Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma gazeta na corte

A tipografia foi implantada no Brasil de maneira precipitada, e quase por acaso, em 1808. Depois de impedir durante três séculos que o Brasil tivesse acesso às artes gráficas, os primeiros prelos não chegaram ao Rio de Janeiro porque o governo de Portugal subitamente considerasse que eram necessários para o desenvolvimento da colônia. Foi uma consequência da atabalhoada saída da corte de Lisboa ante a invasão francesa. O equipamento estava encaixotado no cais, recém-chegado da Inglaterra, e foi embarcado na frota em fuga, na última hora, por iniciativa pessoal do secretário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra.

D. João, que somente soube da existência de uma tipografia no Brasil depois que fora desembarcada e instalada, percebeu sua utilidade para o funcionamento do governo recém-chegado e para a divulgação de seus atos. Para operar o equipamento gráfico, decidiu instalar no Rio uma estrutura semelhante à que tinha ficado em Lisboa. Como lá funcionava a Impressão Régia, uma Impressão Régia foi improvisada no Rio a partir da tipografia que tinha chegado.

O primeiro jornal do Brasil foi introduzido da mesma maneira que a Impressão Régia: copiando, na colônia, um jornal semelhante ao que tinha ficado em Portugal. Em lugar da Gazeta de Lisboa, que divulgava os atos oficiais e notícias laudatórias, previamente censuradas, foi lançada a Gazeta do Rio de Janeiro seguindo o mesmo modelo. Até a curiosa estrutura societária da publicação portuguesa foi mantida. Como compensação salarial aos oficiais da Secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, que reclamavam de remuneração inferior à de outros funcionários, o governo lhes cedera, em 1760, a propriedade e os lucros da Gazeta de Lisboa. Quase meio século mais tarde, a corte no Brasil entregou aos oficiais dessa mesma Secretaria o privilégio de publicar não apenas a Gazeta do Rio de Janeiro, mas também “gazetas e papéis periódicos de qualquer natureza”. Isto é, o monopólio da imprensa em todo o país. Como se tornaria hábito no Brasil, um bem público era usado em benefício privado.

Folha independente

O primeiro número da Gazeta do Rio de Janeiro circulou no dia 10 de setembro de 1808, um sábado. Tinha quatro páginas in-quarto (13,5×19 cm), com texto em uma coluna da largura da página. Podia ser comprada na loja de Paulo Martin, Filho, mercador de livros. Custava 80 réis o exemplar e 1.800 réis a assinatura semestral. Começou saindo aos sábados, mas já na segunda semana mudou a periodicidade para bissemanal, quartas-feiras e sábados e mais tarde, em 1821, para trissemanal, às terças, quintas e sábados. Eram frequentes os números extraordinários, publicados quando o redator tinha recebido informações que, ao seu critério, não podiam esperar pela próxima edição regular. Custavam o dobro, 160 réis.

Sua principal função era divulgar notícias, com pouca ou nenhuma opinião. Dedicava pouco espaço a temas como economia, literatura ou artes. Publicava atos oficiais, textos da Gazeta de Lisboa e, durante os primeiros anos, copiosas informações sobre a guerra de Portugal, Espanha e Inglaterra contra as tropas de Napoleão na Península Ibérica. As notícias da guerra eram de particular importância tanto para Portugal como para o Brasil e com frequência ocupavam quase a metade do texto da Gazeta. Com o aumento do comércio, passou a inserir abundantes notícias marítimas e, em 1821, informações políticas.

A partir de 1811, para publicar mais informações, a Gazeta aumentou não o número de páginas, mas seu tamanho. Essa foi uma prática constante da imprensa no século XIX. Em lugar de publicar mais páginas, os jornais preferiam aumentar a dimensão das folhas.

Um dos principais atrativos da Gazeta do Rio de Janeiro eram os anúncios. Vendiam-se escravos, navios, cavalos, fazendas, livros, jornais importados, carruagens inglesas, tecidos e vestidos avariados durante viagem em navio. Procuravam-se objetos perdidos, meninos e cavalos extraviados, escravos fugitivos, empregadas que soubessem lavar bem, engomar e coser para uma senhora inglesa, um negro ferreiro, capelão e cirurgião para navio negreiro. Ofereciam-se serviços de despachante por módicos preços, médicos que curam hérnias no escroto com toda perfeição sem que fiquem defeitos, aulas particulares.

