Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Robert Fisk

‘Primeiro nossos inimigos criaram o homem-bomba. Agora temos nosso ‘homem-bomba’ digital próprio, a câmera. Veja como Lynndie segura a correia presa à coleira do iraquiano nu, barbado. Olhe mais para a correia de couro, para a dor no rosto do prisioneiro. Nenhum filme de sadismo poderia superar o dano provocado por essa imagem. Em 2001, os aviões derrubaram os edifícios; hoje, é Lynndie quem derruba toda a nossa moral, com apenas um puxão na correia.

O homem-bomba muçulmano grita ‘Allahu Akbar’, Deus é grande. E o que faz o parceiro no crime de Lynndie England? Bem, o jardim de sua casa é enfeitado com uma legenda do Livro de Oséias, sobre semear, sobre justiça. De que outro modo o islã poderia ter entrado em contato tão íntimo com a sexualidade do Velho Testamento? Poderia o cristianismo neoconservador (Lynndie também vai à igreja) ter entrado em choque com o islã de maneira mais violenta, revoltante, obscena? E quem eram os inocentes naquelas fotos vis? Os torturadores e humilhadores americanos? Ou as vítimas iraquianas?

O presidente Bush teme a reação árabe a essas fotos. Por quê? Há um ano os iraquianos vêm tentando falar aos jornalistas sobre o tratamento brutal que estão recebendo das forças de ocupação. Eles não precisam dessas fotos incriminatórias para lhes provar o que já sabem ser verdade. Mas, na história do Oriente Médio, essas fotos já ganharam o status das imagens mais fatídicas da Guerra do Vietnã: o chefe de polícia de Saigon executando seu prisioneiro vietcongue, a menina nua, queimada por napalm, a pilha de cadáveres de My Lai. No caso dos árabes, leia-se Deir Yassin e os corpos empilhados no campo de refugiados palestinos de Sabra e Chatila, em 1982.

Pouco depois da ocupação de Bagdá pelas tropas americanas, em abril do ano passado, tivemos acesso ao vídeo de um espancamento brutal de presos iraquianos por parte da polícia de segurança de Saddam. Não sei ao certo em qual círculo do inferno as vítimas estavam durante os 45 minutos de sadismo constantes de uma fita que tenho. Elas são espancadas, bastões são quebrados em suas gargantas, elas são chutadas para dentro de esgotos e se encolhem como cães apavorados. E por que esses crimes de guerra foram filmados? Num primeiro momento, pensei que fosse para a diversão de Saddam ou de seu repulsivo filho Udai. Hoje, porém, percebo que os vídeos foram feitos para que os presos pudessem ser humilhados. Seu sofrimento, seus patéticos pedidos de misericórdia, seu comportamento animalesco, tudo isso seria registrado para acrescentar a camada final de degradação à sua sorte.

E hoje percebo, também, que as fotos dos iraquianos tão cruelmente tratados -tão torturados- pelos americanos foram feitas por precisamente a mesma razão. Alguém decidiu que as fotos seriam a última gota, a que faria o copo transbordar, o momento de capitulação para aqueles jovens. Façam-nos simular sexo oral. Façam-nos olhar para o pênis de seu melhor amigo. Façam uma moça admirar suas tentativas de ereção. Foram atos de perversidade realmente saddâmica.

Vamos cair na real, como dizem os americanos. Quem ensinou a Lynndie, a seu namorado e aos outros sádicos americanos da prisão de Abu Ghraib a fazer tudo aquilo? Antigamente eu perguntava quem tinha ensinado a polícia secreta síria e iraquiana a fazer aquilo. A resposta à última pergunta era simples: a polícia secreta alemã oriental. Mas e a resposta à primeira pergunta? Bem, fomos informados de que havia interrogadores ‘contratados’ em Abu Ghraib. Tenho razões para crer que a general Janis Karpinski, a infeliz comandante das prisões que agora será expulsa do Exército, sabia que havia ‘gente de fora’ interrogando seus detentos. Nunca foi permitida sua entrada na sala de interrogatório. E posso entender por que. Ela também pode.

Quem eram, então, esses misteriosos interrogadores? Se não eram agentes da CIA ou do FBI, quem eram? Vários nomes já estão rondando -até agora os jornalistas estão dizendo que não têm provas sobre nenhum deles- e, pelo que estou sabendo, vários deles possuem mais de um passaporte. Por que foram levados a Abu Ghraib? Quem os levou para lá? Quanto eles recebem? E quem os treinou? Quem lhes ensinou que é uma boa idéia fazer uma mulher apontar para um árabe forçado a se masturbar, ou que, para humilhar um iraquiano até a submissão, é boa idéia encapuzá-lo com uma calcinha?

