A luta entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) define uma nova e importante etapa na democratização do Estado brasileiro. Como previsível, os intocáveis do Judiciário aliam-se aos congressistas e políticos do Executivo, ampliando a campanha contra a imprensa. Novamente o erro é atribuído a quem divulga os males institucionais. A publicidade integra a doutrina e a prática do Estado moderno. Como o Brasil só com boa vontade merece o nome de plena democracia (o nome certo do nosso regime é federação oligárquica), até hoje venceram o privilégio e a impunidade. Descobertos os seus erros, os donos dos palácios desejam aplicar viseiras novas no Ministério Público (MP) e na mídia.
“São proveitosos o ato justo e a obediência às leis, quando existem testemunhas da conduta. Mas se não corre o risco de ser descoberto, o indivíduo não precisa ser justo.” A frase vem do sofista Antifonte (século 5.º a.C.), mas serve com perfeição às nossas elites. O debate sobre a visibilidade do justo ou injusto marca o Ocidente. Platão narra a fábula de Giges: pastor humilde, o herói descobre um anel que, se girado no dedo, o torna invisível. Ele usa tal privilégio para matar o governante, ganhando a rainha e o trono. O mito de Giges ilustra a razão de Estado: o poderoso busca o sigilo para seus atos, mas tenta ver o que se passa nas casas das pessoas “comuns” (sobretudo nos bolsos) e nos países estrangeiros. Nasce daí a censura unida às polícias secretas, à espionagem, ao desejo de impor aos governados normas éticas jamais seguidas pelos dirigentes.
O ideal do governo que tudo enxerga, tudo ouve, tudo alcança é a base histórica das atuais políticas autoritárias. O governante acumula segredos e deseja que os súditos sejam controlados. Desse modo se estabelece a heterogeneidade entre cidadãos e dirigentes.
Desconfiança generalizada
Na aurora dos tempos modernos, segundo um fino analista da razão absolutista, “a verdade do Estado é mentira para o súdito. Não existe mais espaço político homogêneo da verdade, o adágio é invertido: não mais fiat veritas et pereat mundus, mas fiat mundus et pereat veritas. As artes de governar acompanham e ampliam um movimento político profundo, o da ruptura radical (…) que separa o soberano dos governados. O lugar do segredo como instituição política só é inteligível no horizonte desenhado por esta ruptura (…) à medida que se constitui o poder moderno. Segredo encontra sua origem no verbo latino secernere, que significa separar, apartar” (Jean-Pierre Chrétien-Goni).
A democracia, surgida contra o poder absoluto, instaurou a visível responsabilidade política dos governantes. Na “accountability” os operadores de cargos públicos (do rei aos juízes) tornam os seus atos visíveis para a cidadania. Mas o século 19 trouxe a contrarrevolução napoleônica e a Santa Aliança. Some a transparência no exercício do poder. Como fruto tardio do recuo político e jurídico, surgem as ditaduras que impedem as liberdades públicas, em especial a de imprensa. Ocorre, ao mesmo tempo, uma fratura na ética democrática.
A ética correta, na democracia, não se imiscui na vida coletiva com uma tábua de valores externa aos grupos sociais. Os monopólios do Estado (força física, impostos, norma jurídica) permitem-lhe controlar os interesses particulares. Mas não raro o Estado ultrapassa os seus próprios limites. As revoluções modernas ergueram barreiras contra as pretensões oficiais. Mesmo assim, na Alemanha nazista, na União Soviética (URSS), nas diversas ditaduras e até em países democráticos, o Estado arrogou-se o direito de impor valores e doutrinas sobre a ciência, as artes, a vida econômica. Como exemplos temos a eugenia contra os fracos (o caso Buck versus Bell, decidido pelo juiz Oliver Wendell Holmes) e a “genética socialista” (as teses de Trofim Denissovitch Lyssenko que arruinaram a URSS). Os dois casos mostram que o poder sem peias gera frutos malditos. A imprensa domesticada chega ao escárnio: o jornal mais mentiroso da História é o Pravda (que significa “a verdade”, em russo).
Como harmonizar o Estado e a vida livre?
A resposta reside na democracia, no Estado de Direito, no qual a sociedade política segue leis interpretadas pelo Judiciário. O Executivo tem uma barreira nos demais Poderes. Os alvos sociais precisam ser examinados no Parlamento ou nas Cortes de Justiça. Para que os interesses sejam discutidos é imperativo que eles sejam visíveis – daí a necessária regulamentação do lobby – e, por sua vez, os legisladores e juízes devem ser vigiados pelo povo soberano. Quem, no poder, se imagina acima do público (“os leigos”) atrai, como dizia Immanuel Kant, a desconfiança generalizada. E reabre as vias sangrentas pisadas por todos os Giges ocidentais, poluindo a fé pública, fonte de liberdade e segurança. Na República os poderes são transparentes, o que inclui togas, fardas, batinas, capelos acadêmicos. A visibilidade absoluta só existe no Paraíso, mas o Estado sem ela é tirania. Conforme Norberto Bobbio, “todo cidadão tem o direito de ser posto à altura de formar para si mesmo uma opinião sobre as decisões tomadas em seu nome” (“o poder mascarado”).
A liberdade
Vivemos uma inusitada crise estatal. Crise bem-vinda, pois nosso Estado apresenta os estigmas do segredo e do autoritarismo, técnicas ditatoriais que arrancaram dos cidadãos o hábito de controlar os governantes, legisladores, magistrados. Cabe à cidadania assumir a sua dignidade, pondo os que se julgam onipotentes no devido lugar. “Autoridade”, na ordem democrática, significa “ser autorizado” pelo povo soberano. Mas os nossos poderosos – no Executivo, no Legislativo, no Judiciário – fingem nada saber sobre o assunto.
O requisito da emancipação política é o livre pensamento, a livre imprensa, da qual fogem os tirânicos Giges brasileiros. Como o diabo da cruz.
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[Roberto Romano é Filósofo, professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas e autor, entre outros, de O caldeirão de Medeia (Perspectiva)]