Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Manuel Pinto

‘O caso de alegada corrupção e tráfico de influências, que envolve o major Valentim Loureiro e outros dirigentes desportivos, bem como vários árbitros, tem sido acompanhado com pormenor e destaque pelo ‘Jornal de Notícias’. O facto de vários dos envolvidos na operação ‘Apito Dourado’ serem políticos de relevância nacional fez vir ao de cima aquilo a que Judite de Sousa chamava, neste jornal (24.4), ‘excessiva proximidade’ e que outros designam como ‘promiscuidade’ entre o futebol e a política. Esperemos que, a seu tempo, a Justiça emita o seu veredicto e que este enredo, que já tinha, de alguma forma, sido referenciado pela ex-directora-adjunta da PJ, Maria José Morgado, ou pelo actual procurador-geral da República, Souto de Moura, vá até às últimas consequências no apuramento da verdade.

Mas enquanto a justiça actua, o momento é propício para outras reflexões igualmente urgentes e delicadas, sobre o modo co-mo o jornalismo se tem portado nesta matéria. O assunto foi lançado pelo jornalista Armando Rafael, num texto publicado pelo ‘Diário de Notícias’ no dia 25 de Abril. Reflectindo sobre o que se acabava de passar com a operação ‘Apito Dourado’, perguntava: ‘Haverá jornalismo desportivo de investigação em Portugal? Será que os jornalistas especializados em temas desportivos contam tudo o que sabem ou investigam tudo aquilo de que suspeitam?’. E respondia, de imediato: ‘Os últimos dias forneceram-nos fortíssimos indícios sobre o que há muito já se suspeitava: a imprensa desportiva nacional só acorda para as promiscuidades em torno do mundo do futebol quando a realidade se impõe e os factos são demasiado evidentes’.

O problema assim colocado é demasiado importante para ficar no esquecimento. Na verdade, não deixa de ser surpreendente que, havendo no país três diários desportivos de âmbito nacional, e um espaço muito significativo dedicado a matérias desportivas (mais propriamente futebolísticas) nos jornais de informação geral, nas rádios e nos canais de televisão, sem esquecer os sites especializados na Internet, que passam cada dia a pente fino um sem número de pormenores do sector, nem sempre relevantes, matérias como as que levaram ao ‘Apito Dourado’ não tenham sido objecto de investigação jornalística. Com tanta cobertura, com tanta atenção, com tanto escrutínio do terreno desportivo, os media deram a ideia de terem sido apanhados de surpresa pela acção da Polícia Judiciária.

Numa mensagem por e-mail que me dirigiu, o jornalista e ‘blog-ger’ João Paulo Cruz queixa-se que o jornalismo de investigação, que é hoje em geral diminuto, ‘no sector desportivo é praticamente nulo’, dominando aqui ‘a mediocridade e a subserviência generalizada deste sector específico da profissão’. ‘As excepções, regra geral – acrescenta – até se encontram nas editorias desportivas de órgãos generalistas’.

O editor de Desporto do JN, Francisco J. Marques, consultado pelo provedor, começa por pôr em causa a pertinência de destacar, neste contexto, o jornalismo desportivo, salientando que as mesmas perguntas que Armando Rafael coloca para este campo se poderiam igualmente aplicar à economia, à política, à ciência, etc. ‘Parece-me que o problema é mais vasto. Em Portugal, qual é o patrão de media que aceita pagar salários a jornalistas para se dedicarem à investigação, correndo o risco de estarem meses sem escrever uma linha, ou até de a investigação nunca justificar a elaboração de qualquer matéria jornalística?’, pergunta. Reconhece, contudo, haver também ‘o lado negro das coisas’: ‘É claro – observa Francisco J. Marques – que há jornalistas que, seja para protecção das fontes, seja por uma exagerada cumplicidade com os agentes desportivos, esquecem sistematicamente que o principal compromisso da profissão é sempre a lealdade com os leitores’. Mas isso, acrescenta ainda, ‘é verdade no desporto, na política, na economia, em suma, na vida’.

