Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Alberto Dines

‘A verdade é que deixamos de viajar. Apesar dos superjatos, do turismo de massa, das redes de hotéis baratos, dos aeroportos gigantescos e dos programas de milhagem, viagem e peregrinação tornaram-se obsoletas.

Os Diários de Motocicleta de Walter Salles trazem de volta a figura de Che Guevara, os sonhos de sua geração, a vitalidade sul-americana, mas sobretudo a constatação de que hoje nos deslocamos, apenas. Fingimos partidas e chegadas, mudamos incessantemente de cenários – sem movimento. A máquina viaja, não o viajante.

A literatura medieval inventou o cavaleiro andante, que se transforma ao longo do percurso, e a literatura moderna produziu o cavaleiro rodante, o motoqueiro. A motocicleta como símbolo de liberdade apareceu em filmes sobre a juventude transviada e sobre hippies, ora montada por Marlon Brando, ora por Peter Fonda.

A idéia da viagem existencial na moto começou com um desconhecido químico-jornalista americano, Robert Pirsig, que em 1974 escreveu o seu épico filosófico, Zen and the Art of Motorcycle Maintenance, best-seller internacional instantâneo, hoje ícone daquele tempo de mudanças (no Brasil, Zen e a arte de consertar motocicletas (Editora Paz e Terra, 1984).

A viagem de Pirsig, do Minnesota à Califórnia, com o filho de 11 anos na garupa é, na verdade, um ‘Inquérito sobre Valores’ (subtítulo do livro), reflexão sobre o que é bom, o que é qualidade, questionamento romântico sobre a relação homem-máquina, investigação sobre escolhas, livro dos encontros naquele momento de grandes desencontros.

Sufocados pela avalanche de metáforas pedestres, de repente surge em nosso cenário uma velha moto como representação de busca e inquietação. Com sua Norton, os jovens Ernesto Guevara e Alberto Granado percorreram o cemitério de utopias e, do périplo, o cineasta Walter Salles trouxe imensa, imprecisa, incômoda e bem-vinda nostalgia. Na paisagem mesquinha da atualidade apareceu a máquina capaz de oxigenar a imaginação e oferecer no meio do blablablá a reparadora melancolia.

O país está precisando viajar – por dentro. Encontrar-se, aferir-se. Com ou sem moto, é preciso descobrir o que está emperrando as sensibilidades, degradando composturas e embaralhando valores. Há muito tempo que o circo não parece tão aviltado. Com tantos assessores de comunicação nos corredores e gabinetes de Brasília, ainda não apareceu algum especialista para reparar nos ídolos caídos, pedestais vazios, imagens corrompidas, palavras gastas e gestos inúteis.

A foto estampada nos jornais de sexta-feira com os novos conselheiros políticos ao lado dos aconselhados no governo deveria mostrar a amplitude do espectro partidário que apóia o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Acabou transformada no retrato da salada de interesses convocados para endossar um mero projeto de poder e, não, um programa de ação e renovação.

O arranca-rabo entre José Sarney e Renan Calheiros, ambos do PMDB, em torno da presidência do Senado, domina, há algumas semanas, a pauta política, reflete-se nas votações e, sobretudo, compromete o resto de dignidade que envolvia nosso Parlamento.

Despudor escancarado, ninguém se dá ao trabalho de recorrer aos eufemismos e disfarces. As aparências foram para o brejo, o vale-tudo já não precisa ser camuflado. Desde fevereiro, as cartelas substituem os gramados no país do futebol e o bingo transformado no símbolo da inépcia nacional assemelha governo e oposição, Judiciário e Ministério Público, Polícia Federal e contravenção, católicos e evangélicos.

Políticos desnorteados procuram motos de qualquer marca para uma viagem introspectiva. Não importa a cilindrada, vale o raio de ação. Urgente, questão de vida ou morte. Entregar na Praça dos Três Poderes.’



Janio de Freitas

‘Farsa, poder e mídia’, copyright Folha de S. Paulo, 10/05/04

‘Apesar de tudo ou por causa de tudo, tanto faz, foi uma semana excelente.

A reabertura dos cassinos de bingo, por exemplo, não motivou uma festança apenas para jogadores e donos do jogo. O jornalismo político também se esbaldou com a alegada fragilidade da base governista; o governo arranjou mais esse pretexto para presentear cargos públicos a malufistas e peemedebistas e, você já havia pensado nisso, vários senadores saem com justas recompensas por sua compreensão para com os cassinos. Nessa expansiva alegria, era natural que alguma coisinha se perdesse.

