Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O maníaco do parque (da Mônica)

De uma hora para outra, Pedro Bial converteu-se em maníaco do Parque da Mônica. E a libido à deriva armagedonicamente ilimitada, a pautar o BBB, quem diria, foi denunciada por tuiteiros – da mesma forma que a morte de Bin Laden apareceu, pela primeira vez, não nas agências internacionais, não no informe do Departamento de Estado dos Estado Unidos, mas no tweet de um técnico de computador (de classe baixa, que morava defronte à mansão de Laden…).

A Revolução Francesa decapitou o rei. E as redes sociais estão cortando a cabeça dos barões da mídia e até dos ombudsman. Não é para menos que no mês passado o The New York Times anunciou a venda de 16 jornais locais para investir o dinheiro em redes sociais. Em vez de dar satisfação às redes sociais, a Rede Globo preferiu levar o caso à delegacia. Por outro lado (trocadilhos a parte), orientaram Pedro Bial a que visse como um ato de lindeza amorosa a suposta tentativa forçada daquilo a que Camões chamava de “a venérea conjunção”.

Primeira coisa: nada a que se exigir de qualidade da televisão brasileira. Não terce batalhas com a impenitente baixa qualidade da telinha, jamais. É chover no molhado. Sujeito a fúrias intempestivas de ódio contra ela, e surtos idem de tolerância, um crítico já disse tudo o que há de dizer sobre a telinha.

Cumprimento da lei

Nosso melhor crítico de mídia, creia você, que faria 100 anos em 2012, Nelson Rodrigues, já anteviu tudo. Os melhores extratos disto constam de texto que o pesquisador João Freire Filho apresentou num paper genial no XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação, em Campo Grande (MS), em setembro 2001. Ele contava como já nos anos 60 Nelson Rodrigues, como um Adorno brazuca, metia a boca na TV.

“Para Nelson, a unanimidade contra a TV não era burra – era irreal e hipócrita. Havia, segundo ele, certas coisas que um grã-fino só revelava num terreno baldio, à luz dos archotes, na presença inofensiva de uma cabra vadia. Outras não dizia nem no terreno baldio. Por exemplo: o grã-fino só admitiria que gostava de televisão ao médium, depois de morto (Rodrigues, s/d, 67; ver, também, Rodrigues, 1996, 234).

A condição social de “pequeno burguês” – “sem nenhum laivo de grã-finismo” ou “pose de intelectual” (Nelson gostava de apresentar-se como um intuitivo) – dava ao cronista, em contrapartida, “descaro bastante” para confessar de peito aberto não só que assistia à televisão brasileira, como gostava dela, com todo o seu tão característico e discutido mau gosto (Rodrigues, s/d, 87). A chiadeira contra a má qualidade da TV no Brasil ganhara força no finalzinho da década de 60, quando o veículo se consolidava como um típico meio de comunicação de massa – só para se ter uma idéia, o número de aparelhos em uso no país saltou de irrisórios 2 mil, em 1950, para 760 mil, em 1960, e 4 milhões e 931 mil, em 1970 (Mira, 1995, 30)”.

João Freire Filho relata que “o novo dispositivo audiovisual cresceu rodeado de suspeitas por todos os lados: muitos palpitavam que “a máquina de fazer doidos” – na definição de Sérgio Porto – seria responsável por toda uma geração de enfermos sexuais, mentecaptos ou deficientes visuais (os terríveis raios catódicos, lembram-se?). “Fábrica de psicopatas, segundos os psiquiatras, e transmissora de subcultura, vendida como bem de consumo, segundo os sociólogos, a TV carioca está ameaçando de entorpecimento e alienação total cerca de 2 milhões de pessoas que a vêem diariamente…”.

Quem abrisse o “Caderno B” do Jornal do Brasil, na manhã de 16 de junho de 1968, era brindado com mais uma extensa reportagem sobre os poderes luciferinos da televisão. Em meio às previsões agourentas colhidas pelo autor da matéria, Israel Tabak, destacam-se as palavras do psiquiatra e psicanalista Leão Cabernite: a televisão – preveniu o alienista – estava tornando-se a nova “bolinha”; seu “vício” começava a criar o problema da dependência física. Após acentuar a péssima qualidade da programação, Cabernite alertou que “a continuar desta maneira, em bem pouco tempo a nossa televisão poderá transformar-se numa imensa e eficiente fábrica de psicopatas”. Para reverter esse processo, era preciso, primeiro, “uma competente legislação”, depois, “uma competente polícia sanitária” que garantisse o cumprimento da lei. Dos cerca de 2 milhões de telespectadores “colados” diariamente aos 600 mil aparelhos ligados no Rio de Janeiro em 1968, 1 milhão e 400 mil eram pobres ou muito pobres (favelados), registrou Tabak.

