Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Linchamento moral como comportamento democrático

“É assustador que se assuma como um comportamento democrático o linchamento moral público de uma pessoa”

Um programa de confinamento, com convívio real, de pessoas reais, valendo um milhão e meio de reais. Um formato que estimula o tédio dos participantes, em certas ocasiões, com o que a característica comportamental de cada pessoa acaba ganhando ênfase, pelo destaque às conversas. Jovens atraentes (com interessante “cota” para pessoas comuns, porém exóticas), dispostos a deixarem suas belezas serem expostas. São, é claro, exibidos. Gostam de aparecer. Querem ser celebridades momentâneas. Gostam que sua imagem cruze o país, mostrando seus aspectos sedutores, sua simpatia, seu lado humano que tenderá, por vezes, a mostrar rebeldia ou inquietação – que sofrem tentativas desesperadas de controle pelos participantes, que não se cansam de dizer: “É um jogo.”

O mesmo formato tem como princípio a competição: só um ganhará um milhão e meio. A rede de conversas, orientada pelo tédio, gera intrigas, produz afetos, estimula alianças episódicas ou “permanentes” (o tempo máximo de permanência é menor que três meses). A característica da competição é reforçada em provas para selecionar quem está a salvo da votação que pode tirá-lo da casa e, por conseguinte, da disputa. Os mais queridos, os que não abandonam os colegas nas provas, os que se controlam suficientemente bem para se dar bem relativamente com todo mundo, vão ficando. Estratégias neste sentido podem ser vistas desde a primeira semana. Gradativamente, se constroem personagens, baseados numa pessoa real, a partir de seu comportamento levado ao ar na edição final, com a montagem cruzada de histórias. Um dia, Sandy, no Fantástico, desabafou: “Esquecem [o público] que por trás daquele personagem [a celebridade criada nas histórias de comportamento], há uma pessoa real.”

Corrente majoritária

Goffman, em 1959, escreveu A representação do eu na vida cotidiana (título brasileiro), comentando que todos nós, tal qual atores, representamos nossa própria história para os outros. Criamos versões de nós mesmos, nos comportamos de acordo com as características da função que exercemos em determinadas situações de interação. As próprias situações de interação orientando as ações dos sujeitos que, por sua vez, mexem nas características da interação em curso e das atividades sociais ali representadas.

Capital Inicial cantou: “O que você faz quando ninguém te vê fazendo?” As respostas sinceras seriam bizarras. Fazemos coisas que não temos coragem de repetir nem para nossos próprios pensamentos. Pensamos coisas e imediatamente nos punimos por termos pensado. Quando você só tem espaço pessoal para necessidades fisiológicas vitais, alguém capta aquele pensamento alto, aquela reação mais imprópria, aquela atividade escondida. Até a análise de microexpressões, como observa o psicólogo do Big Brother Geoffrey Beattie, é estendida para milhões de pessoas que vão sendo ensinadas a observar interações sociais.

O público aprendeu bem a observar o que é uma situação que merece ser comentada à exaustão. Há dois finais de semana, um vídeo esteve cruzando a web e, com ele, zilhões de comentários. As cenas eram de um casal do BBB na cama, se beijando em alguns trechos, nitidamente se tocando reciprocamente em outros, e, em seguida, uma ação incisiva do rapaz, na direção da moça, quieta, aparentemente dormindo. Outros vídeos mostram parte da cena acompanhada por outros participantes: um que dorme ao lado do casal, outro que entra e parece rezar na outra cama.

