‘Na opinião do jornalista Celso Augusto Schröder, coordenador geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), os governos tratam a comunicação de maneira ‘administrativista’ e burocrática – característica mantida pelo governo Lula. Deixando-se envolver pelo espontaneísmo do mercado, a burocracia governamental termina por desprezar as possibilidades de impor um controle público sobre a comunicação e de explorar as suas potencialidades humanizadoras. Celso Schröder também é secretário-geral da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). Foi presidente, por duas gestões, do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Rio Grande do Sul. É mestrando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUCRS e professor do Curso de Jornalismo da mesma instituição onde se graduou
IHU On-Line – O FNDC define a comunicação social como um elemento estratégico para o País e luta pela sua democratização. Quais são os pressupostos do atributo ‘estratégico’ e o que é ‘democratizar’ a comunicação?
Celso Schröder – O Fórum é uma entidade civil, sem fins lucrativos. Foi fundado em 1991 e reúne várias e importantes entidades da sociedade civil e dos movimentos organizados. Podemos dizer que já temos um bom acúmulo nos debates e propostas sobre a comunicação social. O FNDC começou rompendo com a visão messiânica e finalística da luta pela democratização. Nós a consideramos um processo praticamente interminável, devido ao caráter dinâmico do desenvolvimento dos meios de produção, da tecnologia e da correlação das forças políticas. Ela não pode ser confundida como eventuais demandas corporativas, deve ser compreendida como uma luta pelo exercício pleno da cidadania. Não basta denunciar o quadro de exclusão e manipulação existente nos meios de comunicação de massa. Precisamos construir gradativamente uma nova realidade. Ela deve ser transformada desde já, por isso precisamos de políticas públicas de comunicação. Essa luta é estratégica porque, cada vez mais, a comunicação social exerce determinações sobre a cultura, a política e a economia. Essas formulações resultam de um longo e profícuo debate estabelecido entre dezenas de entidades da sociedade civil, que integram o FNDC. Detalhadamente, podem ser consultadas no nosso site www.fndc.org.br
IHU On-Line – O FNDC defende o ‘controle público’ da comunicação. Como ele se processaria?
Celso Schröder – O controle público é inseparável da democratização e se expressa através de políticas que ampliem o acesso à propriedade dos meios de comunicação, que criem mecanismos de regulação desses meios, que dêem trânsito às demandas da sociedade civil e dos setores organizados da sociedade. Precisamos de instrumentos institucionais e políticos com funções de avaliação, fiscalização, crítica, acompanhamento, dissuasão, contra-argumentação. Isso não pode ser confundido com censura. Precisamos construir conceitos regulatórios, reconhecendo a diversidade de valores culturais, étnicos, ideológicos. Precisamos construir instituições que trabalhem esses conceitos, dentro ou fora do Estado, reconhecidas ou não por ele. Isso é indispensável para estabelecermos relações democráticas e plurais, e assim equacionarmos as questões referentes ao controle e à democratização. E não podemos esquecer que, nas determinações que a comunicação impõe sobre a sociedade, destaca-se a extraordinária influência sobre a cultura. Uma sociedade que não controlar os seus meios de comunicação de massa perde o controle sobre a sua própria cultura. Nesse caso, o grande inimigo a ser enfrentado é a lógica da mercadoria. A coisificação da realidade humana e da essência humana, produzida pela lógica da mercadoria, deve ser refreada com medidas de controle público. Aos governos cabe criar políticas que amparem essas medidas.
IHU On-Line – Como os governos têm recebido essas demandas?