Perdeu-se, não por acaso, a relevância devida à reabertura dos bingos por apenas dois votos, 33 senadores contra 31, estando ausentes do Senado quatro senadores do PT. Mesmo os tantos recursos do ‘lobby’ dos bingos são incapazes de negar que 31 mais 4 dariam 35 votos contra o jogo. E pronto.

Não é toda semana, nem todo mês, nem mesmo todo ano, que Antonio Palocci abre uma brecha na agenda de conversas, almoços e jantares com banqueiros e agentes do FMI, para falar aos brasileiros sobre a sua política econômica. E expôs uma concepção muito interessante: o Brasil voltará a crescer quando os estrangeiros, convencidos de que o país está com suas finanças arrumadas pelo governo Lula, vierem investir no crescimento. Ou seja, a depender da política de Antonio Palocci, jamais haverá crescimento verdadeiro. A história econômica e, se não bastasse, a atualidade asiática demonstram que são políticas e investimentos governamentais os impulsores do crescimento em países atrasados, só a partir dessa preliminar havendo interesse amplo para o capital estrangeiro produtivo.

O PT na TV ofereceu, é claro, variadas estrelas com a missão de transmitir-nos o que só é visto das alturas palacianas: o governo Lula está fazendo prodígios de justiça social, de criação de empregos no interior, redução dos juros, retomada do crescimento, queda de preços e muito mais. Daí a observação crítica que orientou a intervenção de José Dirceu e o próprio programa: ‘O governo tem só um ano e quatro meses, não é correto cobrar dele a solução de problemas criados durante 20 anos’. Não é correto mesmo. Talvez por isso ninguém faça tal cobrança. Cobrado do governo é que afinal comece a fazer algo dos seus compromissos de campanha. Comece afinal a resgatar também a sua dívida com 52 milhões de pessoas.

A relação insolúvel entre farsa, poder e mídia teve momentos de exuberância consagradora nessa semana de pasmo com a tortura de iraquianos por norte-americanos e britânicos. Os congressistas e a mídia dos Estados Unidos esqueceram as atrocidades dos seus compatriotas no Vietnã, que tardaram tanto a reconhecer, quando a mídia européia já a mostrava por anos e anos? Desde os anos 50, os Estados Unidos espalharam pelo mundo instrutores de métodos atrozes de interrogatório. Foram os mestres dos brasileiros, até que suas técnicas fossem superadas pelas novas criações ensinadas por israelenses.

A mídia e os congressistas dos Estados Unidos sempre souberam tudo a respeito da ferocidade dos seus militares, agentes da CIA e policiais, até por não ter faltado quem, de vez em quando, ousasse furar o silêncio conivente e divulgasse os ensinamentos bárbaros em quartéis e escolas policiais. A reação da grande mídia foi sempre a de sufocar tais revelações. A dos congressistas, a de exigir um bode expiatório, em geral um sargentão idiotizado.

A relutância dos jornais e da TV norte-americanos a adotar o assunto das atrocidades no Iraque, tal como faz com os prisioneiros dos Estados Unidos em Guantánamo, recebeu na semana um adorno muito ilustrativo. Foi um artigo, divulgado com destaque também no Brasil, de Thomas Friedman, ultradireitista que é o principal articulista do ‘The New York Times’. Escreveu indignado a propósito das atrocidades. O sentido do artigo não é, porém, a condenação das atrocidades, mas o fato de suscitarem condenação aos Estados Unidos, na opinião pública mundial. Muito simples: o mal não está nas atrocidades, está na sua divulgação.

Como representação da atualidade e dos homens que lhe dão forma e voz, a semana foi excelente. Pena que esses homens tenham piorado um pouco mais. E façam o mesmo com Brasil e com o mundo.’



Vera Rosa

‘Contra a crise, o espetáculo da propaganda’, copyright O Estado de S. Paulo, 9/05/04

‘Em mais uma tentativa de espantar a imagem de pasmaceira administrativa, o governo prepara uma campanha publicitária grandiosa para dizer que está agindo. O baixo reajuste concedido ao salário mínimo e a nova queda de popularidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva fizeram acender o sinal amarelo: a Secretaria de Comunicação do Governo (Secom) encomendou aos ministérios uma lista com os projetos de maior visibilidade para exibir em vários veículos. Desta vez, serão usadas linguagens diferentes: de televisão à internet, passando por rádio, jornais e revistas, até mesmo internacionais.

A campanha deve ser produzida pelo publicitário Duda Mendonça e ficará pronta até o fim deste mês ou, no máximo, em junho. O slogan ainda não foi definido, mas a idéia é mostrar que ‘o governo está fazendo’. Quando foi marqueteiro do então candidato Paulo Maluf a governador e a prefeito de São Paulo, nos anos 90, Duda bolou o mote ‘Maluf faz’.