Nível baixo

E ao que assistia diariamente esse público das classes C e D (de acordo com a nomenclatura do Ibope, o “grande ditador de programação”)? Basicamente novelas e programas de auditórios. De acordo com o sociólogo Chaim Katz, então professor de Fundamentos Antropológicos e Psicológicos da Comunicação da UFRJ, os folhetins televisivos funcionavam como uma espécie de “tranqüilizante”, de “sedativo”. Já o estupendo sucesso dos programas que exploravam “o deboche, o sadismo e coisas afins” somente podia ser compreendido com o auxílio da “psicopatologia social”: “Quem trabalha o dia todo sem perspectivas, explorado, ganhando mal, (…) ridicularizado o dia todo, agora se compraz em ver os outros sendo ridicularizados. Ele debocha também e sente necessidade de debochar, mas não sabe que no fundo está debochando de si mesmo”.

Vejamos este trecho que engraçado:

“Reza a lenda que a primeira-dama D. Cyla Médici caiu em transe, enquanto assistia ao programa (Costa et al., 1986, 249). Foi nesse contexto conturbado que Hygino Corsetti fez o pronunciamento que avinagrou o humor de Nelson Rodrigues. O ministro chegou a ventilar a hipótese de cassar a concessão das emissoras que insistissem com o “sensacionalismo” e a “baixaria”; no final, limitou-se a anunciar que o governo pretendia acabar com as transmissões ao vivo na televisão brasileira (com ou sem a presença de público no auditório), e que seria nomeada uma comissão interministerial com a responsabilidade de fixar, no prazo de um mês, normas de condutas para as emissoras (“Cassação”, O Estado de S. Paulo, 10/09/1971, 9; “TV perde programas ao vivo”, O Estado de S. Paulo, 11/09/1971, 9).

Antecipando-se às medidas governamentais, Globo e Tupi assinaram um protocolo de autocensura cuja validade se estenderia até a entrada em vigor do “Código de Ética da Televisão Brasileira”, em estudos na área federal. Segundo o então diretor da Central Globo de Produções, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, o acordo firmado entre as duas emissoras com intuito de “eliminar os espetáculos de mau gosto” permitiria que impusesse “uma nova mentalidade aos programas de nível popular” (O Estado de S. Paulo, 03/09/1971, 3; “Diretor da Globo anuncia outra mentalidade na TV”, Jornal do Brasil, 04/09/1971, 5).

“Mas, o que queriam, afinal, os iracundos opositores da televisão brasileira?”, questionava Nelson Rodrigues. Uma TV antipúblico, igualzinha à Rádio MEC, solitária, despovoada, abandonada à própria sorte? “Se há uma emissora que precisa de uma média de Aristóteles, Goethe, Marx, é exatamente essa”, sustentou o cronista. “Mas, para isso, para que cheguemos a um nível tão desejável, temos que esperar uns três milhões de anos. Daí para mais. Enquanto o mundo esteja nivelado por baixo, seremos fervorosos telespectadores” (Rodrigues, 1996, 233).

Numa linha de argumentação que já soa bastante familiar, Nelson costumava dizer que a televisão era o espelho do nosso povo. Havia, no seu dizer, uma “reciprocidade” entre o nível de um e de outro: “A televisão é assim porque o telespectador também o é. Uma coisa depende da outra e as duas se justificam e se absolvem” (Rodrigues, s/d, 119). Logo, o furor contra a televisão tinha dois gumes: “E se a televisão perguntar: 'O nosso nível é baixo. E o de vocês?'. Sim, e o nosso? (…) De que é que vive a televisão? Da audiência, sim, da santa e abnegada audiência. Muito bem. E essa audiência é constituída de quê? De esquimós, tiroleses, congoleses, chineses, pequineses, patagônios? Não. De brasileiros, meus amigos, de brasileiros” (Rodrigues, 1996, 233).”

