Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Meia verdade, mentira completa

Charles Foster Kane, dono do maior império jornalístico americano, na primeira metade do século vinte, conseguiu ser vítima da pobreza e da riqueza e ainda sair da vida para entrar na história como um vilão. Tudo isso em uma só vida. Trata-se aqui de uma obra fictícia, o filme Cidadão Kane, dirigido, escrito e interpretado por Orson Welles em 1941. A obra é conhecida principalmente por suas contribuições técnicas para a linguagem cinematográfica, as quais influenciam o cinema até hoje. Muitos a consideram a obra mais importante desde a invenção do cinematógrafo pelos irmãos Lumière. Por outro lado, há um vasto e profícuo conteúdo a ser discutido.

A narrativa é iniciada com a notícia de óbito de Charles Kane. Em seguida, sua vida passa por uma retrospecção, possível mediante a pesquisa desenvolvida por um jornalista. Primeiro, Kane foi vendido por sua mãe, uma mulher pobre que agia com a melhor das intenções, acreditando que ao entregar seu filho a um milionário a situação de ambos melhoraria consideravelmente – ela ainda tenta culpar a agressividade do marido como a real motivadora de sua atitude. Lembremos que, assim como a senhora Kane, Lênin, ao liderar a Revolução Bolchevique – que, segundo suas ideias, seria o primeiro passo para a supressão do capitalismo e, por consequência, das desigualdades sociais – também almejava uma realidade melhor, menos injusta e penosa; mas ninguém prevê o dia depois de amanhã nem controla aqueles que o sucedem em seu projeto.

Destarte, Kane foi afastado de sua família ainda criança. Com isso, distanciou-se da pobreza mas distanciou-se, simultaneamente, do afeto familiar e do trabalho. E foi assim que se encontrou desafortunado em meio a uma das maiores fortunas do país. Da noite para o dia, o jovem Kane abandonou a infância e abraçou o egocentrismo. Ele tinha tudo, mesmo aquilo que não queria ou precisava; e não havia feito nada para conquistar tais regalias, não produzira nenhuma riqueza, apenas a consumiu desenfreadamente; o mundo realmente parecia girar a seu redor.

Partidos “beneficiados”

A situação muda, de certa forma, quando ele acha que seria “divertido” ser editor e proprietário de um jornal. Agora, ao assumir o pequeno, ou médio, Inquirer, ele passaria a contribuir com algo, exercendo uma profissão que há muito tempo – talvez desde o seu surgimento e consolidação no mundo moderno, entre os séculos 15 e 17 – já não era ingênua ou pueril: o jornalismo.

Charles Kane compreendia, desde o início, o poder da mídia, os meios para alcançá-lo e os caminhos que deveria percorrer para conquistar a glória pessoal e profissional. Sua premissa precípua era transmitir a informação como sendo a verdade absoluta, fazendo com que a população – sobrecarregada por altas jornadas de trabalho, com salário aquém do razoável e que, por isso, não dispunha de tempo para muitos questionamentos ou reflexões –, manipulada, acreditasse na imparcialidade da imprensa (“se está escrito é verdade”; é como a Bíblia) e na sacralidade do próprio Kane, o dono da verdade, um “autêntico cidadão” que presta largos serviços à sociedade: “The people think what I want they think!

Impossível não fazer referência a Ace in The Hole (A Montanha dos Sete Abutres), dirigido por Billy Wilder. Um filme que, pessoalmente, acho muito melhor, mas que apresenta importantes diferenças para com a obra de Welles. Wilder tem como foco o jornalista “vendido”; Welles, o magnata. Impossível também não relacionar ao nosso cotidiano, mesmo setenta anos depois da morte de Kane, ano de lançamento do filme.