Para recuperar a popularidade perdida, a Secom também planeja pôr no ar propagandas que exaltem a auto-estima da população. Uma das peças vai exaltar a criatividade e a determinação do povo brasileiro. Mas o esforço para mostrar que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva não está parado não se resume a essas duas frentes, depois da aparição do presidente no popular programa do Ratinho. Nos rádios e na TV desde o mês passado, a prestação de contas intitulada ‘Mudando o Brasil’ – continuação da série ‘O trabalho sério já começa a dar resultado’ – será ampliada. Até agora, já foram gastos cerca de R$ 8 milhões em propaganda e estão previstos mais R$ 4 milhões. O custo da campanha no estilo ‘Lula faz’ ainda não foi fechado.

Conta-gotas – Faz parte da nova estratégia de comunicação o anúncio da tão falada ‘agenda positiva’, mas até agora o presidente não decidiu se fará a divulgação das medidas num pacote ou a conta-gotas. No próximo dia 13, por exemplo, o governo vai anunciar mudanças no Primeiro Emprego. Lula avaliou que muitas das exigências do programa atrapalhavam a contratação, como a que previa admissões por ‘prazo indeterminado’, e não por período previmente estabelecido.

Ainda para reverter o desgaste pós-mínimo, o presidente lançará um novo programa de financiamento habitacional. Detalhe: será destinado a servidores públicos que ganham até cinco salários mínimos. Também vai anunciar a liberação de créditos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) para quem tem mais de 60 anos.

Lula tem pressa em ver resultados e cobra diariamente mais ações da equipe.

Está amargurado. Em conversas com assessores, diz que nunca imaginou haver tanta burocracia para travar decisões já tomadas. Recentemente, reuniu toda a equipe responsável pela comunicação e deu uma bronca coletiva. Insistiu em que o governo vinha perdendo a batalha para uma imagem: a de paralisia. ‘Mas a imagem do governo não é composta só pelas ações de comunicação’, afirma o secretário-executivo da Secom, Marcus Flora. ‘Há a disputa no Congresso, a situação econômica do país, a cobertura da mídia e até temas que não são da responsabilidade do governo federal, mas são debitados nessa conta.’’

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‘PT vai mostrar tucanos como inimigos na TV’, copyright O Estado de S. Paulo, 6/05/04

‘Em sintonia com o Palácio do Planalto, o PT decidiu mostrar de uma vez por todas que seu principal adversário é o PSDB. No programa que vai ao ar hoje à noite, em cadeia nacional de TV, o partido vai comparar medidas do governo de Luiz Inácio Lula da Silva com as da gestão Fernando Henrique. O slogan, já exibido nos comerciais, foi escolhido a dedo: ‘Isso é fato. Isso é verdade’.

Preocupada com as eleições de outubro e com o desgaste provocado pelo baixo aumento do salário mínimo, a cúpula do PT partirá para a ofensiva contra os tucanos, mas defenderá a política econômica.

‘Esses senhores da oposição estão precisando de semancol, memorex e chá de camomila’, disse o presidente do PT, José Genoino. Para ele, os tucanos ‘não têm legitimidade política’ para criticar o reajuste nem para exigir aumento do valor, como defende a Comissão Mista do Congresso, instalada para examinar a medida provisória que fixou o mínimo em R$ 260.

‘Vamos comparar: como políticos de um partido que ficou oito anos no governo e não deu aumento real para o salário mínimo podem criticar o mínimo estabelecido pelo Lula?’, questionou Genoino.

Comparações como essa serão exibidas no programa petista, que terá como estrelas os ministros José Dirceu (Casa Civil) e Antônio Palocci (Fazenda).

Ao afirmar que o PT não bateu tanto no governo quando estava do outro lado, Genoino não se conteve: ‘A oposição de hoje tem posição sectária, estreita, radicalóide e eleitoreira.’

Produzido pelo publicitário Duda Mendonça, que guarda segredo sobre as peças, o programa destacará que a taxa de juros de 16% ao ano é a menor desde março de 2001. O governo também vai comemorar na TV a queda da inflação, embora não tenha cumprido a meta. A inflação de 2003 foi de 9,3%.

No último ano de Fernando Henrique, em 2002, fechou em 12,53%.

Criticado pela paralisia, o Palácio do Planalto resolveu investir na divulgação da ‘agenda positiva’ e vai aproveitar o horário gratuito do PT. O presidente Lula está irritado com a pasmaceira administrativa e por mais de uma vez chamou a atenção dos responsáveis pela comunicação. Para desviar a atenção das promessas de campanha do candidato Lula, o PT resolveu, então, transferir as comparações para o colo do PSDB, já de olho nas eleições.

