Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Antonio Brasil

‘Tinha ‘jurado’ que não iria cair em tentação e insistir no debate sobre a matéria do presidente Lula no NYT. Creio que esse assunto se tornou um verdadeiro ‘festival de erros e besteiras’. Há muito tempo não leio tantas bobagens na nossa imprensa e presencio a tanta incompetência em termos de ‘diplomacia’. Estamos embarcando em mais uma canoa furada. Nada como um bode ou matéria ‘expiatória’ para aliviar as tensões, afastar as crises e criar precedentes perigosos.

É impressionante como cometemos tantos erros em tão pouco tempo e como perdemos tanto tempo com um assunto tão pequeno. Beber ou não beber, eis a questão! Teorias conspiratórias, acusações de calúnia, difamação e desmoralização de governo se misturam em um frenesi de preconceitos e decisões autoritárias. Um jornalismo meio bêbado confunde patriotismo e nacionalismo com militância política e antiamericanismo. Liberdade de imprensa se transforma em decisões apressadas, valores diferenciados para estrangeiros, linchamento popular de jornalista e reviravoltas ainda mais surpreendentes. No cenário internacional, o Brasil faz um carnaval fora de hora e finalmente consegue sair do berço esplêndido. A nossa diplomacia se engaja na militância política e transforma negociações em condenações. O Brasil vira enredo trágico de escola de samba do crioulo doido ou telenovela surrealista sem pé nem cabeça. Todos os dias somos contemplados com um novo capítulo que faz ainda menos sentido. Cada novo capítulo consegue ser ainda pior do que o anterior. E o problema é que essa novela pode estar somente começando.

Conseguimos transformar uma matéria ‘duvidosa’ de um jornalista ‘esperto’ e ambicioso em uma verdadeira ‘crise internacional’. Jogaram a isca, e o governo brasileiro mordeu. O tal Larry Rohter e o NYT devem estar felizes da vida. Em tempos de crise de valores no jornalismo e de jornalistas em busca do sucesso ou sensacionalismo a qualquer custo, a reação brasileira é um prato cheio. Um convite irresistível a outras matérias semelhantes. Só mesmo no Brasil. O Larry Rohter deve agradecer muito ao presidente Lula e, principalmente, a seus assessores. Ele queria incomodar e conseguiu. Uma única matéria consegue promover reviravoltas surpreendentes. O caminho da justiça e do bom senso foi substituído pela mobilização popular de um linchamento público.

Mas o que mais me impressiona nessa historia toda é a tendência imediata e simplista para explicações nacionalistas ou teorias conspiratórias do tipo nós contra eles, os estrangeiros. Nada como um jornalista americano que muitos podem até considerar leviano ou ‘suspeito’ para detonar mobilizações nacionalistas e antiamericanas. Muitas guerras e perseguições generalizadas baseadas em preconceitos ou até mesmo em incompreensão, desconhecimento ou inveja começam exatamente dessa mesma forma. Escolhe-se uma vítima para justificar o preconceito contra o diferente, nesse caso, o jornalista ‘estrangeiro’. Respondemos a muitos anos de humilhações, contradições ou pura inveja com violências ainda maiores. Atitudes de retaliação por parte do governo brasileiro nos aproximam de atitudes intempestivas de guerrilheiros alucinados. Eles cortam a cabeça do refém americano e nos suspendemos a permissão de trabalho do jornalista. O doce saber da vingança. Não vamos mais aturar esse tipo de atitude por parte dos americanos. De agora em diante, ‘Olho por olho, dente por dente’.

O olhar estrangeiro

Mas afinal, quais são os ‘limites’ e os riscos de um correspondente ‘estrangeiro’ ? Quais são as matérias que um jornalista brasileiro pode publicar mas que não são permitidas a um ‘estrangeiro’ Quem vai controlar a produção de todos os jornalistas estrangeiros no Brasil? Os jornalistas deveriam ter o direito sagrado de ‘desagradar’ os poderosos ou o direito de simplesmente cometer erros. Mas e as teorias conspiratórias? Elas têm um único problema. Assim como o jornalismo partidário ou os preconceitos, essas teorias dispensam as investigações. Os fatos se ajustam sempre num quebra-cabeça meio maluco onde todas as peças sempre se encaixam da mesma forma. Os fatos, acidentes ou erros não existem. Tudo faz parte de uma única explicação. Os interesses dos poderosos contra as suas vítimas inocentes. Esse tipo de jornalismo é muito simples, é provavelmente muito preguiçoso.

