Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Acordando cedo com a CNN

António Granado é jornalista e editor multimídia na RTP, a rede portuguesa internacional de rádio e televisão. Ele tem um blog agregador de notícias que funciona como um observador crítico da mídia chamado Ponto Mídia. Conta histórias de jornalistas e jornalismo, mas também agrega os casos mais aberrantes e os erros mais grosseiros da imprensa. Em Portugal e fora dele. No seu “ponto”, ele posta excelentes exemplos de como o jornalismo pode equivocar-se e enveredar pelos caminhos mais absurdos. O site é muito bem organizado e dividido em categorias como ciberjornalismo, convergência digital, ensino de jornalismo, jornalismo investigativo, participativo e deontologia, entre muitas outras.

Mas o que interessa aqui é a deontologia, entendida como “conjunto de normas e procedimentos próprios de uma determinada categoria profissional que, seguido pelos seus membros, serve para garantir a uniformidade do trabalho e a ação do grupo”. A definição é do dicionário Caldas Aulete. Pois bem, nesta seção (deontologia) o jornalista lusitano postou um dos maiores, mais grosseiros e impiedosos erros já cometidos em nome da “expansão das fronteiras do jornalismo”. No dia 11 deste mês, Granado postou um vídeo do site de Jon Stewart, o comediante do canal Comedy Central que faz um deboche crítico da vida política e da mídia americana. Granado acrescentou um comentário antes:

“É preciso ver este vídeo várias vezes (se conseguirem…) para perceber como a cretinice jornalística pode atingir níveis insuspeitados. Neste caso, um telefonema às 5 da manhã para Kerry Kennedy, filha de Robert Kennedy, para lhe perguntar, entre outras coisas, se ainda tem pesadelos com o assassinato do pai, que aconteceu quando Kerry tinha oito anos.”

Um absurdo show de notícias

A história toda começou no programa de Stewart [10/1], o Daily Show, no Comedy Central. De lá partiu, em forma de piada, a revelação da “cretinice” na CNN, que Granado, de forma breve e contundente, comentou. A emissora de Atlanta tem um programa às 5 horas da manhã chamado Começar Cedo (Early Start), ancorado por Ashleigh Banfield e Zoraida Sambolin. No dia 2 de janeiro, Ashley telefonou ao vivo, às 5 da manhã, para Kerry Kennedy, filha de Bob Kennedy, e perguntou se ela ainda tem “lembranças assustadoras” do assassinato de seu pai em 1968. Tudo isso com um sorriso no rosto.

Robert Kennedy foi assassinado em Los Angeles em 1968 enquanto comemorava uma vitória nas prévias do Partido Democrata. Telefonar para sua filha de madrugada e fazer uma pergunta cretina, maliciosa e impiedosa, como fez a âncora do programa, é ir muito além de simplesmente tentar “ampliar as fronteiras da notícia”. É fazer do jornalismo uma forma de abuso.

Stewart, com sua língua ferina, comentou em seu programa que “ninguém telefona para os Kennedy àquelas horas da manhã” e perguntou, no ar, se as duas sabiam do número de tragédias que a família havia passado. O diretor do programa fazia cortes no show de Stewart e inserções do “show” madrugador da CNN para ilustrar o absurdo das duas jornalistas. A edição fornecia citações eletrônicas, através das quais o comediante ia descrevendo e redesenhando, com fonte original, o absurdo deste show de notícias da CNN, que exibe uma edição internacional dos melhores momentos do Daily Show durante a semana.

Uma declaração intempestiva

Ele também referiu-se ao programa das duas abusadas como um “show de notícias”. Não é bem um informativo, mas algo maldosamente ligado às notícias para transformá-las em “algo mais”. A própria apresentadora Ashley Banfield disse sem nenhum pudor, no início do “show”, que iria simplesmente acordar alguém de interesse jornalístico. E que a pessoa não saberia que estaria ao vivo na TV internacional. Mesmo ela tendo depois avisado à pobre Kerry que estava ao vivo, como pôde ter feito uma pergunta tão cruel? Ela abusou abertamente do direito de um jornalista em busca do olhar público. Com que direito ela expôs assim uma pessoa marcada por uma tragédia pública diante de audiência internacional?

O comediante apontou mais um erro grosseiro das duas da CNN: ao tentar contato com um comediante americano [9/1], a âncora acabou por ligar para um desconhecido, que respondeu em espanhol. A jornalista entendeu que havia conectado o número errado. E identificou-se como sendo o FBI, sem pensar nas consequências para alguém que não fala inglês ao ser acordado por uma chamada deste órgão da segurança americana. Sem sequer imaginar o que seria do pobre sujeito se por acaso estivesse no país em situação ilegal. Stewart encenou um sujeito fugindo às pressas pela escada de incêndio. Todos riram muito do cômico americano e o erro grosseiro ficou bem claro.

Jon Stewart não é nenhum santo. Às vezes, também abusa, mas é um comediante que trabalha com notícias. Não é um jornalista de uma emissora internacional. Em 2010, ele foi chamado de “judeu intolerante” por um repórter da CNN, Rick Sanchez, que foi imediatamente despedido. Em entrevista a Larry King [20/10/10], ele demonstrou claramente que não apoiou a emissora na demissão de Sanchez. Declarou que, se alguém está a fazer um bom trabalho, não deve ser despedido por coisas que fala ou publica em blogs ou no Twitter. Quando Sanchez afirmou que “os judeus controlam a imprensa” (sic), Stewart simplesmente replicou: “Sou um comediante. Ouço coisas muito piores no caminho de casa todos os dias.” E disse que a declaração intempestiva de Sanchez não havia sido feita “de coração”. Nem era motivo para alguém perder seu emprego.

Os limites do jornalista

O show das apresentadoras abusadas acabou sendo apontado como exemplo do que não se deve fazer no jornalismo. E as duas jornalistas proporcionaram uma demonstração cabal da pobreza do jornalismo televisivo atual, com sua falta de criatividade abusada e invasiva. Seus telefonemas foram abominações do jornalismo. “Cretinices jornalísticas”, como bem definiu Granado. O próprio show é um absurdo, ao expor pessoas a audiências internacionais sem seu consentimento prévio no final da madrugada. Uma ideia estúpida.

As duas ultrapassaram os limites de tudo o que é aceitável no jornalismo, e representam uma boa amostra do que existe de errado com a mídia televisiva contemporânea. Jon Stewart mostrou-se um arguto observador da imprensa. Ele não é jornalista. É um humorista que tem como material de trabalho a política, as notícias e quem as veicula. Mas sabe muito bem quais são os limites que um jornalista tem que respeitar no exercício de sua profissão.

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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]