Gozo total

Segundo ponto: o Big Brother passou a ser uma metáfora do gozo ilimitado que reivindicam as sociedades de capitalismo tardio, como o Brasil, recém conduzidas à pujança. Lotado de bombadões embrutecidos, de damas de sorrisos víscidos, comandados por um senhor de membros engelhados e cabelos nevados, o Big Brother Brasil afeta justamente toda avidez dessa nova classe média – e mesmo os não-cariocas sibilam as letras “s” “protraindo os lábios como se peidassem”, como nota Umberto Eco. O jogo é claro. Não há nenhum tipo de irresolução. Gozar ao máximo, surfar todos os limites, eventualmente trespassar os ditos bons costumes e dessalgar as mágoas nos hectolitros e cervejas fornecidas pelos patrocinadores. Não há discrasia entre o roteiro e as pontas feitas no espetáculo pelos atores de baixa extração. Mas o que a Globo tentou fazer ao conduzir o caso a um distrito foi justamente dissociar o que se faz lá dentro do que a emissora sugere que seja feito. Mas coube aos tuiteiros enxergarem que tudo é uma coisa só, o Big Brother e a Globo.

Para analisar o barato coletivo atual, você justamente tem de enxergar os ingredientes da receita: primeiro a intrusiva demanda de que só o agora importa. Para essas “máquinas desejantes” como notavam Deleuze e Guattari, o importante é o gozo máximo a todo momento: o futuro é o presente, o presente é o passado e o passado não existe. Some-se a isso o fato de o Brasil estar se tornando uma economia respeitável e você terá a análise final. Todos querem gozar tudo. Isso não é novidade. Um dos líderes das revoltas dos anos 60, Jerry Rubin, depois de ter feito fortuna no mercado de capitais na metade dos anos 70, escreveu a sua biografia, Growing up at 37 (Amadurecendo aos 37 anos), que “nada há de mal em gozar os prazeres da vida trazidos pelo dinheiro”.

Marxistas andam retomando a tese de Rosa Luxemburgo, segundo a qual o capitalismo como conhecemos poderá chegar numa “revolução estrutural em que o sistema vai se autodestruir justamente porque as classes médias recém-chegadas a tal condição e os ricos em geral iriam querer passar a gozar o máximo no mais curto espaço de tempo sem dar nada a quem de resto nada teve”. Paul Kennedy sempre gostou de falar no fim da “hiperexpansão imperial” justamente por causa do gozo ilimitado.

O novo gozo é tudo que tem a nova classe média. A The Atlantic elegeu as 14 melhores ideias dos últimos 12 meses: entre elas, a de que o futuro pertencerá aos jornais e sites que cobram por informação (qualificada, é claro, com controle e cadastro de comentaristas) e aquela segundo a qual a maior novidade dos últimos tempos é a ascensão da nova classe média. é a classe média que na metade de agosto passado tomou de assalto a praça Tianammen, na China. É a nova classe média chinesa, que em fevereiro passado derrubou o político que roubou 1 bilhão da construção de estradas de alta velocidade e que mantinha 18 amantes com dinheiro público. É a classe média que peita o governo indiano de Manmohan Singh e que apóia massivamente o grevista d e fome Anna Hazare. É a classe média que bota em xeque o governo da Indonésia. Marx nunca esteve tão certo: a nova classe média não tem limites para decapitar El Rey. Os números são inequívocos: a nova classe média é responsável por mais de um terço de toda a população da África, de três quartos da população da América Latina e de quase 90% da população da China. É a classe que segundo o Banco Mundial tem faturado de 2 a 13 dólares por dia, e que subiu de 277 milhões de representantes da América Latina para 362 milhões entre 1990 e 2005.

“Caminho do excesso”

Essa é a classe média gozante é a expressa como metonímia e sinédoque no BBB. Essa é a classe média a que os outsiders, criminosos etc. jamais perdoaram. Em 21 de abril de 1995 uma carta-bomba explodiu no escritório da madeira Sacramento, nos EUA. O executivo Gilbert Murray morreu na hora. Tudo foi obra do terrorista Unabomber. Como condição de interromper sua ação terrorista, Unabomber exigiu que um grande jornal publicasse seu manifesto de 62 páginas e 35 mil palavras, intitulado “A sociedade industrial e seu futuro”. Por recomendação do FBI, o Washington Post publicou o manifesto a 19 de setembro de 1995. Unabomber estabelecia no documento que o mundo estava pior porque “o capitalismo serve o impulso avançado por uma incessante aquisição material”, em que a classe média recém chegada passaria a agir como “aristocratas folgados e decadentes, maçantes, hedonistas e desmoralizados”.

No Rock n Rio de 1991, o jovem repórter Pedro Bial citou como se fosse sua uma frase do poeta William Blake, segundo a qual “só o caminho do excesso conduz ao palácio da sabedoria”. Pensando bem: o maníaco do parque da Mônica é o cara certo para o BBB. Mesmo estando de cabelos nevados, rosto geodésico, e braços engelhados.

***

[Claudio Julio Tognolli é jornalista]