Diante de fenômenos como a globalização e a ascensão das novas tecnologias digitais, surgem formas inéditas de cooperação, sociabilidade, cidadania, disseminação de ideias e conteúdos. A internet aparece como promessa para consolidar um novo paradigma: a comunicação passa de um modelo de mídia de massa uniforme, impessoal e descendente, para outro patamar de mídia pós-massa, horizontal, democrática, autônoma e espontânea.
A agilidade, a interatividade e o amplo alcance possibilitados pelos avanços tecnológicos, cada vez mais acessíveis a um contingente maior de pessoas, ajudaram a expandir a consciência cidadã, difundir informações e imagens em tempo real, alterar padrões de comportamento, relacionamento e consumo e fortalecer o indivíduo como agente capaz de, num simples clique, mobilizar multidões, chamar a atenção do mundo, provocar crises diplomáticas e abalar bolsas de valores.
O sociólogo Manuel Castells afirma que vivemos uma inédita tendência histórica, em que a internet constitui uma nova morfologia social. “A convergência da evolução social e das tecnologias da informação criou uma nova base material para o desempenho de atividades em toda a estrutura social. Essa base material construída em redes define os processos sociais predominantes, consequentemente dando forma à própria estrutura social.”
Questões surpreendentes
Um dos traços mais marcantes da era digital é justamente a democratização dos espaços de comunicação e expressão. Se antes o cidadão compreendia a cidade, o país e o mundo a partir do olhar dos meios de comunicação tradicionais impressos e, depois, eletrônicos, agora esses mesmo cidadão tem a seu dispor uma multiplicidade de olhares e possibilidades de participação, seja num celular, laptop, iPod; no computador do vizinho ou da escola; na lanhouse do bairro ou no trabalho.
As facilidades geradas pelo mundo interconectado se adaptaram perfeitamente à chamada sociedade da informação, onde as pessoas vivem num ritmo frenético, repletas de afazeres e compromissos e, muitas vezes, passam a maior parte da vida entre o trânsito e o trabalho. Nesse sentido, tudo caminha para a convergência tecnológica, que se confunde com o convergir de papéis: consumidor, operário, executivo, estudante, dona de casa e cidadão.
Essa tendência foi prenunciada no início dos anos 90 por Howard Rheingold, em seu livro A Comunidade Virtual. Na visão do autor, os ambientes virtuais eram mais do que locais onde as pessoas se encontravam, mas um meio com amplas possibilidades para atingir diversos fins: “[…] as mentes coletivas populares e seu impacto no mundo material podem tornar-se uma das questões tecnológicas mais surpreendentes da próxima década”.
Os cibercidadãos
O exercício da cidadania tornou-se mais acessível e individualizado, exige menos tempo, é mais prático e tem um poder de alcance e influência muito maiores. São os chamados “cibercidadãos”, que, de acordo com o sociólogo francês Pierre Lévy, estão aprendendo a expor suas idéias em sites, blogs, comunidades virtuais e, recentemente, nas chamadas redes sociais, cujos representantes mais emblemáticos são o Facebook, You Tube e Twitter.
Surge um novo habitat para a discussão, a deliberação pública e o ativismo político. Lévy é visionário ao projetar que as novas formas de governo deverão encontrar lugar para essa “nova raça de cidadãos”, que, em função das facilidades geradas pela Internet, tendem a ser mais educados, informados, habituados a se expressar, emitir opinião, reivindicar e pressionar.
Dotados de múltiplas ferramentas para promover o engajamento coletivo e sensibilizar a opinião pública, é por meio das mídias sociais que esse novo cidadão tem encontrado o caminho mais vigoroso para exercer o ativismo político. No mundo, são valiosos os exemplos de ativistas que encontraram uma brecha para se expressar e furar o cerco de regimes ditatoriais no intuito de revelar, simultaneamente a milhões de pessoas, injustiças, crimes e opressão.
Novo ativismo político
Em 2009, durante os protestos contra a suposta fraude na reeleição do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, uma manifestante foi assassinada pelas forças do governo e as imagens, gravadas de um celular, repercutiram internacionalmente no You Tube. No mesmo ano, 10 mil pessoas saíram às ruas na Moldova, no leste europeu, para protestar contra o governo comunista. A ação foi batizada de “revolução via Twitter”, por causa dos meios utilizados para arregimentar os manifestantes.
Outro fato emblemático foi a onda de levantes populares no mundo árabe e parte da África, que culminou com a queda dos presidentes do Egito, Tunísia e Líbia. Em meio às intensas manifestações nas ruas e ao crescimento da mobilização popular, os governos passaram a reprimir com violência o trabalho da imprensa e tentaram bloquear o acesso à Internet. Mas os ativistas encontraram diversas janelas para se expressar e mobilizar seguidores, acessando seus Facebooks e Twitters via celular.
Esse fortalecimento do ativismo político a partir de ferramentas tecnológicas digitais já apresentava sinais claros no episódio da guerra contra o Iraque, em 2003 – o primeiro confronto midiático da história, com cobertura em tempo real na TV e na internet. Em meios às notícias tendenciosas veiculadas pelos canais americanos, ingleses, franceses e iraquianos, surgem os chamados “blogs de guerra”, postados por pessoas comuns, que relatavam versões dos acontecimentos a partir de quem estava dentro do conflito.
O ciberativismo chegou a Cuba em 2007, quando a blogueira Yoani Sanchez encontrou um meio de furar o bloqueio cubano. Ao relatar em seu blog, desdecuba.com/generaciony, as mazelas impostas ao cotidiano da população pelo regime, a ativista ganhou destaque internacional. Logo depois, passou a ser perseguida pelo governo e nunca conseguiu autorização para realizar viagens internacionais e receber dezenas de prêmios no exterior. Embora seu blog tenha sido bloqueado, ainda assim pode ser acessado fora da ilha.
Tecnologia baliza a cidadania e o ativismo
No Brasil, a discussão sobre o aborto dominou boa parte do debate presidencial em 2010. Ao circular em e-mails de todo o país, uma carta da Regional Sul1 da CNBB orientava os fiéis a não votarem na então candidata Dilma Rousseff, pelo fato de seu partido supostamente defender o aborto. A repercussão foi fulminante não só nos meios de comunicação, mas, sobretudo, nas redes sociais. Rapidamente se instalaram debates acalorados em blogs e microblogs, grupos de discussão online, listas de e-mails, sites e outras questões relevantes da agenda nacional ficaram relegadas.
No episódio da invasão das forças de segurança do Rio de Janeiro ao Complexo do Alemão, no final de 2010, jovens da comunidade e entidades locais como Mídia Radical e Favela em Foco exerceram um papel importante ao fazer a cobertura da ação em tempo real, via Twitter, a partir do olhar privilegiado de quem vive no fogo cruzado das favelas cariocas. Dos seus computadores, esses grupos relataram prisões, apreensão de munição e drogas, fugas de criminosos para outros bairros e serviram de anteparo para fiscalizar possíveis casos de violação aos diretos humanos.
Tais exemplos revelam que, no século 21, a ação política está diluída no cotidiano de um novo tipo de cidadão, construído na era digital e na apropriação de ferramentas com uma interface cada vez mais amigável, convergente e de baixo custo. Ser cidadão não está associado apenas aos fóruns tradicionais de debate público, como a praça, as associações e as seções dos jornais. Essa forma inédita de agir e se agrupar pode ser exercida no conforto de casa, na impessoalidade de uma lanhouse ou até mesmo dentro do ônibus. A tecnologia digital baliza hoje a cidadania e o ativismo político.
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[Carole Cruz é jornalista]