Celso Schröder – Os governos, em geral, tratam a comunicação de maneira ‘administrativista’ e burocrática. Procuram desconhecer ou desbordar as suas dimensões políticas e estratégicas. Historicamente, obtivemos algumas vitórias importantes, como a Lei do Cabo e o Conselho de Comunicação Social . Às vésperas da posse do governo Lula, encaminhamos aos futuros governantes uma proposta de política pública de comunicação social . Em síntese, propusemos o redimensionamento do Ministério das Comunicações, que passaria a ser um centro de gestão e formulação de políticas de comunicação; propusemos medidas para enfrentar a espontaneidade que caracteriza a estruturação do mercado e dos sistemas de comunicação social; sugerimos medidas para o desenvolvimento da cultura através da comunicação social; sugerimos medidas de capacitação da sociedade e dos cidadãos para o conhecimento e a ação nos assuntos de comunicação social. Este ponto, especialmente, é muito importante. É preciso, por assim dizer, alfabetizar audiovisualmente a população, para que ela compreenda a linguagem e os artifícios editoriais e estéticos presentes nos conteúdos veiculados pelos meios de comunicação.
IHU On-Line – As posições do FNDC têm um perfil tipicamente institucional e se contrapõem às posições como as defendidas por Noam Chomski, Norman Solomon e Ignacio Ramonet , ou podem ser conciliadas?
Celso Schröder – Elas têm uma ponta de unidade, que é a de identificar, na mídia, uma dimensão política que exige a sua civilização, por assim dizer. A mídia deve ser amplamente democrática, considerando que é formadora de consciências. A mídia é cada vez menos neutra e cada vez mais potente, e precisa representar a pluralidade da sociedade. Esse é o nosso ponto em comum. Esses intelectuais militantes apresentam uma inflexão de denúncia, legítima, interessante, e reúnem dados fortes e organizados. O que nos diferencia é a ausência, neles, de políticas concretas, de movimentos concretos. O que se faz a partir disso? Qual é o projeto de comunicação para o Brasil? Para as nações latino-americanas? Para os países centrais? Quais as incidências na cultura? Como trataremos as grandes redes nacionais? Vamos acabar com elas? Democratizá-las? O que significa isso? Vamos construir fortes alternativas regionais? Como se constitui uma organização de rádios comunitárias também democratizadas? Tudo isso exige uma complexa e difícil arquitetura de grandes políticas. O diagnóstico de situações antidemocráticas precisa ser feito, claro, mas de alguma maneira isso já está sendo feito há anos. Agora, precisamos de esforços que proponham soluções.
IHU On-Line – Redes alternativas de comunicação como as organizadas na Venezuela, para enfrentar os meios conservadores, em defesa do chavismo, não caracterizam uma política de comunicação?
Celso Schröder – Acho que é um esboço de política que nasce inspirada nas proposições de intelectuais como Ramonet. Trata-se de uma situação excepcional: lá ocorre praticamente uma ‘guerra civil’ na comunicação, a comunicação privada está absolutamente partidarizada, os movimentos populares reagiram, buscando alternativas de comunicação. Mas isso é uma tática de enfrentamento, legítima, para um caso específico. Não é uma política de comunicação democrática propriamente dita.
IHU On-Line – Há exemplos internacionais onde possamos buscar referências para uma política de comunicação democrática?
Celso Schröder – Acho que não. A recente Cúpula Mundial da Sociedade da Informação, promovida pela Unesco , demonstrou a dificuldade dos agentes da democratização produzir uma discussão global, articulando tecnologias e introduzindo elementos de democracia, como a questão do controle público, sobre a comunicação. Aqui e acolá existem diagnósticos interessantes, Thompson, Mattelart o próprio Chomski, demonstram que a democracia é um bem, que se precisa constituir um espaço público que permeie todos os meios, mas nós não conseguimos perceber um movimento unitário. Percebem-se vieses estatizantes, classistas, denuncistas. Muitas abordagens têm alguma sintonia entre si, mas nós não identificamos um movimento que dê conta da problemática em suas várias frentes.
IHU On-Line – No final de 2003, o FNDC divulgou uma carta aberta ao Governo Lula, abordando o pedido de recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômicos e Social (BNDES) feito pelas empresas de comunicação. O assunto continua em pauta, sendo ineditamente abordado pelos meios de comunicação, que, historicamente, não expõem seus interesses publicamente. Como está essa questão?