A principal fonte de informação do exterior eram os jornais estrangeiros que chegavam por navio, com considerável atraso. O primeiro número, de 10 de setembro, publicava informações de 30 de abril procedentes de Amsterdã e de 12 de junho, de Londres. O segundo, de 17 de setembro, trazia notícias de Roma de 21 de maio e de Londres de 28 de junho.

Formalmente, a Gazeta era uma folha independente. Informou no primeiro número: “Esta Gazeta, ainda que pertença por Privilegio aos Oficiais da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, não é contudo oficial; e o Governo somente responde por aqueles papéis, que nela mandar imprimir em seu nome”. Na prática, o conde de Linhares, mão direita do príncipe regente, orientava a publicação.

“Digno sucessor”

Não há dados sobre a circulação da Gazeta do Rio de Janeiro. Juarez Bahia estima que chegasse a mil exemplares nas primeiras semanas, número elevado para uma cidade que até então tinha vivido sem jornais. Pode inferir-se que a demanda por informações era grande, a julgar pelo rápido aumento da periodicidade.

Como seu modelo, a Gazeta de Lisboa, a do Rio de Janeiro tinha um único redator. Nos primeiros anos, foi editada e escrita por frei Tibúrcio José da Rocha. Com a morte de seu protetor, o conde de Linhares, e as mudanças decorrentes de sua substituição pelo conde das Galveias, o padre preferiu sair. Foi substituído em 1813 pelo coronel Manuel Ferreira de Araujo Guimarães, baiano, professor de matemática e escritor de várias obras de cunho técnico publicadas pela Impressão Régia. Ele acumulou as aulas de matemática com a redação da Gazeta do Rio de Janeiro e, durante dois anos, com a publicação da revista O Patriota. Em 1821, teve uma áspera polêmica com o cônego Francisco Vieira Goulart e um desentendimento com os oficiais da Secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, que tinham o privilégio da publicação da Gazeta.

Quando o jornal, para publicar mais informações, aumentou o formato e a periodicidade, para três dias por semana, Araujo Guimarães pediu também um aumento da remuneração; os oficiais julgaram “exorbitante” a reivindicação, pois achavam que ele era muito bem pago, e o demitiram. Em sua despedida, Araujo Guimarães afirmou que, quando assumiu a redação, a Gazeta se achava num “estado de descrédito e abandono”. Passou a redigir O Espelho, um jornal agressivo, dedicado à defesa de d. Pedro I, no qual o monarca escrevia sob pseudônimo. Seu substituto na Gazeta do Rio de Janeiro foi precisamente o cônego Vieira Goulart, com quem ele tinha polemizado. Goulart era redator de O Bem da Ordem, periódico publicado às expensas do Erário. Fez um jornal mais opinativo que seus antecessores e combateu as novas publicações de ideias liberais que estavam surgindo, como o Revérbero Constitucional Fluminense. Em 1822, o nome da folha encolhe para Gazeta do Rio. O jornal desaparece com esse nome em 31 de dezembro desse ano. No dia 2 de janeiro de 1823, reaparece como Diário do Governo, sem a participação dos oficiais da Secretaria.

Poucos jornais foram tão criticados no Brasil como a Gazeta do Rio de Janeiro. A opinião de John Armitage, amplamente difundida e repetida, balizou a maioria das que viriam depois. Ele escreveu que, por meio da Gazeta, “só se informava com toda a fidelidade ao público do estado de saúde dos príncipes da Europa, e de quando em quando as suas páginas eram ilustradas com algum documento do ofício, notícias do natalício, odes, e panegíricos a respeito da família reinante; não se manchavam essas páginas com efervescências de democracia, nem com a exposição de agravos. A julgar-se do Brasil pelo seu único periódico, devia ser considerado como um paraíso terrestre, onde nunca se tinha expressado um só queixume”.

Ele desqualificou também outro jornal, a Gazeta Fluminense, dizendo quer era “digno sucessor da Gazeta do Rio do tempo do governo absoluto, muitas vezes condescendente em ilustrar o entendimento de seus leitores. Alguns atos oficiais, uma lista de entrada e saída de embarcações, extratos de jornais europeus a respeito da Espanha e Turquia e algumas diatribes sobre os horrores da democracia formavam a soma total de seu conteúdo”.