Quando assisti a esses filmes, logo me lembrei da revista Época, da rede de telejornalismo Globo e do jornal homônimo, todos propriedades de uma mesma organização, fundada por Roberto Marinho – não à toa existe um documentário chamado Muito Além do Cidadão Kane, que discorre acerca da “história secreta da Globo”. Além, é claro, de alguns partidos políticos mais recorrentes dentre os que são “beneficiados” pela “grande imprensa”, os quais é desnecessário mencionar, até porque parcerias desse tipo tendem a cambiar de acordo com o interesse da instituição mais poderosa – no caso, as grandes empresas midiáticas e seus anunciantes, que desrespeitam, sem nenhum pudor, a concessão pública a que, temporariamente, têm direito.

Atraso para a liberdade de expressão

A nível regional, ainda temos a polifônica Organizações Rômulo Maiorana (ORM) – sempre achei curioso serem as mesma iniciais do outro “cidadão” –, com os seus jornais impressos O Liberal e Amazônia, além de emissora de televisão e de rádio. Ou seja, a ORM, assim como muitas outras, presentes em vários estados brasileiros, está vigorosamente presente em três níveis diferentes de meios de comunicação. Um verdadeiro atraso para a liberdade de expressão, visto que, em muitos casos, uma só voz é altissonante, repercute e produz eco, culminando em uma reverberação ininteligível e vazia.

Em contrapartida, felizmente, há 24 anos ainda existe o outro lado da informação: o pequeno mas imponente Jornal Pessoal, escrito e editado por Lúcio Flávio Pinto, considerado o jornalista mais combativo do país, que já foi processado mais de trinta vezes perante o poder judiciário paraense (também repleto de soldados “fieis” à pátria dos conglomerados econômicos das empresas do setor jornalístico) por… denunciar os fatos!

Apesar da repulsa ao monopólio da informação – mais uma forma danosa de latifúndio presente neste país –, não partilho da opinião de Paulo Henrique Amorim, por exemplo, quando ele classifica esses latifundiários de Partido da Imprensa Golpista (PIG, “porco”, em inglês). Penso que, desse modo, passamos de um extremo ao outro e, como diz um professor meu, “entre o branco e o preto há vários matizes de cinza”. Desrespeitar o adversário, como destituí-lo da sua condição de homo sapiens, relegando-o à imundície e a uma suposta irracionalidade, jamais será uma alternativa muito interessante – mesmo que o outro lado às vezes parta para a agressão física, como já aconteceu com Lúcio Flávio.

Desinformar a população

Amorim seria um jornalista imparcial? Existe algum jornalista imparcial? Não acredito. Minha presente formação em ciências humanas me ensinou muito a respeito da subjetividade do conhecimento e da apresentação da “verdade” como uma realidade observada e, portanto, enquadrada sob a limitação de uma perspectiva possível, mas nunca total. Ou ainda, como diz a seguinte frase frequentemente atribuída a Leonardo Boff: “Todo ponto de vista é a vista de um ponto.”

Sendo assim, apresento mais uma justificativa contra a denominação PIG, pois, apesar de geralmente discordar de textos publicados pela “grande imprensa”, considero a perspectiva do “partido” uma via possível. O problema aparece quando ela se diz absoluta, incontestável e irredutível, quando não admite falhas ou quando deliberada e conscientemente escamoteia informações centrais para o leitor. Realmente tal situação ocorre, mas entendo que não devemos generalizar. Toda edição de um jornal é um novo jornal – mesmo que poucas ou nenhuma opiniões divergentes apareçam.

O olhar minucioso e crítico sobre a matéria jornalística deve estar sempre ativo, pois mesmo jornais de qualidade – aqueles que têm compromisso com a busca pela verdade completa, sem omissões; aqueles que propugnam a responsabilidade social, exercendo, assim, a verdadeira “cidadania jornalística”, ao contrário da cidadania aos moldes de Charles Kane – podem cometer um equívoco, propositalmente ou não.

Mas, enfim, o que é cidadania? De fato, não sou, de longe, a pessoa mais indicada para tratar da questão, mas certamente desinformar a população, apresentando apenas “meia verdade” (mentira completa), não é um bom exemplo.

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[Oton Tássio Silva Luna é estudante, Castanhal, PA]