Continua a polêmica sobre a não-transmissão de um beijo entre dois homens que nutrem recíprocos afeto e desejo, no desfecho da novela América, de autoria de Glória Pérez, na Rede Globo, trazendo múltiplas versões e pontos de vista, com repercussão até mesmo em outros países. Um aspecto, contudo, tem sido pouco abordado.
Trata-se do significado mais profundo que encerra essa representação, através de um veículo tão poderoso em nosso país como as novelas, para o segmento retratado. Se a abordagem do tema nas últimas produções da emissora, ainda que com todo o exacerbado ‘cuidado’, tem se mostrado positivamente contributiva ao revelar a opressão que milhares de pessoas por esse imenso país experimentam em suas vidas cotidianas, pelo simples fato de ter como orientação afetivo-sexual pessoa de seu mesmo sexo biológico, por outro o desfecho da trama com um gesto de afeto – e não de lascívia ou erotismo – teria o condão de desvelar o conteúdo de carinho e respeito que tais relações agregam. Conteúdo esse tão legítimo quanto o encontrado nos modos de afeto e desejo heterossexuais.
Tenho ficado impactada ao constatar, não apenas pelos dados estatísticos apresentados pelos organismos de coleta e pesquisa, mas também em relatos de vivências experimentadas por jovens colegas de campus universitário e integrantes de contextos médios urbanos (que se presumem sempre mais informados, democráticos, tolerantes), o quão freqüente ainda é nos dias de hoje expressões de violência simbólica e mesmo física contra filhos que expressem orientação afetivo-sexual discordante da heteronorma.
Nesse sentido, ainda em clima de terror, que se manifesta em humilhações, ameaças, agressões físicas e privação da liberdade de locomoção, experimentadas não apenas em praças, parques, calçadas, boates, apartamentos, mas muito intensamente no âmbito familiar, a importância de ver retratados com seriedade, sensibilidade e respeito, em mídia de tamanha penetração, alguns dos conflitos com os quais homens e mulheres homossexuais têm de aprender a conviver, por conta de uma intolerância homofóbica, ultrapassa os aspectos meramente fugazes que esse tipo de entretenimento popular tradicionalmente abriga.
A dimensão mais humana
Passa a incorporar uma dimensão humana muito mais densa e profunda. Uma dimensão que clama por respeito, justiça, integração e plena cidadania.
Mas essa incorporação fica a meio, diante da excessiva ‘cautela’ dos dirigentes da emissora em exibir um gesto de afeto e bem querer entre pessoas de mesmo sexo. É que essa mesma ‘cautela’ acaba por demonstrar o quanto ainda falta para que se conquiste o direito à não-estigmatização. Daí todo o investimento de significativa parcela do segmento GLS para que o beijo fosse veiculado. Devido ao seu conteúdo simbólico.
Quando o ator Bruno Gagliasso, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, declara que gostaria que o beijo tivesse sido levado ao ar, porque auxiliaria o processo de integração social de uma parcela de indivíduos que, por conta do modo como expressam afeto e erotismo, são cotidianamente vítimas de opressão, expressa um notável sentido da ética fraterna de que nos fala Leonardo Boff – a de percebermos-nos todos ‘dentro de uma complexa comunidade com seus outros filhos e filhas’ e poder ‘realizar nossa essência humana de cuidado e de gentileza’.
Ao relatar a emoção transmitida nas inúmeras ligações para seu celular por telespectadores que, em prantos e abraçados às mães na frente do televisor, encontrando nele, ator, um canal para suplantar o silenciamento imposto a suas vivências, fazendo-o depositário de tão profundo partilhamento, Gagliasso traz a dimensão mais humana por traz de toda a discussão provocada.
A dimensão que faltava.
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Mestranda em Política Social