Todos os jornalistas, brasileiros ou estrangeiros, deveriam conviver com regras claras sobre seus limites. As instâncias jurídicas também deveriam ser definidas para a condução de investigações, julgamentos e possíveis punições. Afinal, qual seria a diferença entre a liberdade de imprensa para um brasileiro e a liberdade de imprensa de um americano?

Passei boa parte da minha vida como ‘estrangeiro’, e ainda pior, como jornalista estrangeiro. É sempre uma situação muito difícil e delicada. Temos responsabilidades e deveres com nossos leitores, patrões, mas também temos que respeitar os limites impostos pelos países onde somos ‘hóspedes temporários’. Aprendemos a sobreviver com um exercício constante de malabarismo de diferenças sociais, culturais e políticas. As ameaças são constantes e qualquer deslize ou erro pode significar ‘expulsão’ ou o novo eufemismo brasileiro de ‘revogação de visto temporário’. Tudo bem. É um direito ou privilégio do governo brasileiro. Mas também deveríamos nos preocupar com outros problemas ou conseqüências dessas atitudes apressadas.

Olho por olho

E o risco de retaliações? Durante os tenebrosos anos da guerra fria, toda a vez que um diplomata dos EUA ou da União Soviética, por exemplo, era acusado de ‘espionagem’ ou comportamento inapropriado nas suas funções diplomáticas, eles suspendiam o ‘visto temporário’ do diplomata. O acusado era sumariamente ‘expulso’ do país. No entanto, a resposta era sempre previsível e imediata. O país acusado escolhia qualquer diplomata do ‘outro’ país e ele era simplesmente expulso pelas mesmas razões ‘subjetivas’. Obviamente, esse tipo de atitude era uma grande injustiça, mas também era parte de estratégia belicosa de retaliação. A guerra fria ‘aquecia’ e o mundo se tornava um lugar ainda mais perigoso. Essa diplomacia de retaliações nos faz lembrar de um dos maiores líderes da história de toda a humanidade, Mahatma Gandhi. Ele fazia questão de enfrentar as mobilizações populares que clamavam por vingança e retaliações com um único pensamento: ‘An eye for an eye will just make the world blind’ ou ‘Olho por olho só tornará o mundo cego’.

A liberdade de imprensa brasileira deveria possuir regras claras e ser aplicada da mesma forma tanto para os brasileiros como para os estrangeiros. A justificativa simplista de que os EUA agem da mesma forma e que deveríamos retaliar sempre é capaz de ameaçar as nossas próprias liberdades e nos tornar todos ‘cegos’ aos nossos próprios problemas.’



Ivan Lessa

‘Tortura e cachaça’, copyright BBC Brasil.com (www.bbc.com.br), 12/05/04

‘A respeito da polêmica reportagem do correspondente americano Larry Rohter, do New York Times sobre o consumo de bebidas alcoólicas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, não só acompanhei os protestos indignados do Planalto, como também ouvi as opiniões de brasileiros residentes em Londres.

Entre uma e outra incursão a um auriverde evento, nesse mês de Brasil 40 graus, patrocinado pela loja de departamentos Selfridges, busco opiniões, cato informações.

Ao contrário do New York Times, não cito nomes.

Minhas fontes são límpidas e murmurantes, segundo praxe do samba-exaltação e do jornalismo de escol, ao contrário da publicação americana, ainda agora envolvida em rumoroso caso de plágio, por parte de um de seus jornalistas, e que resultou em demissões e reformulações básicas no outrora conceituado jornal.

Quem me lembrou do fato foi um estudante de línguas a caminho da Selfridges a fim de matar saudades de uma caipirinha e um pão de queijo.

Chamemo-lo de Nassir Boaventura. Ou Rebolo de Campos, tanto faz.

Indignado, os dois, digo, o um, Nassir, me lembra que isso tudo não passa de uma cortina de fumaça, uma tentativa de, conforme disse em seu linguajar pitoresco, ‘cobrir a tortura com a peneira’, numa clara alusão ao que vem se passando nas prisões iraquianas e sendo noticiado com destaque pela imprensa mundial.

A companheira de Nassir, ou Rebolo, Neide de Tal, argumentou: ‘Eles não se mancam, os americanos. Eles não estão com nada’.

Rebolo, ou Nassir, lembrou que, além do mais, o jornalista Larry Rohter errou feio ao citar outro presidente Silva, que, dizem as más-línguas, também caneava: Jânio da Silva Quadros.