Não estamos falando simplesmente de ‘atos doentios’. Estamos falando de profissionais. Bush não pedirá desculpas ao mundo árabe por essa sujeira, mas o refrão constante, insistente e interminável ouvido de oficiais americanos, repetindo que os torturadores foram apenas um grupo minúsculo de americanos não representativos, é algo que me deixa profundamente desconfiado. Lynndie e seu namorado não faziam parte de uma unidade ‘fora da lei’. Eles receberam ordens de fazer coisas desprezíveis. Foram encorajados. Por quem? Quando poderemos ver as fotos dessas pessoas, suas identidades, seus passaportes, suas ordens?

Sim, tudo isso faz parte de uma cultura, de uma tradição que data das Cruzadas -a tradição de que o muçulmano é sujo, lascivo, não cristão, indigno da humanidade-, o que, por sinal, é mais ou menos o que Osama bin Laden acredita sobre nós, ocidentais. E nossa guerra ilegal, imoral, falsa, agora gerou imagens que traem nosso racismo. O homem encapuzado com fios amarrados a suas mãos já virou um ícone, tão memorável quanto a do segundo avião se chocando contra o World Trade Center. Não, é claro que não matamos 3.000 iraquianos. Já matamos muito mais. Tradução de Clara Allain’



Thomas L. Friedman

‘Demitam o secretário, hoje’, copyright O Estado de S. Paulo / The New York Times, 7/05/04

‘Corremos o perigo de perder algo muito mais importante que a guerra no Iraque em si. Corremos o perigo de perder os Estados Unidos como um instrumento de autoridade moral e inspiração no mundo. Nunca vi uma época em que os EUA e seu presidente sejam tão odiados ao redor do planeta.

Acabo de visitar o Japão, e nem os jovens japoneses gostam de nós. Não admira que tantos americanos estejam obcecados com o fim do seriado Friends.

Estes são os únicos amigos que temos, e até eles estão indo embora. Este governo precisa empreender uma reformulação total de sua política para o Iraque; de outro modo, estará chamando um desastre total para todos nós.

Esta reformulação precisa começar com o presidente Bush demitindo o secretário da Defesa, Ronald Rumsfeld – hoje, não amanhã ou no mês que vem.

Hoje. O que aconteceu na prisão de Abu Ghraib foi, na melhor das hipóteses, um rompimento fundamental na cadeia de comando sob a autoridade de Rumsfeld ou, na pior, parte de uma política deliberada, em algum setor do comando militar e de inteligência, de humilhar prisioneiros sexualmente a fim de amolecê-los para o interrogatório, uma política que saiu do controle.

De qualquer modo, o secretário da Defesa é o responsável final e, se formos reconstruir nossa credibilidade como instrumento de valores humanitários, domínio da lei e democratização, no Iraque e e outros lugares, Bush precisa responsabilizar seu secretário da Defesa.

Palavras são importantes, mas atos são mais. Se os líderes do Pentágono dirigissem qualquer empresa dos EUA com o planejamento insondável com que conduzem esta guerra, teriam sido demitidos pelos acionistas há meses.

Sei que interrogatórios duros são vitais numa guerra contra um inimigo impiedoso, mas tortura aberta, ou humilhação sexual com fins de entretenimento, é repugnante. Também sei que o tipo de abuso ocorrido na prisão de Abu Ghraib ocorre em prisões de todo o mundo árabe, todos os dias, como acontecia sob Saddam – sem que a Liga Árabe ou a Al-Jazira digam uma única palavra sobre isso. Sei que existem hipócritas indecentes, mas quero que meu país se comporte melhor – não só por serem os EUA, mas também porque a guerra contra o terrorismo é uma guerra de idéias e, para ter alguma chance de vencer, precisamos manter a credibilidade de nossas idéias.

Fomos atingidos em 11 de setembro por pessoas que acreditavam em idéias abomináveis – idéias endossadas com freqüência por alguns de seus próprios líderes espirituais e educadores em casa. Não podemos vencer uma guerra de idéias contra pessoas assim por nós mesmos. Só os árabes e muçulmanos podem.

O que poderíamos fazer – e este é o único argumento legítimo para esta guerra – é tentar ajudar os iraquianos a criar um contexto progressista no coração do mundo árabe-muçulmano onde a guerra de idéias pudesse ser travada.

Mas é difícil fazer parceria com alguém quando você se torna tão radioativo que ninguém quer ficar ao seu lado. Temos de recuperar algum senso de parceria com o mundo se quisermos cooperar com os iraquianos com sucesso.

Bush precisa convidar a Camp David os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, os líderes da Otan e das Nações Unidas e os dirigentes do Egito, Jordânia, Arábia Saudita e Síria.

Lá, ele precisa reconhecer a derrota, pedir desculpas por seus erros e deixar claro que está virando a página. Em segundo lugar, precisa explicar que estamos perdendo no Iraque e, se continuarmos a perder, o público dos EUA acabará exigindo que abandonemos o país, que então se tornará um Afeganistão com esteróides, o que ameaçará todo o mundo. Terceiro, Bush precisa dizer que será guiado pela ONU na formação do novo governo provisório do Iraque. Finalmente, ele precisa explicar que está pronto para ouvir as idéias de todos sobre como expandir nossa força no Iraque e fazê-la trabalhar sob um novo mandato da ONU, a fim de ter a legitimidade necessária para esmagar um levante contra o governo interino iraquiano e supervisionar eleições – e então se retirar no momento adequado. E precisa pedir a todos que participem.

