É inevitável a comparação entre As Canções (2011), documentário mais recente de Eduardo Coutinho, e Jogo de Cena (2007), também dirigido por ele. Os dispositivos são praticamente os mesmos: o depoente, diante da plateia vazia, a rememorar experiências significativas de sua vida; Coutinho, o entrevistador, no contracampo e fora de quadro. E só. Ou quase.
Jogo de Cena, talvez o melhor documentário realizado no Brasil na última década – e sem dúvida um dos melhores de todos os tempos –, põe em questão o embate entre realidade e ficção, atriz e personagem. Sentado de frente para a plateia vazia, o diretor Eduardo Coutinho conduz a entrevista. Depois, uma nova história, contada/vivida por mais uma mulher. Mas, no meio do depoimento, entra em cena outra pessoa, vivendo a mesma história. Ora trata-se de atrizes conhecidas, ora menos conhecidas; às vezes trata-se de anônimas. O efeito é perturbador. O espectador não distingue quem de fato viveu o drama e quem o está interpretando, com a plateia invisível ao fundo. Atrizes desconhecidas podem estar interpretando, atrizes conhecidas podem contar eventos de suas vidas pessoais, muitas são as possibilidades – os pressupostos são postos em sobressalto. E então, como diria o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, toda tentativa de elucidação traz de volta o enigma: a história salta.
O que mais Coutinho poderia desenvolver então, valendo-se de formato análogo, neste As Canções? Em entrevista a Nina Rahe, o próprio admite: “[…] Sei que a crítica irá dizer que [o filme As Canções] é uma diluição de Jogo de Cena e que não fui adiante, mas existe nele algo sobre música que nenhum outro filme possui, pois é possível entender que a canção e o Brasil têm algo de particular. É também um trabalho em que deixo de perguntar às pessoas coisas como ‘onde você nasceu’. Não quero fazer mais isso e dessa forma sinto que parei.”
De fato, em certa medida, não se veem muitas novidades em As Canções. O que se percebe primeiro é que, desta vez, ao invés do cruzamento de histórias, o fio condutor do longa-metragem são as canções que marcaram a vida dos homens e mulheres entre 22 e 82 anos. Os depoimentos são tocantes e, se o efeito não é arrebatador como em Jogo de Cena, é bonito contemplar as “dores e delícias” daquelas vidas que se desfiam a partir das canções e a elas retornam.
Campo e contracampo
Em um texto curto mas fundamental, Notas sobre o Bloco Mágico (1925), Freud traça uma analogia entre o aparelho psíquico e o bloco mágico (nos dias de hoje, o brinquedo é conhecido como “lousa mágica”). Escreve Freud: “O Bloco Mágico é uma tabuinha feita de cera ou resina marrom-escura, com margens de papelão, sobre a qual há uma folha fina e translúcida, presa à tabuinha de cera na parte superior e livre na parte inferior. Essa folha é a parte mais interessante do pequeno aparelho. Consiste ela mesma de duas camadas, que podem ser separadas uma da outra nas bordas laterais. A camada de cima é uma película de celuloide transparente, a de baixo é um papel encerado, ou seja, translúcido. Quando o aparelho não é utilizado, a superfície de baixo do papel encerado cola-se levemente à superfície de cima da tabuinha de cera” (trad. Paulo César de Souza). Os traços ficam permanentemente marcados na cera embora possamos levantar a dupla folha que a cobre e supostamente “apagar” o que fora escrito, liberando assim espaço para novas inscrições.
O que revelam as canções, no longa de Coutinho, são as marcas presentes na tabuinha de cera. Como um sonho, as músicas reativam as inscrições do vivido, as quais por sua vez adquirem novas tonalidades diante do entrevistador, como se a câmera – e aqui a analogia com a película é inevitável – fosse mais uma camada das folhas do bloco mágico. Quer dizer, há um duplo movimento (literalmente) regido pelas músicas: ao mesmo tempo em que ocorre o resgate do passado, o próprio processo é fundante de uma nova experiência e, portanto, de novas possibilidades.
Coutinho se deu conta disso em Jogo de Cena? Não podemos saber. Ocorre que, se no documentário de 2007 o diretor sentava-se diante da plateia, assumindo a condição de artista (não custa lembrar que há um fino trabalho de edição, fundamental para o efeito produzido pelo filme), em As Canções quem se senta diante da plateia, vazia como em Jogo de Cena, são os entrevistados. Campo e contracampo se invertem. Coutinho assume a perspectiva do público; enquanto espectador, agora ele é a plateia. E, enquanto tal, não esconde que fez o filme “por prazer” – a fruição estética que um drama bem contado – ou bem cantado – proporciona.
Afinal, de que valem as inscrições no bloco de cera se não forem compartilhadas?
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[Renato Tardivo é escritor e psicanalista]