Segundo o Times, Jânio, ‘bebedor manifesto’, teria dito o seguinte: ‘Bebo porque é líquido’.

Ora, todos nós sabemos – fui obrigado a desviar-me da isenção e concordar com Nassir, ou Rebolo – que Jânio complementou seu bon mot afirmando que ‘se fosse sólido, comeria’.

K.M., do Crato, Ceará, passando por nós, comentou que uma das fontes do correspondente era nada mais nada menos que Leonel Brizola que, segundo ele, K.M., não manja nada de cachaça.

‘O negócio do Brizola é chimarrão. Cachaça, ele está por fora.’

E complementou cantarolando aquela velha marchinha: ‘Cachaça vem do alambique e água vem do Ribeirão’. ‘Rá, rá, rá!’, arrematou, debochado, K.M. do Crato.

Estas linhas são o que, para mim, constituem o verdadeiro e saudável jornalismo. E de cara limpa e sem plágios, viu, New York Times?’



Mario Sergio Conti

‘Você pensa que cachaça é água’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 15/05/04

‘O presidente Jacques Chirac tem um problema com álcool. Num país onde o vinho é a bebida nacional, Chirac gosta mais de cerveja. A França é o país que mais consome vinho no mundo: são 75 litros por francês ao ano. Os maiores tomadores de cerveja são os checos (160 litros/habitante/ano), seguidos de perto pelos irlandeses (155 litros). A França vem em trigésimo-quinto lugar (39 litros) – e o Brasil em vigésimo-sétimo (50 litros).

O que talvez seja mais grave, Chirac prefere a cerveja belga à nacional. Ele está na contramão não só do gosto popular como do seu eleitorado específico: na França, a cerveja é tomada principalmente pelos jovens, e a maioria dos que votam em Chirac tem mais de 45 anos.

Não que o presidente não aprecie ou não tome vinho. Quando a rainha Elisabeth II, da Inglaterra, esteve em Paris no mês passado, Chirac ergueu um brinde a ela no jantar de gala com uma taça de um excelente vinho da Borgonha, um Chateau Mouton Rotcshild.

Em campanha eleitoral, ou em visita a feiras de agricultura e alimentação, Chirac toma um golinho de tudo o que os eleitores ou expositores lhe oferecem: conhaque, calvados, cidra, champanhe, armagnac, poire etc. Mas com amigos, em restaurantes e brasseries, o presidente sempre pede cerveja belga.

Os hábitos etílicos do presidente não configuram uma preocupação nacional. Mas sazonalmente aparecem referências na imprensa. E quando se fala com um francês sobre bebidas, é batata: vem a informação, seguida de um muxoxo ou de um sorriso maledicente, de que o presidente gosta de cerveja belga.

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O presidente Lula tem um problema com álcool?

Nas vezes que estive com ele, não notei problema algum. Uma vez, ele almoçou no restaurante que havia no andar de cima da redação de ‘Veja’. Tomou, como todos os outros que estavam à mesa, uns dois copos de vinho. Depois, ele e um assessor tomaram uma dose de licor Stregha.

Há quatro anos, durante um jantar num restaurante no Jabaquara que ele frequentava, onde havia um excelente camarão à provençal, Lula bebeu uma dose de uísque e, quando muito, dois copos de cerveja. Era uma conversa sem objetivo definido.

Na campanha para as prefeituras de 2000, acompanhei Lula durante uma semana para fazer uma reportagem. Fomos ao Rio Grande do Sul, ao Paraná e a Pernambuco. Ele bebia em alguns almoços e em outros, não. No jantar, bebia sempre. Tomava a bebida que lhe oferecessem. Se houvesse uísque, de uísque ia. Duas doses, no máximo. Aqui em Paris, no ano passado, num coquetel de fim de dia, assim como os cinco ex-primeiros socialistas que estavam na embaixada do Brasil, o presidente tomou vinho.

Já bebi com outros presidentes: Ernesto Geisel, José Sarney, Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso. Alguns beberam menos (Sarney), outros mais (Lula), mas todos cabem na categoria de bebedores sociais: aquele a quem o álcool não afeta o desempenho profissional e o equilíbrio emocional. Nunca o vi nenhum deles bêbado, ou um pouco alterado, ou eufórico, por ter bebido demais.

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Se nunca demonstrou ter problemas com bebida, Lula passou a beber mais, ou em excesso, ao se tornar presidente?