Celso Schröder – Sim, a Carta Aberta foi divulgada e encaminhada à Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica (Secom). No primeiro momento desse episódio parecia que o governo sinalizava positivamente às empresas porque considerava o assunto, como chegou a dizer o ministro José Dirceu [ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República], ‘uma questão de Estado’. Mas não apareceu qualquer esboço macro de política de governo. Passamos a temer que, sem discussão pública, sem projeto político de governo, se pudesse fazer uma transferência pública de dinheiro nos moldes em que já havia acontecido em outros momentos, como no final do governo de FHC, quando foram destinados recursos do BNDES para a Globopar . Então o FNDC resolveu, sem negar a possibilidade desse setor econômico de buscar dinheiro público, levantar algumas questões.
IHU On-Line – Quais são essas questões?
Celso Schröder – Primeiro, achamos que cabia indagar se esse segmento tem legitimidade para reivindicar recursos públicos. Nessa pergunta está implícita uma tentativa de abrir a ‘caixa preta’ das contas, dos balanços das empresas de comunicação. Isso ocorreu com outros setores, como quando o setor automobilístico foi buscar dinheiro no BNDES e oportunizou uma discussão nacional sobre o papel que tinha essa indústria. Em outras palavras, estamos reivindicando que essa negociação com as empresas de comunicação não seja uma mera transação bancária. Essa era tendência do BNDES, inclusive o Lessa [Carlos Lessa, presidente do BNDES] disse mais de uma vez: ‘Estamos num banco, as pessoas vêm aqui, trazem o pedido, nos cabe olhar apenas se elas têm condições de pagar e emprestamos ou não’. Nós estamos dizendo que não pode ser assim, considerando as características do setor e o seu histórico de cumplicidade com os governos, a falta de transparência dessas relações, desde os militares.
IHU On-Line – Mas o pedido feito pelas empresas não foi público?
Celso Schröder – Sim, desta vez o movimento feito pelas empresas foi diferente, foi um pedido público. Primeiro noticiaram os seus propósitos e depois publicaram uma nota oficia , anunciando formalmente a ida ao banco. Acreditamos que isso ocorreu, porque, diferentemente dos governos anteriores, o governo atual não mantém uma relação de cumplicidade e intimidade com as empresas de comunicação. Embora não se possa negar que o pedido ficou marcado como um auxílio às Organizações Globo, considerando as dissidências existentes na Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão .
IHU On-Line – Em síntese, o que diz a ‘Carta Aberta ao Governo Lula?’
Celso Schröder – Primeiramente, destacamos que, sendo o BNDES um banco público, é justo que sejam criados espaços de interlocução em que a sociedade possa participar das decisões sobre os investimentos que interessem ao conjunto da sociedade, como é o caso de recursos destinados às empresas de comunicação. Em seguida, indagamos quais são as características da ‘crise da mídia’, a sua abrangência, a extensão do programa de apoio, se ele se destina somente às empresas privadas ou também às redes públicas e estatais de rádio e TV. Por fim, sugerimos que as empresas ofereçam algumas contrapartidas.
IHU On-Line – Quais são as principais?
Celso Schröder – Também em síntese: transparência nas informações, negociações e decisões; tratamento equânime para os segmentos privados, estatais, públicos, comunitários, alternativos; veto às empresas que historicamente praticam evasão fiscal; incentivo à produção brasileira audiovisual de qualidade; criação, nos meios de comunicação social, de uma infra-estrutura técnica, visando à regionalização da produção artística, cultural, educativa e informativa, estimulando também a geração de emprego e renda; garantia de acesso aos recursos por parte de novos empreendedores, estimulando a concorrência; garantia de que os recursos não serão usados para agravar a concentração da propriedade dos meios de comunicação. Deixamos bem claro que não nos interessa uma mídia fraca, nem empresas quebradas, mas que, no caso das empresas de comunicação, o dinheiro não poderia ser emprestado sem contrapartidas.
IHU On-Line – Esse movimento do FNDC contribuiu para mudar o caráter da transação, o empréstimo deixou de ser tratado como uma mera operação bancária?