Não podemos perder isso de vista – por pior que as coisas pareçam no Iraque, ele ainda não está perdido, por uma grande razão: as aspirações dos EUA para o Iraque e aquelas da maioria silenciosa iraquiana, particularmente os xiitas e curtos, ainda estão alinhadas.

Ambos querem a soberania do Iraque e, então, eleições livres. Esta superposição de interesses, embora obscurecida, ainda pode salvar alguma coisa decente desta guerra – se a equipe de Bush conseguir finalmente ter a coragem de admitir suas falhas e mudar o drasticamente o curso.

Sim, é tarde, mas enquanto houver um fio de esperança de que a equipe de Bush fará a coisa certa precisaremos insistir nela, porque o papel dos EUA no mundo é valioso demais – para os EUA e para o resto do mundo – para ser desperdiçado assim.’



James Risen e David Johnston

‘Fotografias sugerem abusos mais graves’, copyright Folha de S. Paulo / New York Times, 8/05/04

‘Fotografias de dois homens mortos, tiradas na prisão de Abu Ghraib, na periferia de Bagdá, podem indicar que a violência contra prisioneiros é bem mais grave que possíveis maus-tratos.

O governo Bush deu poucas informações sobre o primeiro dos mortos. O segundo representa um mistério ainda maior.

As fotografias fazem parte da coleção que mostra presos sendo humilhados por soldados.

Na primeira delas aparece o corpo de um homem com imensa cicatriz na cabeça. Um papel o identifica pelo número 153.399.

Informantes do Pentágono não revelaram a identidade do prisioneiro e as circunstâncias de sua morte. Mas um inquérito militar feito em março pelo general Antonio M. Taguba diz que o iraquiano foi preso durante as agitações de 24 de novembro do ano passado, e que os soldados americanos foram autorizados a interrogá-lo com violência.

Entre os problemas citados pelo militar na prisão há a superlotação, a falta de treino de militares que atuam como guardas e a falta de comunicação entre comandantes e soldados.

A segunda foto sem identificação mostra o corpo de um homem com um curativo debaixo do olho direito. O cadáver está dentro de um saco de plástico, coberto com sacos de gelo, sem informações.

Militares dizem estar investigando dez mortes de presos só no Iraque, mas não esclarecem quando ocorreram. A foto do cadáver com o saco de gelo coincide com o relato no livro da prisão pelo sargento Ivan Frederick, um ex-guarda. Ele é um dos seis indiciados por abusos contra prisioneiros em Abu Ghraib.

Segundo o registro, o incidente ocorreu em novembro de 2003. Diz se tratar de um prisioneiro ‘OGA’, sigla em inglês para ‘de outra agência do governo’, normalmente usada para designar alguém sob custódia da CIA.

Eis o relato escrito por Frederick: ‘Eles o esticaram tanto que o homem morreu. Puseram-no no banheiro, dentro de um saco de plástico com muito gelo por aproximadamente 24 horas. No dia seguinte os médicos chegaram, enfiaram no braço dele uma simulação de soro e o levaram embora. Esse OGA oficialmente nunca deu entrada e não tem nem número.’

Desde que eclodiu o escândalo de abusos nas prisões, o inspetor-geral da CIA disse estar investigando três mortes no Iraque e no Afeganistão, possivelmente praticadas por agentes ou por civis contratados. O Ministério da Justiça está examinando se alguém descumpriu a lei nos casos que envolvem a CIA.

Nenhuma das duas fotografias se enquadra na descrição até agora feita por informantes do governo sobre as mortes investigadas em Abu Ghraib. Num desses casos, a versão oficial é a de que o prisioneiro morreu repentinamente em interrogatório feito por um agente da CIA e por um tradutor contratado.

O prisioneiro foi identificado apenas pelo sobrenome, Jamadi. A morte ocorreu logo depois que ele foi preso por uma patrulha, levado ao aeroporto de Bagdá e transferido no mesmo dia para interrogatório em Abu Ghraib.

Embora a CIA interrogue alguns presos em Abu Ghraib, a prisão é controlada por militares. A maioria dos interrogatórios é conduzida pela inteligência militar, enquanto a CIA se preocupa com uns poucos de ‘alta importância’.

O inspetor-geral da CIA também investiga a morte em novembro de um general iraquiano, Abid Hamad Mahawish. Ele morreu alguns dias depois de interrogado pela CIA.

A terceira morte investigada foi registrada no Afeganistão, em junho de 2003. O morto foi Abdul Wali, ex-comandante local que havia lutado contra a então União Soviética. Os americanos informaram que ele sofrera ataque cardíaco no interrogatório.’