A julgar pela entrevista que com ele fez o repórter Ivan Carvalho Finotti, para o Estado de S.Paulo de domingo (20/11), o sociólogo e economista Marcelo Paixão, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi o responsável por uma sacada de comunicação como de há muito não se via na mídia.
A sua intenção talvez nem fosse propriamente essa, mas a de examinar um problema velho por um ângulo novo. Só que o resultado teve o efeito que costuma ser buscado por todos quantos – jornalistas, publicitários, marqueteiros e consultores de mídia – sabem que o impacto de um ato de comunicação muitas vezes depende mais da forma com que se exprime do que do seu conteúdo intrínseco.
É a busca da tal ‘verdade bem dita’ de que falam os publicitários para se referir à suposta razão de ser do seu ofício. Mas no caso do professor Paixão, não há nada de suposto.
O problema velho de que ele tratou é o do negro no Brasil – ou, como prefere, ‘o problema das relações raciais no Brasil’. E o ângulo novo que ele achou foi – não há outra palavra – um achado.
Nos anos 1990, a ONU criou o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) para complementar ou ir além das clássicas comparações entre os países com base apenas em critérios econômicos (PIB, PIB per capita, nível de emprego, concentração ou dispersão da riqueza, poder de compra da moeda nacional e por aí).
O IDH tenta medir a qualidade de vida das populações – o que já se chamou Felicidade Nacional Bruta. Combina os três fatores que, por abranger, cada qual, uma imensa variedade de outros, seriam os essenciais para a medição: renda por habitante, escolaridade e expectativa de vida.
Na última versão do IDH, de 2002, o Brasil ocupa o nada honroso 73º lugar entre 173 países avaliados. Nada honroso considerando as riquezas nacionais, o grau de desenvolvimento econômico (já foi o 8º mais desenvolvido, hoje é o 11º) e o fato de um certo número daqueles países serem pseudo-nações ou pouco mais do que isso.
A idéia genial de Paixão e dos que o ajudaram a preparar o relatório ‘Racismo, pobreza e violência’, divulgado na sexta-feira (18/11), antevéspera do Dia da Consciência Negra, foi usar os mesmos indicadores do IDH, separando porém os dados disponíveis pela cor que os brasileiros se dão nos Censos do IBGE.
O lugar de cada um diz tudo
Com isso, eles criaram dois países – um Brasil só de brancos e um Brasil só de negros – e se puseram a cotejá-los. O confronto, em si, não trouxe nada de novo: confirmou que, por onde quer que se observe a realidade, os negros estão em situação pior. Muito pior.
Eles são os menos instruídos, os que mais morrem de doenças quando crianças e, quando jovens e adultos, em situações de violência. E não apenas são os mais pobres, como ainda empobrecem quando os brancos desempobrecem.
Esse dado, aliás, é de lascar: entre 1992 e 2001, enquanto em geral o número de pobres ficou 5 milhões menor, o dos negros (e pardos) ficou 500 mil maior. [Consideram-se brancos 53,7% dos brasileiros; negros ou pardos, 44,7%.]
Mas a ‘verdade bem dita’ se concentrou no seguinte: tudo medido e pesado, o Brasil sem negros seria o 44º do mundo em matéria de desenvolvimento humano, ao passo que o Brasil sem brancos estaria no 104º lugar.
O primeiro ficaria emparelhado com um país arrumadinho como a Estônia, no Báltico, entre os petrolíferos Kuwait e Emirados Árabes Unidos. O segundo faria dupla com a Bolívia, cinco posições abaixo do Vietnam.
Isso, se o Brasil – qualquer dos dois – fosse um só, em matéria de progresso social. Não sendo, dá no seguinte: um Distrito Federal inteiramente branco equivaleria à República Checa (33º lugar); inteiramente negro, ao México (54º). O DF tem o melhor IDH do Brasil.
Sem os negros, o Estado brasileiro de pior IDH, o Maranhão, seria um Vietnam (109º). Sem os brancos, esse Estado seria Alagoas, empatado em 122º lugar com a infeliz Namíbia.
Já deu para perceber de sobra como a expressão de uma realidade por intermédio de um punhado de números – e, principalmente, em comparações que desembocam em classificações – entra mais depressa e fica mais tempo na mente do leitor do que a mesma realidade retratada sem esses recursos.
Por isso, os jornais de sábado fizeram a festa – com perdão da palavra – com os dados do IDH brasileiro em preto e branco.
O Estado, apesar do título assim-assim, ‘Aumenta o fosso entre negros e brancos’, destacou melhor do que a concorrência – no centro da página, com tabelas e gráficos em cores fortes – os números mais acachapantes da comparação entre os dois hipotéticos Brasis.
O Globo também puxou o fosso para o título: ‘Desde 92, pobreza cresceu só entre os negros’ e a Folha foi direto ao dado que resume a constatação do relatório de que a democracia racial brasileira é um mito: ‘Brasil dos negros é o 105º de ranking social’.
Uma coisa mais difícil de capturar em números é o sentimento de pobreza. É nessa hora que a leitura da entrevista com o professor Marcelo Paixão fecha o círculo. ‘Não ter sapato em 1900 é diferente de não ter sapato em 2005’, argumenta. ‘O sentimento de privação relativa é tão importante quanto as realidades da privação absoluta. Uma pessoa pode ser pobre, mas, se vive numa sociedade não tão desigual, essa pobreza pode ser pouco sentida.’ [Texto fechado às 15h15 de 22/11]