Dois conhecidos (gente de cinema) que participaram de projeções de filmes no Palácio do Alvorada me disseram que o presidente bebeu muito. Um deles contou: duas doses, grandes, de uísque, antes do filme. Durante a projeção, um garçon não deixou o copo do presidente esvaziar. No jantar, ele tomou vinho. Depois, fez um discurso que o meu interlocutor considerou desconexo. Ambos me disseram que o presidente falou palavrões à torto e à direito. E usou uma expressão bem grosseira – que não irei reproduzir por receio que o Planalto me obrigue a voltar ao Brasil.

Dois outros amigos, jornalistas, contaram que se bebia bastante nos churrascos e peladas de fim de semana na Granja do Torto. O que pode parecer uma grande revelação, mas alguém já foi a um churrasco com futebol onde não se bebesse tonéis de cerveja ou caipirinha?

Passei a acompanhar o noticiário político pela lente etílica. Repetidas vezes, notícias envolvendo o presidente relataram com detalhes, de passagem, como quem não quer nada, o que ele bebeu. Exemplo: o jantar com jornalistas na casa de uma colunista em Brasília.

Houve referências explícitas. O presidente da CUT disse que o presidente bebeu antes de tomar uma determinada medida. Uma colunista de economia repetiu o mesmo raciocínio, mas em relação a outra medida. Carlos Heitor Cony escreveu na ‘Folha’ que o presidente é chegado a um ‘aperitivo’.

Começaram então as piadas. Em telefonemas e emails. E também de gente de passagem por Paris, inclusive funcionários do governo. Algumas delas caíram na internet. Aqui mesmo, no ‘Nominimo’, Tutty Vasquez disse que o novo avião presidencial vai se chamar ‘Air Force Fifty-One’. Segundo me contaram, um programa humorístico de televisão, chamado ‘Casseta e Planeta’, também fez graça com os supostos exageros etílicos do presidente.

Aí comecei esperar a reportagem. Era fatal que alguma publicação da grande imprensa se dispusesse a esmiuçar a relação de Lula com a bebida. Se políticos e jornalistas, se os poderosos, se o magma onde se fundem as fofocas brasileiras falava de Lula e bebida, a pauta estava dando sopa e alguém iria transformá-la em matéria. Ainda mais numa quadra em que a popularidade do governo estava em queda.

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Leon Trotsky escreveu na sua biografia de Stálin, que ficou inacabada porque Stálin mandou que lhe cravassem uma picareta de gelo na cabeça, que na Rússia a expressão que designa um alcoólatra na última linha é ‘mais bêbado que um sapateiro georgiano’. E lembrou em seguida que Stálin era filho de um sapateiro georgiano. Acusar o adversário de bêbado é moeda corrente na luta política.

Não apenas porque o excesso de álcool altera a capacidade de discernimento. O alcolismo é problema de saúde pública na maioria dos países. (Nos países muçulmanos, Alá seja louvado, pelo menos esse problema não existe).

Em si, dependendo da personalidade do político, o consumo de álcool independe não só das idéias que ele defende como não tem ligação direta com a sua capacidade de elaboração e liderança. Hitler não bebia. Churchill bebia feito um gambá – uísque e champanhe – o que não o impediu de ser um democrata e liderar a resistência contra o fascismo.

O alcoolismo é um problema na Rússia há quinhentos anos, quando foi inventada a vodka. Trotsky, que não bebia, tinha idéias de como combater o alcolismo. Perdeu o poder antes de colocá-las em prática. Stálin, que bebia (sobretudo vinho georgiano, que é ruim paca), ordenou durante a Segunda Guerra Mundial que se desse uma dose de vodka todas às noites a cada soldado do Exército Vermelho.

Mikhail Gorbachev quis controlar a produção de vodka. Àquela altura, 40% da população masculina russa padecia de alguma forma de alcolismo.

(Essa é uma questão complicada: o que é o alcolismo? Tecnicamente, uma pessoa que bebe diariamente é alcólatra, pois não concebe a existência sem bebida. É um viciado, um dependente. Mas geralmente é considerado alcoólatra aquele cuja vida é atrapalhada pela bebida: ele perde o emprego, agride a mulher, precisa beber de manhã etc).

Boa parte da produção de vodka, durante os anos confusos da glasnost e da perestroika, caiu na ilegalidade. Ela passou a ser destilada em alambiques clandestinos, que produziam veneno, literalmente. Entre outros motivos, Gorbachev se tornou impopular, sobretudo nas camadas mais pobres, porque quis limitar o consumo de vodka.