Sem volta

Nelson Werneck Sodré compartilha a visão depreciativa de Armitage. Para ele, a Gazeta do Rio de Janeiro, “um arremedo de jornal”, “era um pobre papel impresso, preocupado quase que tão somente com o que se passava na Europa”; acrescentava que “nada nele constituía atrativo para o público, nem era essa a preocupação dos que o faziam, como a dos que o haviam criado”.

Richard Romancini e Cláudia Lago escreveram que o jornal era, “em sentido mais pejorativo, bajulador e subserviente, ‘chapa branca’”. BSC Mariani: “A Gazeta do Rio de Janeiro era um jornal feito pela corte e voltado para atender seus interesses (…) O Brasil e os brasileiros simplesmente não existiam nas páginas da Gazeta”.

Hipólito José da Costa se refere a ela como a “mísera Gazeta do Rio de Janeiro, em que se gasta tão boa qualidade de papel em imprimir tão ruim matéria, que melhor se empregaria se fosse usado para embrulhar manteiga”.

Alfredo de Carvalho lembra a opinião de Teixeira de Mello: “Este periódico (…) quase nenhuma influência exerceu sobre os negócios do Brasil, limitando-se à publicação de atos oficiais e à transcrição de notícias estrangeiras, sobretudo das que diziam respeito à França, então sob o domínio de Napoleão”. Wilson Martins parece concordar.

Está havendo uma revisão histórica, segundo a qual essas críticas, ainda que exageradas e caricaturais, não estavam fundamentalmente erradas. O jornal nada publicava que desagradasse à corte. Mas a Gazeta do Rio de Janeiro era algo mais do que um jornal “áulico”. Alguns escritores afirmam que continha também informações de interesse para uma sociedade que até então não contava com nenhum jornal impresso. Escreve Maria Beatriz Nizza da Silva que a crítica “não fazia justiça ao conteúdo da Gazeta, muito mais variado do que Armitage deixa entender”. Ela diz que o jornal é precioso como documento da vida cotidiana, sobre a maneira de morar, comer e vestir. A seleção de notícias não pode ser encarada apenas como uma forma de bajulação; “mostra o que era valorizado na sociedade colonial e merecia ser divulgado” e há temas “de interesse geral, como a abertura de estradas e canais, os projetos de colonização, os incentivos à agricultura, a domesticação dos índios etc. Alguns aspectos da vida mercantil da praça do Rio de Janeiro aparecem com mais clareza na Gazeta do que em outro tipo de documento.”

Segundo Marco Morel, “Uma questão recorrente na historiografia brasileira sobre a imprensa, mais particularmente sobre o surgimento dos periódicos em princípios dos oitocentos, é a ênfase no atraso, na censura e no oficialismo como fatores explicativos destes primeiros tempos da imprensa. Tais características não me parecem, em termos analíticos, suficientes para explicar a complexidade e compreender as características de tal imprensa, gerada numa sociedade em mutação”.

Para Nelson Varón Cadena, “é injusta e preconceituosa a imagem construída pelos historiadores em torno da Gazeta do Rio de Janeiro. Imagem esta que prevalece no ensino de história do jornalismo nas universidades brasileiras”.

Essas opiniões mudam talvez de maneira excessiva o pêndulo da balança. Mas servem como contrapeso às críticas anteriores. Independentemente das atribulações durante o seu embarque e chegada e das intenções do governo, a instalação da tipografia e da Impressão Régia no Rio permitiram ao Brasil dar um grande salto cultural. A Gazeta do Rio de Janeiro, mesmo censurada e com inúmeras limitações, foi uma semente da qual germinou a imprensa brasileira. O aparecimento desse jornal marcou para o Brasil a diferença entre ter ou não ter jornais escritos e impressos no Brasil. A partir de sua instalação, não foi possível voltar atrás. Como escreveu Hipólito José da Costa no Correio Braziliense: “Tarde, desgraçadamente tarde: mas enfim, aparecem tipos no Brasil”. E, com eles, a imprensa.

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[Matías M. Molina é autor do livro Os Melhores Jornais do Mundo, em segunda edição]