‘Esta crónica começa onde acabou a do passado domingo. Pegando na reflexão sobre a expressão ‘doença prolongada’, Artur Couto e Santos considera que ‘o rigor da informação é o mesmo, quer se escreva ‘doença prolongada’ ou ‘cancro’ visto que ambas são vagas, dada variedade de cancros existentes. Médico e ex-jornalista, o leitor considera que o mesmo se passa com a expressão ‘doença súbita’, que também se refere a diversos situações: ‘ ruptura de aneurisma, embolia pulmonar, hemorragia cerebral… Ou então, deslize do jornalista…’
Dando um exemplo de um ‘deslize’, Artur Couto e Santos conduz-nos a outra questão: a dissonância entre o título e o conteúdo da notícia.
Na edição do dia 10, o PÚBLICO noticiava, em título: ‘Ataque com gás venenoso faz quarenta mortos em Sófia’. Mas – escreve o leitor, ‘a notícia começa assim: ‘quatro dezenas de pessoas ficaram feridas, algumas delas em estado grave, devido a um ataque com gás venenoso na cidade de Sófia’. E em lado nenhum se falava em mortos! Suspeito que o jornalista tenha escrito, primeiro, a notícia e, só depois, o título e que, entre uma coisa e outra, os quarenta feridos tenham morrido todos. De morte súbita, claro…’
Com humor, fica introduzida uma questão séria. E clássica, na relação entre o jornal e o leitor: a importância dos títulos.
No exemplo citado, o erro é flagrante. E – no juízo de José Miguel Silva Moreira – dele decorre ‘ falta de profissionalismo e até mau serviço público’. Escrevendo que ‘corre mais depressa a morte, eu sei, mas sejam sérios por favor’, o leitor parece acreditar que houve a intenção deliberada de se tirar partido de um título falso.
Assumindo que a culpa foi sua e referindo que foi feita uma rectificação no dia seguinte com um pedido de desculpas aos leitores, Margarida Santos Lopes não explica as causas do erro. Quanto a Jorge Heitor, o autor do texto, é claro: ‘o jornalista fez a notícia e escreveu qualquer coisa no título como Atentado com gás venenoso em Sófia. Depois, quem edita acha que não é suficientemente forte’ e altera. O jornalista observa ainda que ‘há sempre o risco de quem quer fazer um título mais apelativo atraiçoar o espírito de quem procura escrever o texto com todas as cautelas ‘ e, por causa disso, ‘títulos e chamadas de primeira página por vezes não correspondem exactamente ao que se redige ‘, cuidadosamente, ‘durante uma ou duas horas’. Posta nestes termos, a questão fica equacionada.
Um título pretende sintetizar, num determinado espaço, o essencial da notícia, anunciando-a. E fazê-lo, de forma simultaneamente rigorosa e apelativa, respeitando ainda regras técnicas do próprio jornal.
É uma tarefa difícil e ambiciosa, uma ‘modalidade’ que nem todos os jornalistas dominam. Íntimamente ligada à credibilidade do jornal é tão própria da sua identidade como propícia a cedências deontológicas. Através dos títulos, o jornal quer assegurar informação e compradores. E, sendo indiscutível quea apresentação das notícias deve estimular o interesse do leitor, não se ignora que pela malha do critério passam fronteiras separando a imagem dos jornais de referência daquela que caracteriza a chamada imprensa popular. Compete ao jornalista a avaliação relativa dos factos: nem enormizar, enganando, nem minimizar, escondendo. A começar pelos títulos, a parte mais lida das notícias e por vezes a única.
É o que pode ter acontecido com um grito que titula uma reportagem de Nuno Ribeiro, sobre a cerimónia fúnebre dedicada às vítimas do atentado de Atocha: ‘Senhor Aznar, é responsável pela morte do meu filho’. Um leitor do Porto, que pede para não ser identificado, considera que este título transforma ‘um acto religioso, que tem por finalidade criar um clima de paz para as pessoas doridas pela morte de seres queridos, num acto violento em que se fomenta o ódio contra alguém’.