Seu sucessor, Boris Ieltsin, fez campanha e foi eleito, também entre outros motivos, porque prometeu diminuir o preço da vodka. Ieltsin era (é ainda?) alcoólatra, em qualquer sentido que se dê à palavra. No congresso do Partido Comunista em que ele rompe com o stalinismo, a televisão mostrou, ele andava pelos corredores do plenário em ziguezague, bebadaço.

Vladimir Putin foi reeleito prometendo não aumentar o preço da vodka. Mas ele nunca bebe em público. Só vai de água mineral. E tem imagem de esportista, se vangloria de lutar bem judô. A imprensa russa diz que ele é mais popular entre as mulheres do que entre os homens. Justamente porque não bebe: o alcolismo, em qualquer país, é uma doença eminentemente masculina.

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Durante a campanha eleitoral, Lula declarou que gostava de tomar uma cachacinha. Na sua coluna em ‘Veja’, em setembro de 2002, Diogo Mainardi escreveu que gostaria de saber quantas cachaças Lula gostava de tomar por dia. Como eleitor, a informação lhe parecia pertinente: uma coisa é votar em quem toma uma cachaça de vez em quando; outra, votar em quem toma quatro por dia. Mainardi, se não me falha a memória, deu o exemplo de Jânio Quadros, um pau d’água que chegou à presidência sem que se questionasse a sua resistência ao álcool.

No mês passado, Mainardi voltou a associar Lula e bebida. Ele sugeriu que o presidente parasse de beber em público, para não parecer que esteja incitando o consumo de álcool.

A sugestão é sensata, em termos de saúde pública. No Brasil, o alcolismo está entre as dez maiores causas de internações clínicas. Ele é responsável também por 10% das faltas ao trabalho e 80% dos acidentes de trânsito. E também pela degradação, pela ruptura familiar, pela infelicidade e traumas de crianças: quem tem ou teve amigos alcoólatras sabe do que estou falando.

Como o problema existe, é pertinente todo esforço para não banalizar o consumo de álcool. É só por esse motivo que na França é proibida a propaganda de álcool – assim como de cigarro. Inclusive cerveja, que só no Brasil não é considerada uma bebida alcoólica.

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Para vexame da imprensa brasileira, a esperada reportagem sobre Lula e a bebida foi feita por Larry Rother Jr e acabou saindo no ‘New York Times’.

A reportagem é pertinente. Não conta nenhuma mentira. Fala das conversas sobre o assunto. Diz que quase ninguém quer se pronunciar em público sobre o tema. O correspondente tentou ouvir o porta-voz do presidente. Repetiu algumas piadas. Reproduziu algo do que havia sido publicado a respeito: frases fora de contexto de uma coluna de Diogo Mainardi, uma piada da coluna na internet de Claudio Humberto Rosa e Silva, um comentário de Ali Kamel n’O Globo’ – sendo que esse último defendia que havia preconceito contra Lula). O mais importante: Larry Rother reconheceu claramente que era impossível dizer se havia um problema do presidente com a bebida.

A reportagem do ‘New York Times’ não é uma denúncia. Ela me pareceu uma típica matéria de correspondente estrangeiro, numa edição de domingo carregada de tortura no Iraque: é leve, trata de um tema pouco importante, busca retratar uma situação entre o exótico e o folclórico, traz uma foto engraçada com Lula rindo, de chapeuzinho vermelho, segurando uma caneca de cerveja acima da cabeça.

A matéria tem uma estupidez: o título. Ele diz que o jeito de Lula beber tornou-se ‘preocupação nacional’. O erro não foi de Larry Rother, que em nenhum momento usa a expressão ‘preocupação nacional’. Foi um erro de edição.

Certamente que a reportagem poderia ter sido melhor, mais completa. Qualquer publicação brasileira (exceto o ‘JB’), teria recursos para fazê-la. Não a fizeram porque não quiseram. Quem a fez foi Larry Rothman, do jeito dele. Um jeito isento e profissional, como disseram o diretor de redação do ‘Times’ e o ombudsman do jornal.

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Aconteceu o que se sabe. Políticos da situação e da oposição enrolaram-se em estandartes auriverdes e saíram em praça pública, rufando tambores contra o ultraje à honra nacional. O imperialismo ianque foi fustigado. A notória associação do Departamento de Comércio americano com Larry Rother foi exposta. A sobejamente conhecida incapacidade da imprensa americana de produzir uma reportagem decente foi repisada. Veio a nu o sórdido complô entre o ex-porta-voz de Collor, Brizola e as multinacionais. A decadência inevitável do ‘New York Times’ (vide Jayson Blair!) foi confirmada e reconfirmada. Um exaltado chegou a dizer que o jornal está ainda pior que o ‘JB’. A nota oficial do Palácio do Planalto usou o termo ‘amiúde’, esclareceu que os hábitos do presidente não diferem do dos seus compatriotas e nos informou, sisuda, que às vezes Lula trabalha ‘mais de doze horas’ por dia.