Celso Schröder – Não, pois prevalece a posição do BNDES, que se recusa a ‘carimbar dinheiro’, isto é, dar-lhe um fim específico, comportando-se como um órgão alheio às questões levantadas. Foram muitas as articulações de bastidores, reuniões na Comissão de Educação do Senado, disputas na Abert. Aparentemente, o governo está atrapalhado com essa disputa intra-setorial, mas também está preocupado com as manifestações da sociedade civil, através do FNDC, com as posições críticas ao banco de parlamentares de sua base. O MST, por exemplo, é francamente contrário ao empréstimo. Por enquanto, o que estamos vendo é uma prática meramente bancária, sem atentar para a importância estratégica dos meios de comunicação.
IHU On-Line – O tratamento dado à crise da mídia revela que o governo está atuando de forma semelhante aos anteriores, na comunicação?
Celso Schröder – Na verdade, não se percebe nenhum projeto. Há algumas diferenças. Por exemplo, nos surpreendeu positivamente, logo no início do governo, a manifestação do Ministério ao identificar na digitalização da radiodifusão um elemento estratégico para o governo. Compôs comissões, demonstrou vontade política para intervir na disputa. O FNDC produziu um documento sobre esse assunto, cujo debate parece estagnado. Nos governos anteriores, especialmente no último, havia um projeto claro para a área, embora nós discordássemos dele frontalmente. Na época, a comunicação eletrônica foi praticamente deixada de lado, ignoraram-se as reivindicações históricas relativas ao reordenamento da regulação para a área e investiu-se na privatização das telecomunicações. O governo FHC sabia o que queria.
IHU On-Line – Essa regulamentação geral está parada e o grande projeto não se esboça?
Celso Schröder – Sim, não conhecemos as idéias sobre o desenvolvimento dos meios de comunicação, de desconcentração da mídia. O que se vislumbra é um movimento estatal, a Radiobrás se movimentando para construir uma rede de rádios e televisões para o governo, o que é legítimo. Mas um projeto de políticas públicas de comunicação do País não pode passar por uma rede estatal de comunicação. Não se percebe nenhuma vontade política de intervir na enorme concentração dos meios de comunicação gerada a partir da ditadura.’
ENTREVISTA / MURILO RAMOS
‘Incompreensão histórica e paralisia governamental’, copyright Boletim IHU Online (http://www.ihu.unisinos.br/), 3/05/04
‘A possível democratização da comunicação no Brasil está aprisionada pela histórica incompreensão dos governantes sobre as suas dimensões estratégicas e a incapacidade do atual governo de vencer a paralisia e praticar ações afirmativas, traduzidas em políticas públicas setoriais. Assim pensa o professor Dr. Murilo César Oliveira Ramos, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Entrevistado pelo IHU On-Line por telefone, ele também mostrou-se preocupado, entre outras considerações, com a disseminação sem critérios das rádios comunitárias, gerando o ‘subcoronelismo eletrônico’. Graduado em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Murilo Ramos é mestre e doutor em Comunicação pela University of Missouri System (U.M.S), em Columbia, nos Estados Unidos e pós-doutor pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É autor, entre outros, do livro Às margens da estrada do futuro – comunicações, políticas e tecnologias, Brasília: Universidade de Brasília, 1999. Dedica-se à pesquisa nas áreas de políticas de comunicação, novas tecnologias, convergência tecnológica, estudos econômicos e políticos de comunicação.
IHU On-Line – O que o governo Lula vem fazendo em favor da democratização da comunicação?
Murilo Ramos – Mesmo reconhecendo que ainda está em seu início, o novo governo não trouxe até agora alterações significativas, não construiu um quadro significativo de mudanças nas áreas das comunicações e na comunicação social eletrônica, em particular. No meu entendimento, o governo ainda está devendo uma política setorial clara para a área de comunicação
IHU On-Line – Quais seriam os pontos básicos de uma política clara?
