticas teóricas do mundo atual tem como principal objetivo produzir niilistas perspectivas teóricas, por estar no geral comprometido e implicado até o miolo com a premissa de que devemos nos adaptar às relações de poder de nossa época, através do descrédito de tudo que se apresente como proposta de transformação radical do atual modelo societário, em seu fundamento econômico de poder de classe; e ao mesmo tempo através da afirmação, aprovação, consolidação e prestígio de práticas teóricas que eternizem o nosso atual paradigma econômico planetário, capitalista.

O niilista utopismo das particularidades

Meu argumento, em diálogo com Jacques Racière, em relação ao descrédito autoprogramado de tudo que claramente aponte para a necessidade de superar a antagônica – logo inevitavelmente maniqueista – sociedade de classes em que vivemos, é o seguinte: vivemos numa época em que a comunicação social predominante produz um utopismo de baixa intensidade e um niilismo de alta intensidade, cujo objetivo é a desqualificação preconceituosa de qualquer proposta de superação do capitalismo, como modelo social baseado na opressão de classe, logo em relação a qualquer forma de práxis teórica – e social – que se inscreva na urgência urgentíssima de superação de opressão de uma classe, qualquer que seja, sobre outra ou outras – práxis, é bom deixar claro, que não é apenas marxista, pois, embora o marxismo seja um referencial fundamental, ele não é a última palavra ou a única comunicação social a ser levada em conta, principalmente se consideramos que Marx e Engels não viveram numa época em que a crise ecológica era uma questão tão presente e fundamental como hoje.

Chamo de utopismo de baixa intensidade ao verdadeiro clichê que domina o conjunto de nossa sociedade atual e que se inscreve, quando muito, na seguinte máxima: cuidemos de nós mesmos, de nossa família, de nosso campo de saber, com rigor, de nosso amor, de nossa etnia, de nosso gênero, de nossas tribos, de nossa saúde, amigos, colegas; de nossas complexas, delicadas e refinadas formas de ser e de estar, como se fora a única forma de comunicação social possível e desejável e desconfiemos, por outro lado, de toda forma de comunicação coletiva, que nos diga claramente que o particular não é possível, em potência e ato, se em potência e ato não for igualmente para todos, em contraposição a qualquer forma de opressão, submissão e humilhação.

Como é possível inferir, o utopismo de baixa intensidade de nossa época em si mesmo já é um niilismo de alta intensidade, pois desacredita, por si só, de tudo que se proponha a ser ou fazer-se no horizonte do além do particular, razão pela qual o não particular passa a ser considerado como autoritário, inviável, irrealista, impossível, anacrônico, demagógico, populista, arrogante, porque, em resumo, não respeita o direito particular de fazermos o que acharmos particularmente mais desejável, que é cuidar narcisisticamente de nossos próprios e limitados interesses multiparticulares.

É esse niilista utopismo das particularidades ou individualidades isoladas que constitui o clichê ou a verdade encarnada do sistema de comunicação social das mídias corporativas do capitalismo no mundo todo.

Uma multiplicidade indefinida e impotente

O conceito de sociedade do espetáculo, de Guy Debord, sob esse ponto de vista, nada mais é que o espetáculo publicitário geral das mídias das baixais intensidades utópicas das particularidades isoladas e de tal maneira esse clichê se universalizou que, de forma monstruosa, constitui o cerne do que usualmente compreendemos como coletivo: ser coletivo é ser coletivamente isolado, voltado para si, para o seu particular ponto de vista de gênero, étnico, comportamental, laboral, teórico, reflexivo.

Eis aí, portanto, o que definimos como democracia: o isolamento impotente do niilismo utópico das particularidades autocentradas, livres para se autobiografarem ou, como um médium (ou médio meio de comunicação), se autografarem nas suas “complexas”, particulares e interessantes subjetividades, de isoladas coletivas redes sociais do tipo Facebook, desde que algum incauto chato autoritário anacrônico não faça a seguinte desagradável pergunta: quem domina tal e tais particulares redes?

Quem controla o dominó domínio das instigantes biografias individuais? De quem é o domínio? – insisto, anacrônico que sou.

Esse é, pois, o monstruoso clichê midiático de nossa atual época de utopismo das particularidades subjetivas: enfiar-nos, pela goela abaixo, como se estivéssemos num supermercado – e não estamos? – a multiplicidade indefinida e impotente de “eu isso eu aquilo outro’, como desejo do nada, no nada coletivo do desejo.

Uma música de Jorge Ben Jor

Não existe melhor exemplo para esse desejo do nada, no nada coletivo da vontade, que a escuta/visão das falas niilistas dos sempre Ids ambulantes dos novos/velhos membros do velho/novo Big Brother Brasil, da TV Globo.

Qual a diferença dos integrantes recentes do Big Brother Brasil atual, em relação aos anteriores, se consideramos a forma utopista de alta intensidade narcísica, de absoluto nada coletivo da vontade, com e através do qual se apresentam ao público?

É sempre o nada no tudo jovem arcaico Id da vontade. O nada do tudo como era antes no quartel de Abrantes, nos vetustos globais novos jovens da vez.

Onde está a anacronia?

Em Os espectros de Marx, para citar mais um filósofo francês, Jacques Derrida, seu autor, escreveria, se conhecesse o poeta brasileiro Cruz e Souza: “A anacronia é o novo que não há, porque o velho mundo está fora dos eixos, e o novo que interessa, em qualquer época histórica, vive, como sempre, às margens do Nilo, do húmus sumo das colheitas de Linolen, de onde se retira o Óleo de Cartamo, um milagroso antioxidante que serve para combater os panópticos livres radicais fascistas do midiático Grande Irmão do ser Jornal Nacional, normal, ainda que, na atual conjuntura, para usar um jargão esquerdista, seja simplesmente um cínico noticioso despojado conservador uptodate, a descreditar, em nome do Grande Irmão, sempre, dos eixos dos seixos de nós mesmos: cascalhos de cachoeiras de coletivas zoeiras, longe do Big Brother, pois tudo vale a pena, a anacrônica ninharia, quando a multidão, a que chamamos de povo, não se apequena e se faça tal como os magníficos versos do poema, “Litania dos Pobres”, do poeta do desterro, Cruz e Souza, que assim dizem: Os miseráveis, os rotos/são as flores dos esgotos/são espectros implacáveis/os rotos, os miseráveis/O pobres! o vosso bando/É tremendo, é formidando!/Ele já marcha crescendo,/O vosso bando tremendo/Que por entre os estertores/Sois uns belos sonhadores.”

Termino brincando com uma música do cantor carioca Jorge Ben Jor, que assim diz: ”Alô, Alô, Brasil, Brasil/Alô, Alô, Jacarezinho, avião, cuidado com o disco viador, tira essa escada daí”, pois o Zé povinho vem aí, pela Central do Brasil, ocupar o Projac, no Jardim Botânico.

Jacarezinho no Jacarepaguá.

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[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo]