Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Novas revelações sobre a ditadura

Chega às livrarias, no fim da primeira quinzena de dezembro, AI-5 – A opressão no Brasil, do jornalista Hélio Contreiras, 55 anos. Trata-se do resultado de investigação jornalística ao longo de pelo menos 25 anos, recheada neste livro com documentos secretos – do tipo numerado. ‘Eles eram numerados quando considerados mais sigilosos, porque pela numeração o regime tinha o controle da distribuição’, conta o jornalista ao OI. ‘Sabia a quem eram destinados’. Contreiras trabalhou no Globo, no Estadão, na IstoÉ, sempre cobrindo a espinhosa área militar, boa parte em período mais do que espinhoso – o da ditadura. Poucos resistiram tanto tempo no setor como ele: o horror dos pesados assuntos da área afastou a grande maioria.

Este é o segundo livro de uma série de cinco, inspirada no plano de vôo elaborado em 1992 pelo editor Ênio Silveira, da Civilização Brasileira, em reunião no escritório dele na Avenida Rio Branco, Centro do Rio. Mas a Civilização foi vendida à Record, Ênio morreu em 1996, e o primeiro livro de Contreiras acabou saindo pela Mauad. Em Militares: confissões – histórias secretas do Brasil (Rio de Janeiro, 1998), os administradores do regime dos porões, entre outras informações inéditas, admitiam pela primeira vez a prática da tortura – ‘coisa que ainda não aconteceu, por exemplo, no Chile’. Os próximos serão Conspirações políticas, de que o regime foi pródigo, A ideologia da repressão (‘a base teórica para tanta violência’) e O Estado ilegal, sobre as práticas que contrariavam todas as normas jurídicas. ‘Uma delas, o decreto secreto’.

A demora entre um volume e outro se deve justamente à dose de sofrimento que a lida com a área e o material exigem. Parente ele mesmo de uma vítima da ditadura, seqüestrada em casa, de pijamas, nesses 25 anos o autor ouviu um sem-número de militares, de alto e baixo escalão. Apesar da dor, o esforço foi recompensado: há muitas revelações no livro. Uma das teses inéditas: quem deu início à luta armada foram os militares, e não a esquerda. O autor apresenta depoimento do coronel Helvécio Leite, que fora do gabinete do Ministério do Exército, no qual confessa que os agentes que jogaram bombas no Rio e em São Paulo em 1967 e 1968 eram do grupo dele. A imprensa bem-comportada bradava que eram ‘os comunistas’. AI-5 desmonta outro mito, o de que o general Ernesto Geisel e seu fiel escudeiro Golbery do Couto e Silva eram moderados. O general Antonio Carlos de Andrada Serpa alertou o ditador de que a linha-dura estava pouco a pouco se concentrando toda em São Paulo, sintoma óbvio de endurecimento. Geisel nada fez. De seu gabinete original, aliás, constava a sinistra figura do general Dale Coutinho, ‘um radical que só pensava em destruir a esquerda’.

São mais de 10 páginas de documentos inéditos. Num dos numerados, mostrado a Contreiras pelo coronel da reserva Sebastião Ferreira Chaves, ex-secretário de Segurança de São Paulo e antigo crítico da Operação Bandeirantes (Oban): o SNI recomendava ao presidente da República que fosse reduzida a publicidade de órgãos públicos e estatais na revista Veja, no Estado de S. Paulo e no Jornal do Brasil. A recomendação foi atendida.

Abertura dos arquivos

Com prefácio do jurista e professor Dalmo de Abreu Dallari, o livro mostra como o país acabou submetido à ditadura primeiro pelas conspirações com apoio americano (comprovado por novos depoimentos), em 1964, e depois como o regime se radicalizou ainda mais, em 1968, com a decretação do AI-5, em 13 de dezembro.

A preocupação dos radicais não era com o país, mas com a manutenção do poder, relatam militares que deram depoimento ao autor. O livro conta a história da Oban, que organizou a tortura de militantes de esquerda em São Paulo, e tem capítulos dedicados à perseguição de religiosos, advogados e cientistas – está lá o episódio do ‘Massacre de Manguinhos’: em 1970, a ditadura cassou 10 pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz, reconduzidos ao cargo somente em 1986, pelas mãos do então novo presidente da instituição, Sergio Arouca (1942-2003). Trata igualmente da Operação Condor, que mobilizou agentes do Brasil, da Argentina e do Chile, numa caça impiedosa à esquerda do continente. Hélio Contreiras narra um episódio que não gostaria de ‘ter vivido para ver’: o espancamento de manifestantes no centro do Chile, em manifestação pacífica pelo Dia Internacional da Mulher. Enviado pelo Estadão para cobrir uma feira aeronáutica já em 1986, assistiu aos carabineiros agredindo até grávidas na Avenida Bernardo O’Higgins.