Murilo Ramos – Primeiro, há um problema de lugar institucional. Temos, no aparelho de estado brasileiro, o Ministério das Comunicações, tradicionalmente fraco em determinar funções políticas e setoriais para as comunicações, inclusive no que denominamos comunicação social eletrônica, o rádio e a televisão; temos uma interface com o Ministério da Cultura que trata das questões específicas da produção audiovisual, cinema, televisão, particularmente; temos a Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica, voltada principalmente para a gestão das verbas publicitárias, mas que tem uma interface muito clara com os demais setores, podendo articular políticas setoriais. Também temos a Agência Nacional de Telecomunicações, a Anatel. Ela regula toda a TV por assinatura, além das telecomunicações, em sentido estrito, mais as telecomunicações que hoje tratam de questões como o Serviço de Comunicação Multimídia. Só a referência a esses lugares institucionais permite ver que tudo isso exigiria uma articulação mais segura, o governo deveria capacitar-se para fazer uma articulação clara desses setores. Ou centralizando-os num determinado lugar institucional, o que eu não acho que seja o caso, ou apresentando políticas de governo que articulasse esses setores, mas não está ocorrendo nada disso.
IHU On-Line – Quais as razões dessa paralisia do governo?
Murilo Ramos – Em primeiro lugar, existe uma falta de compreensão, que não é um problema nosso, especificamente brasileiro, que é a seguinte: como tratar a questão da comunicação social? Da mídia em geral? Em outros cenários nacionais, em outros governos, como no Brasil, há mais clareza com relação a políticas de energia, transporte, área social, educação, bem-estar, previdência. Nós não encontramos essa clareza na comunicação. Nem nas academias. Nos seminários, congressos, podemos ver que falta uma discussão mais coerente, consistente, que crie e proponha políticas de comunicação, a partir de conhecimento acumulado nessa área, como as discussões que aconteceram ao longo do século vinte sobre comunicação e desenvolvimento. Se olharmos todo esse cenário, veremos que falta de compreensão do que seria, para a sociedade, uma política, ou políticas, para a comunicação social. Eu não quero estigmatizar este governo, especificamente, porque isso é algo que vem, já, de muito tempo. Eu entendo que falta uma compreensão do que seja a necessidade de democratizar a comunicação por meio de políticas de comunicação. A democratização da comunicação é uma bandeira, é um caminho de luta muito claro, mas do ponto de vista institucional vai se materializar por meio de ações afirmativas do Estado, por meio do governo. Isso nós não temos visto, historicamente, no País. Então, eu acho que a paralisia decorre, num primeiro momento, de uma falta de compreensão, que é histórica, do que seja essa área, como uma área passível de sofrer ações afirmativas de políticas públicas setoriais.
IHU On-Line – O senhor disse que a paralisia governamental ocorre ‘num primeiro momento’. Pode-se esperar um ‘segundo momento’ mais propositivo?
Murilo Ramos – Apesar das dificuldades, temos uma agenda proposta pelos movimentos sociais, a sociedade civil, a academia, que induz o governo a pensar na necessidade de uma institucionalização, pela primeira vez, do setor de comunicação social eletrônica, por meio de políticas que se materializem numa lei. É aquela velha discussão da lei chamada de Comunicação de Massa ou de Comunicação Eletrônica. Eu não vejo a lei como um primeiro momento, a lei é um momento final, é a materialidade de políticas que são gestadas pela sociedade, em discussões no parlamento, no próprio Poder Executivo. Temos, nessa agenda, a chamada ‘crise da mídia’, como estão sendo denominados os movimentos das grandes empresas de comunicação para que o BNDES as ampare financeiramente. Temos uma discussão complexa, difícil, que é a questão dos conteúdos; que passa pela discussão ética, moral, a baixaria na televisão. Temos todo o processo de digitalização, da televisão e do rádio; a questão da chamada convergência tecnológica e o Serviço de Comunicação Multimídia. Temos o Ministério da Cultura reestruturando toda a Agência Nacional de Cinema, a Ancine, querendo transformá-la na Secretaria do Audiovisual, com grande poder. Há uma série de questões em andamento. Se não houver, por parte do governo, um debruçar-se sobre isso, nesse segundo momento, que eu gostaria que acontecesse, aí sim, haverá uma perda total de esperanças, possibilidades, oportunidades. Pela primeira vez, a sociedade brasileira tem ao seu alcance a oportunidade de formular políticas mais democráticas de comunicação social, e podemos perder essa oportunidade.