Não é o tipo de assunto que alguém que estude mídia possa dizer que não ficou sabendo. Parei o que estava fazendo e rastreei os vídeos na internet, usando várias combinações de palavras-chave. Li as notícias da Veja, sempre dando ênfase para os comentários contra o homem – ainda que as matérias e notas de colunistas tratassem, ainda, da então indisponibilidade da Globo em tratar do assunto, da emissão das imagens, de entrevistas com advogados com esclarecimentos sobre o assunto. A partir de meus perfis, observava comentários variados, uns a favor, outros contra. Com o passar das horas – e a ampla difusão do conteúdo – vai se tornando majoritária uma corrente: alguns pedindo a saída do integrante, como sinalizava a hashtag, outros demonizando o indivíduo, cunhando-o de todos os termos pejorativos que cabiam em curtas mensagens e – com o anúncio oficial da saída do participante – alguns comentários indignados com o desfecho, outros, aplaudindo – a maioria.

Debate sobre temas sociais

O que é interessante é a rapidez com que palavras de ordem são acolhidas e propagadas, a displicência com que insultos são proferidos – sem sequer levar em conta que um reality show é divulgado nas mídias locais, que entrevistam membros da família, publicam fotos, o que constitui elemento claro de risco à integridade desta pessoa. Sem se levar em conta também que são previamente sabedores de que sua trajetória como personagem implica em empatia ou distanciamento do público, o que pode afetar, inclusive, uma conversa de uma integrante com a produção do programa.

Mas uma coisa sinistra esse fuzuê todo acaba originando: um debate intenso sobre temas sociais. Aconteceu o mesmo no caso Isabella. No caso Eloá, que resultou na morte da menina que era a vítima, setores acadêmicos e a própria mídia discutiram o papel da mídia no desfecho trágico do caso. A população não apareceu de forma intensa, no âmbito midiático, comentando assuntos sociais envolvidos no caso, como tempo real na TV, namoro e sexo precoce, relação pais e filhos etc. No caso Isabella, protestos, panfletos, cartazes, uma comoção nacional intensa e, com ela, comentários justificando sua inserção na discussão pública, como a defesa da criança, a morte brutal, o papel da sociedade. Mas o levante da população contra os acusados foi algo de assustador, estilo palco romano onde pessoas eram atiradas a leões.

Coliseu fica na esquina

Essa sensação voltou. Embora os comentários sociais remetam para a discussão das relações entre homens e mulheres, o que é ou não estupro, a onda que se formou ganhou rapidamente estes contornos pré-punitivos de características justiceiras, com vitimização exacerbada da moça, hostilização do rapaz e pouca reflexão sobre o uso do álcool, socialmente muito aceito, por exemplo, ou a pressão social para que “personagens” se exponham, numa quase exclusão do papel da sociedade no episódio. Como se o que aconteceu lá não acontecesse cá – ainda que o debate chegasse ao estupro, de modo geral, a ligação com o caso específico foi tão rápida e irreflexiva que não permitiu que a questão social, em si, envolvendo o caso, fosse tomada para a discussão popular. Uma série de ses ficaram de fora e as “discussões” se pautaram por a favor e contra – com o que mesmo a apresentação de nuances (caso do meu post) é vista como posicionamento contrário a moça vitimizada.

A permeabilidade entre entretenimento e discussão pública para mim é objeto de estudo e, por isso, tema interessantíssimo de ser observado. Tento colocar o maior número possível de elementos de contraste para tentar ver com clareza o episódio e o envolvimento social. Por isso assisti a todos os vídeos – incluindo o funk “Se dormir vai tomar dormindo” – e li vários textos. Mesmo assim, o levante popular em função de posicionamento contra e cara de linchamento público me assusta. Não sou obcecada com uma modernidade romântica, de democracia intensa e reflexiva. Mas gostaria de ver um debate midiaticamente mais democratizado – onde um ponto de vista diferente não fosse limitado à definição de posição contrária à pessoa vitimizada, portanto situado como mal a ser punido. É assustador que se assuma como um comportamento democrático o linchamento moral público de uma pessoa, sejam quais forem as circunstâncias. Às vezes, bate a sensação de que o coliseu fica ali na esquina.

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[Eloísa Klein é jornalista e doutoranda em Comunicação, Ijuí, RS]