Sempre após muita insistência, conseguiu três depoimentos de João Figueiredo, o último em 1996 – o general já muito debilitado. ‘E muito ressentido com companheiros de caserna’, conta o jornalista. Figueiredo falou sobre os arquivos do SNI e suas fichas de políticos, intelectuais, jornalistas e artistas que o órgão de repressão considerava ‘perigosos’. O livro mostra o processo de divisão do regime entre linha-dura e moderados, à medida que crescia a violência contra os opositores, e a lenta mas segura degradação do poder – oferecia-se tudo no regime militar, inclusive mulheres, como contou ao jornalista o almirante Maximiano da Fonseca (1919-1998), ministro da Marinha de Figueiredo, afastado depois de elogiar os comícios das Diretas Já. ‘Perguntaram o que ele achava, e ele comentou que era um movimento bonito, e aí caiu’. O almirante também contou que só soube da invasão das Malvinas pelo rádio do carro. ‘O SNI não trabalhava pelo país, só patrulhava’, diz Contreiras.

Entusiasta emocionado da ordem constitucional, que o Brasil precisa ‘aprender a respeitar’, Contreiras defende a abertura completa dos arquivos da ditadura. Do golpe de 1964 já lá se vão 41 anos; do episódio Vladimir Herzog, 30 anos. ‘Não há justificativa para a manutenção do sigilo’.

A contribuição da imprensa

No plano pessoal, quem alertou Contreiras para a necessidade de ‘guardar tudo’ – discursos, entrevistas, documentos, matérias – foi o colega João Saldanha (1917-1990), ainda em 1975, na redação do Globo. ‘Especialmente cópias das matérias, para que se visse anos depois o que eu realmente escrevi’, diz o jornalista. Além de guardar tudo, Contreiras, com seu jeitão calado e tímido – o ‘louco benigno’, na expressão carinhosa do chefe no Globo, o saudoso Anderson Campos –, conseguia testemunhar conversas incríveis em grupos de militares. Em solenidades, festas, viagens aproximava-se muito quieto dos grupinhos, e ouvia muito. Memorizava tudo, porque anotar chamaria atenção. Tomava broncas homéricas, mas na matéria seguinte lá estava ele, sorrateiro. Botava o carro do jornal para seguir militares e delegações, e acabava misturando-se aos convidados das cerimônias, sempre ouvindo.

Por isso, nos veículos em que trabalhou, Hélio Contreiras foi responsável por muitos furos de reportagem, entre eles a distribuição de atestado de ideologia pelo MEC, a tortura de presos no início da década de 70, prisões ilegais mesmo sob os critérios elásticos da LSN, críticas do alto escalão militar ao regime (‘a matéria não foi publicada’), corrupção entre militares, rompimento de segredos de Estado, como na sucessão de Geisel (‘revelei que seria o Figueiredo’), o clima que imperava na caserna, propício a atentados (‘um anos antes das explosões do início dos anos 80’), a reforma da LSN, a substituição do coronel Prado Ribeiro no primeiro IPM do Riocentro. Fora outros mais recentes, como a importação do Learjet de PC Farias e o Acordo Espacial de Alcântara, que acabou melando.

Tem muito material até para um sexto livro, este sobre o papel da imprensa ao longo da ditadura. ‘Coisa complicada’, reconhece. A imprensa contribuiu para a sustentação do regime, criando ‘homens fortes’ do regime – na maioria, mitos. O Globo chegava ao ponto de publicar os dossiês preparados pela repressão sobre os presos políticos, prática que Contreiras ajudou a abolir. Donos de jornais ajudavam a financiar a Oban – ‘mas nunca soube que Roberto Marinho estava entre os doadores’, diz Contreiras. Num dos episódios delicados, por exemplo, um editorial do Estadão reclamava da concessão de hábeas-corpus a presos políticos. ‘O sujeito é preso aqui e solto ali’, dizia. Resultado: suspenderam o hábeas-corpus, só restabelecido após audiência de Geisel, já em 1977, a representantes da OAB. O jurista Evandro Lins e Silva (1912-2002), ao reconstituir a audiência para Contreiras, lembrou que o colega Raymundo Faoro (1925-2003) interpelou o então ditador, cobrando a suspensão do direito. ‘Vocês não imaginam que eu seja responsável por isso, não é?’, devolveu Geisel. Logo depois veio a reforma da LSN.