IHU On-Line – A atuação do Governo na área da comunicação corresponde às dificuldades do governo nas outras áreas?
Murilo Ramos – A dificuldade é maior na área da comunicação, mas isso vale para qualquer governo. Trata-se da dificuldade de se defrontar com os grupos empresariais da mídia que detêm o poder de formar opinião e construir imagens, em particular as Organizações Globo. Então, é um setor de grande sensibilidade, porque temos a possibilidade de um enfrentamento sempre latente com quem pode, até para defender os seus interesses comerciais, o que é um absurdo mas acontece, esquecer que tem um mandato da sociedade para informar a todos democraticamente e sair primeiramente em defesa dos seus próprios interesses. Esse setor tem essa particularidade que não podemos ignorar e que torna difíceis os movimentos de qualquer governo. Mas não é impossível enfrentá-lo, é uma questão de vontade e oportunidade.
IHU On-Line – Como nos demais setores, o governo também estaria, na comunicação reproduzindo uma prática tradicional?
Murilo Ramos – Eu entendo que sim. Mantido o atual cenário, a tendência é a manutenção do status quo. Mas prefiro imaginar que o governo enfrenta um quadro ao qual ele deverá se adaptar, ainda poderá gerar políticas novas. Entretanto, o quadro que se vê hoje não induz a pensar que tenhamos mudanças a curto prazo. Especialmente porque temos o nó da política econômica. Se esse nó não for rompido, poderemos enfrentar um quadro de progressivas dificuldades institucionais.
IHU On-Line – Quais possíveis iniciativas e ações na área de comunicação estariam limitadas pelo ‘nó da política econômica’?
Murilo Ramos – O Fundo de Universalização do Serviços de Telecomunicações, o Fust, por exemplo. Para ele já foram arrecadados mais de três bilhões de reais, pagos pelas empresas de telecomunicações. Hoje nós devemos ter no orçamento 40 milhões de reais à disposição desse fundo. Imagine o que não se poderia fazer na área da chamada inclusão digital, que é uma das aplicações previstas para esse Fundo, se pudéssemos estar operando com esses recursos, com os mais de três bilhões de reais. Eles foram arrecadados, mas estão servindo de ‘colchão’ para o superávit primário. O dinheiro não é tudo, temos que ter projetos e idéias, mas esses não faltam. Então, temos um gargalo, e a discussão setorial não pode ser feita sem olharmos o quadro mais amplo, que é desanimador. Ainda estamos girando em torno da agenda do Consenso de Washington. Nada de diferente será feito se não houver uma mudança na macroeconomia.
IHU On-Line – Há exemplos mundiais de políticas de comunicação nas quais o Brasil possa se inspirar?
Murilo Ramos – Se olharmos para os países capitalistas centrais, não temos grandes novidades, exceto uma, de uma perspectiva institucional, que é o movimento que a Grã-Bretanha fez, de concentrar num único aparelho regulatório, toda a área audiovisual, rádio, televisão, telecomunicação telefonia, toda essa área à qual nos referimos hoje como área convergente [leia a entrevista com a pesquisadora inglesa Robin Mansell, nesta edição]. Se olharmos para países do porte e da localização do Brasil na geopolítica internacional, eu não vejo exemplos. Na verdade, vivemos um tempo em que de fato existe uma hegemonia de pensamento e muita dificuldade de se pensar alternativas. A Inglaterra também está lançando um modelo para o funcionamento das rádios comunitárias. Talvez ele possa servir como um parâmetro para que coloquemos mais ordem no caos em que se estão transformando as rádios comunitárias no Brasil.