O correspondente do PÚBLICO em Madrid responde que o grito de que o jornal fez título ‘não foi um ‘acto violento’ e que ‘o pai da pessoa que morreu não manifestava ódio, mas sim desespero’. Dizendo que se tratou de ‘um grito espontâneo de dor e de pesar que nenhum jornalista pode esquecer’ citado também ‘por diversos órgãos da comunicação social espanhola’, Nuno Ribeiro declara por fim que ‘o jornalista é cronista do que acontece, não deve ser censor’ e que escolheu o título obedecendo ‘a critérios meramente jornalísticos’.
José Manuel Fernandes, o director que fechou o jornal desse dia, aceitou a proposta do correspondente por razões técnicas e de conteúdo: Tratando-se de uma reportagem, o título pode ser uma frase retirada dela e, por outro lado, havendo dois momentos na cerimónia (‘um de grande tensão entre alguns familiares das vítimas e o ex-primeiro ministro e outro de grande emoção quando a família real quebrou o protocolo para misturar as suas lágrimas com as do povo’) o jornalista optou por puxar para título ‘uma das frases fortes que sintetizam a tensão’ de um desses momentos e fazer a entrada do texto com o relato do outro momento: ‘a opção pareceu-me legítima, como me teria parecido legítima a contrária’ – considera José Manuel Fernandes, que termina interpelando, indirectamente, o leitor: ‘a frase é forte, mas foi proferida. Reflecte o calor da dor. Seria correcto omiti-la? Julgo que não’.
Se um título deve interpelar o leitor, ‘ convidá-lo’ a ler a notícia, mas sem o iludir, negando ou contradizendo no texto, aquilo que promete, será que este título consegue esse objectivo? Na verdade, é difícil ficar-se indiferente ao lê-lo. A leitura do texto confirma as expectativas que o título cria ou defrauda-as? Sem dúvida que o texto suporta o que é anunciado, embora se admita que, estando perante um título a toda a largura da página, o leitor possa esperar um pouco mais de enquadramento do episódio (ou a opção por uma caixa relatando o momento do grito, sendo aí um título indiscutível).
No entanto, resumindo uma parte da notícia, acaba por fazer uma certa síntese do ambiente de crispação política presente na cerimónia e, afinal, em toda a Espanha. Neste contexto, talvez mais do que em aspectos técnicos, se encontrem as razões de sensibilidade do leitor.
O protesto de Alfredo Bragança, também do Porto, é por uma manchete, afinal o título principal da primeira página do jornal: ‘Médicos de clínica geral certificam ilegalmente atletas amadores’ – garantia o PÚBLICO em 7 de Fevereiro, escrevendo em pós-título: ‘Lei está por regulamentar desde 1999, apesar dos protestos da Ordem’.
A questão, em síntese: há uma lei, aprovada há cinco anos, mas ainda não regulamentada, segundo a qual, os exames dos atletas, profissionais ou amadores, devem ser feitos por médicos especializados. Os exames, entretanto, feitos por médicos de clínica geral, são ilegais?
A manchete garantia que sim e o leitor, usando uma crónica publicada nesta coluna, onde o director do jornal era citado condenando ‘o exagero, o título opinativo ou enviesado, a imagem que apenas vale por ser chocante’, julga encontrar neste exemplo uma contradição com os propósitos enunciados, e conclui que a ‘falsidade’ do título está patente na própria ‘chamada’, ao referir ‘a inaplicabilidade de uma lei ainda não regulamentada que, consequentemente, não vigora e, também consequentemente, o seu não acatamento não pode constituir ilegalidade’.
O jornalista Eduardo Dâmaso, responsável pelo fecho da edição e pela escolha do título, reconhece sem hesitação que a ‘manchete é, de facto, inexacta’. E explica que ela foi, posteriormente, discutida, havendo quem achasse ser incorrecto falar de ilegalidade e quem considerasse que deveria respeitar-se o que a lei, embora não regulamentada, prevê. Eduardo Dâmaso concorda que é ‘excessiva a consideração de ilegalidade’ mas também insiste que é ‘pelo menos irregular’ a actual certificação dos atletas por médicos de clínica geral.
Uma vez reconhecido o erro, um último ponto: encontrar o equilíbrio entre a exactidão e o impacto que fazem um bom título, depende do jornalista. Mas também da notícia. Notícias mais complexas, complicam a difícil arte de reduzi-las a uma frase.’