O escasso investimento na investigação jornalística em geral ou a existência de jornalistas menos cumpridores não são, todavia, resposta bastante para explicar o problema que formulámos.

O caso levantado pela operação ‘Apito Dourado’, uma vez tornado público, passou a ser tratado no JN não nas páginas dedicadas ao Desporto, mas nas de ‘Sociedade’ ou nas páginas de ‘Destaque’, assumindo-se que se tratava de uma matéria do foro policial e judicial. Aparentemente, isto pode parecer normal. Mas só até certo ponto. Ao colocar esta matéria como um assunto da área da justiça, está-se, implicitamente, a passar a mensagem de que estes casos (e outros que porventura existam) não interferem na esfera desportiva, o que está longe de ser evidente.

A jornalista Tânia Laranjo, que cobre habitualmente assuntos desta área, no JN, é bastante crítica do trabalho que se faz na cobertura do desporto pela Imprensa desportiva: reitera a ideia da falta de investigação, da ‘promiscuidade entre jornalistas desportivos e dirigentes’, dos jornais alinhados por clubes, para concluir deste modo: ‘A distinção faz-se um pouco entre os 'jornalistas amigos', que publicam 'boas notícias' e omitem as ‘más notícias’, e os outros, que nos escapam ao controlo’. Sugere ainda haver ‘estratégias definidas ao mais alto nível’, ‘direcções de jornais que ‘não se assumem como guarda-chuva daqueles que estão no terreno’ e repórteres no terreno – ‘a infantaria’, que só podem ter uma ‘vida difícil’.

O desporto é um domínio relevante da vida social. O lado lúdico encontra-se submerso pelo espectáculo e pelo negócio e os media têm nisso um quinhão de peso. Neste quadro, o jornalismo de desporto não pode ser visto como um território em que é mais barato o tributo à deontologia. Ou é jornalismo ou é outra coisa. Os leitores e os cidadãos têm direito a uma informação rigorosa, exaustiva, e independente. Os jornalistas e os órgãos de comunicação social fariam bem em aproveitar o ‘Apito Dourado’ não apenas para fazer notícias, mas igualmente para se questionarem sobre o jornalismo que andam a fazer.

O assunto é certamente complexo e controverso e merece que continuemos a reflectir sobre ele. Os leitores também podem dizer o que sabem e o que pensam.

O Prémio Internacional Liberdade de Imprensa 2004 acaba de ser atribuído pela UNESCO ao jornalista e poeta cubano Artur Rivero, que se encontra detido há mais de um ano, juntamente com mais 25 jornalistas, pelo crime de pensar diferentemente do regime de Fidel Castro e de ter ousado expressar o seu pensamento. O prémio será entregue amanhã, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. ‘A liberdade dos meios de comunicação é importante para edificar sociedades integradoras, que garantam o respeito dos direitos humanos, dêem autonomia à sociedade civil e favoreçam o desenvolvimento. A independência não depende exclusivamente de os particulares poderem utilizar os meios de comunicação; requer igualmente o compromisso com as normas profissionais da informação’ – refere o secretário-geral da UNESCO, na mensagem para este Dia.

Durante toda a semana que agora começa, um dos mais influentes investigadores dos media no plano internacional, o britânico Denis McQuail, estará na Universidade do Minho, em Braga, para apresentar os seus últimos trabalhos centrados no tema ‘A responsabilidade de publicar, numa sociedade livre’.

Titular da cátedra Lloyd Braga deste ano, McQuail profere, na quarta-feira à tarde, uma aula aberta sobre aquele assunto e, na sexta-feira de manhã, terá um encontro com jornalistas interessados em aprofundar com ele a questão da responsabilidade social dos media.

O autor viu recentemente traduzido para português, pela Fundação Gulbenkian, o seu livro de referência ‘Teoria da comunicação de massas’.’