IHU On-Line – O senhor acha que há caos nas rádios comunitárias brasileiras?
Murilo Ramos – O que eu vejo hoje é um crescimento quantitativo muito grande de rádios comunitárias. Esse número varia, fala-se de oito mil a trinta mil, que é o número fornecido pela Anatel e pela Abert, operando de algum modo no País todo. O que começa a se perceber é que um grande número dessas rádios fogem até do conceito legal, que é restrito, da lei da radiodifusão comunitária. São rádios que operam a partir de interesses partidários, religiosos, inclusive interesses comerciais. Acho que é um cenário que merece atenção.
IHU On-Line – Nesse caso, qual seria o papel do governo?
Murilo Ramos – Nesse caso, primeiro cabe ao próprio movimento das rádios comunitárias, o movimento social, saber o que está acontecendo com elas. É muito difícil para o governo, esse ou qualquer outro, fiscalizar e saber se esta ou aquela rádio se enquadra ou não no conceito de rádio comunitária, sem fins lucrativos, se há um conselho representativo da sociedade, como a lei determina. Às vezes, eu identifico nessa proliferação indiscriminada uma certa estratégia de quanto mais, melhor, não importa de qu0e modo. Eu temo que isso esteja fazendo surgir no Brasil o que eu chamo de um ‘subcoronelismo eletrônico’.
IHU On-Line – Não seria um retorno à idéia de rádios livres?
Murilo Ramos – Se for isso, deve haver transparência: o movimento social é favorável a rádios livres, sejam o que forem, representem os interesses que representarem. Particularmente, acredito que se foge à idéia, que é complicada, mas está aí, de rádio comunitária, rádio restrita, operada por e para uma certa comunidade. A partir, inclusive, de um conselho de programação altamente representativo daquela comunidade. Eu sinto que está acontecendo uma inquietante proliferação indiscriminada, porque desconhecemos o perfil correto dessas rádios.
IHU On-Line – Os movimentos para uma democratização da comunicação não pecam pelo exagero institucional? A experiência do chavismo, com a criação de redes de comunicação alternativas, não representa um bom exemplo de democratização?
Murilo Ramos – Não sei, não tenho base para afirmar isso. Conheço a crítica que é feita à aposta na institucionalidade, mas eu, como pesquisador, trabalho dentro de marcos institucionais. Evidentemente que há correntes que acham que os caminhos são outros. É uma espécie de retomada de uma idéia revolucionária, alguns miram-se na ‘revolução bolivariana’. Eu confesso que tenho muita dificuldade de ver o chavismo como um movimento progressista. Acho um movimento mais próximo da definição de um movimento populista, de ligação direta com as massas. É uma discussão complexa, mas se o movimento da democratização se remeter a isso, também é uma discussão que deve ser feita.
IHU On-Line – Em síntese, na sua opinião, o que é uma comunicação democratizada?
Murilo Ramos – Vamos pensar o que seria uma comunicação em democratização. Significa pensar a democracia como processo e, como tal, aberto. Hoje, estamos, politicamente, operando no Brasil, dentro de um marco democrático-liberal, economicamente capitalista. Nele, temos a construção de instituições, o Estado, as organizações da chamada sociedade civil, os espaços para criação, os pleitos ocorrendo com liberdade, acho que temos tido avanços. Mas também precisamos aprofundar, com urgência, a discussão sobre democracia. Recentemente, Fábio Konder Comparato, eminente jurista de esquerda, escreveu que precisamos criar contrapoderes populares. A inconformidade com o que nós temos hoje como democracia pode ser uma marca do que nós fazemos. A democratização da comunicação integra esse processo. Uma comunicação democrática é um processo de comunhão, permitindo a todos, sem exceção, ter iguais condições de acesso a meios e tecnologias para a manifestação de opiniões, de idéias, para construir uma sociedade de acordo com elas e em interação com outras visões. É uma visão utópica? É. No melhor sentido daquilo que aprendemos como utopia.’