No Planalto, o argumento é o de que não é possível comparar as dificuldades enfrentadas pelo governo com as expectativas da campanha. ‘Não dá para comparar a realidade com o sonho’, disse um ministro ao Estado. E concluiu:

‘Nesse campo nós podemos perder.’’



Olavo de Carvalho

‘Sem falsa modéstia’, copyright O Globo, 8/05/04

‘‘A releitura do que se publicou na imprensa no período eleitoral deveria ser matéria obrigatória em todas as faculdades de jornalismo’, afirma o colunista Diogo Mainardi na última revista ‘Veja’. Ele diz isso com razão, e é sem medo nem falsa modéstia que ofereço meus artigos de 2002 ao julgamento do tempo, sabendo que tudo o que anunciei ali foi confirmado, ponto por ponto, pelo desenrolar dos acontecimentos.

Mas quantos jornalistas, hoje, denunciam o presente estado de coisas sem por um só instante lembrar que eles próprios o criaram, consentindo em fazer-se de ajudantes voluntários do sr. Duda Mendonça?

Com a mesma afetação de superioridade olímpica, com a mesma desenvoltura irresponsável com que então fomentaram a embriaguez de messianismo lulista, jogam pedras no presidente na República como se ele fosse um malefício vindo de fora e não a encarnação de uma vontade nacional da qual eles próprios foram os mais ruidosos e entusiásticos porta-vozes.

É escandaloso e imoral em toda a linha, mas não é caso isolado. Com as raras, honrosas e inevitáveis exceções de sempre, os jornalistas brasileiros tornaram-se especialistas em errar sem nunca dar o braço a torcer.

Mas isso não veio do nada.

Desde a faculdade, os estudantes de jornalismo não são ensinados a observar o mundo mas a ‘transformá-lo’ como preconizava Karl Marx. Não querem ser testemunhas da História, e sim ‘agentes de mudança social’. Vacinados contra a idéia de realidade objetiva por meio de teorias tão pretensiosas quanto obtusas, primam em não dizer o que vêem, mas o que querem que o povo acredite. Arrogantes, intolerantes, monstruosamente incultos, quando julgam e condenam o que está acima de sua compreensão não o fazem somente de narizinho empinado; fazem-no com a ilusão de estar combatendo o autoritarismo e a prepotência, o que já é a apoteose da cegueira vaidosa.

Veja-se por exemplo o que fizeram com a correspondência, recém-divulgada, entre Lincoln Gordon e o governo de Washington. De um comunicado de 29 de março de 1964, em que o embaixador, confirmando a iminência da queda do presidente, insistia para que seus superiores dessem algum respaldo ao movimento que se preparava, tiraram a brilhante conclusão de que aí estava – enfim! – a prova, tão antecipadamente alardeada pela esquerda nacional durante quarenta anos, de que os americanos haviam tramado o golpe ou ao menos tomado parte no seu planejamento. A minha conclusão, ao contrário, é que esses jornalistas não sabem ler ou não quiseram enxergar a data do documento. Na ocasião do comunicado, fazia mais de um ano que líderes civis e militares locais vinham tramando a derrubada de Jango. Se dois dias antes da eclosão do movimento o governo americano era convocado às pressas para fazer alguma coisa, o que isso prova é evidentemente o contrário do que a esquerda sempre alegou. Ninguém prepara um golpe com dois dias de antecedência. Os americanos acompanhavam a coisa de longe e, quarenta e oito horas antes de o general Mourão Filho colocar a tropa na rua, ainda estavam tentando decidir o que fazer. Acabaram, é claro, por não fazer nada.

Veja-se também a credibilidade instantânea, a recepção calorosa que a nossa mídia dá a qualquer intriga anti-Bush, mesmo quando fundada em provas tão suspeitas quanto as fotos de ‘torturas’ alegadamente praticadas no Iraque pelas tropas de ocupação. Vários especialistas europeus puseram em dúvida a autenticidade do material, e poucos dias atrás já se revelou que outra série de fotografias publicadas pela imprensa esquerdista, com soldados americanos estuprando pobres mulheres muçulmanas, era uma fraude preparada com imagens extraídas de sites pornográficos. Quem quer que tenha lido ‘La Désinformation par l’Image’ de Vladimir Volkoff (Paris, 2001) sabe que ninguém, no mundo, é contumaz na montagem dessas patifarias como russos e chineses. Mas, se amanhã ou depois ficar provada a falsidade das acusações, qual jornal ou revista, após tê-las usado para reforçar com manchetes escandalosas a onda de antiamericanismo, publicará com o mesmo destaque a advertência: ‘Mentimos’?’