O Brasil estava unido contra o nefando Rother, o seu jornal empulhador e o sinistro torturador George W. Bush. O Brasil defendia com gunhas e arras o seu presidente. O Brasil se insurgia contra os dragões da maldades. Emocionado, derramei algumas furtivas e patrióticas lágrimas no bar mais próximo, o Poliveau, entornando um copinho de poire – sim, confesso, eu era um admirador da Turma do Poire, liderada por Ulysses Guimarães, um bebe-quieto por excelência.

No dia seguinte, o presidente acordou invocado e expulsou o jornalista peçonhento. Tudo se transformou no seu contrário. Lula foi chamado de tacanho, turrão, beócio, primitivo, prepotente, arrogante, destemperado.

Passaram mais alguns dias e Lula, magnânimo, voltou atrás na expulsão, apesar do jornalista não ter pedido desculpas. Chamaram a turma do deixa-disso. Acochambraram. Medraram. Deram um jeitinho. Acabou em pizza.

Para desespero de meus familiares, desde o início da ‘crise’ passei a cantarolar os versos imortais:

‘Você pensa que cachaça é água

Cachaça não é água não

Cachaça vem do alambique

E água vem do ribeirão’.

A marchinha não me sai da cabeça. É um inferno.

***

Como fica a imagem brasileira no exterior?

Nenhum jornal francês repercutiu a reportagem do ‘Times’.

Eles deram notas curtas sobre a expulsão do correspondente americano, com um resumo sumário da matéria de Larry Rother.

Para se ter um exemplo do senso de proporção: o ‘Monde deu dez linhas sobre Lula, ‘Times’ & bebida. E na mesma edição deu na íntegra, em uma página inteira, o relatório da Cruz Vermelha sobre as tortura dos militares americanos no Iraque. Engraçados os franceses, não? Eles se interessam por assuntos absolutamente marginais. Não captaram o que havia por trás da matéria do ‘Times’.

No caminho do restaurante, para jantar com um amigo francês, Alain, ele me perguntou: Que história é essa do ‘Monde’ de hoje que o presidente do teu país bebe? Chegamos ao restaurante, as crianças nos distraíram, o assunto mudou, falamos do Iraque, de anti-semitismo na Alsácia, de ‘Cidade de Deus’, dos filhos, das perspectivas de Chirac para 2007, das Olimpíadas. E por aí foi. Esquecemos Lula.

Ninguém está preocupado na França com o Brasil, com o seu presidente, beba ele ou não. Houve um período, entre a eleição e, digamos, um ano depois da posse de Lula, quando se acreditava que o PT fosse oferecer uma alternativa à esquerda, que o Brasil foi levado a sério. Esse período acabou. Ninguém quer mais saber de nós.

Nem nós, brasileiros. É infindável a nossa capacidade para nos envolvermos em discussões estéreis. Vocês passaram um mês debatendo aí se aquele sambista bêbado deveria ter deixado de fazer propaganda da cerveja A para fazer da B. Depois vocês passaram mais um mês falando de bingo. E agora derrubaram florestas e secaram rios de tinta para atacar o americano, defender o presidente, e depois defender o americano e atacar o presidente. Como se isso tivesse alguma importância. Como se isso fosse resolver algum problema nacional. Nenhum brasileiro melhorou ou piorou de vida com a reportagem de Larry Rother e a gritaria que se seguiu a ela. O Brasil continuou na mesma. O Brasil não sai da mesma. Essa é a sua tragédia.’



Denis Lerrer Rosenfield

‘Expulsão e liberdade de imprensa’, copyright O Estado de S. Paulo, 17/05/04

‘Seria cômica, se não fosse trágica, a decisão do governo (afinal revogada na sexta-feira, depois do acordo costurado pelo ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos) de cancelar o visto do jornalista Larry Rohter, como represália a uma matéria publicada no New York Times sobre os supostos hábitos etílicos do presidente da República. Pode-se considerar o artigo inoportuno ou de mau gosto, pois diria respeito tão-somente à sua vida privada. Não se poderia, contudo, era tomá-lo como pretexto para ferir um dos pilares da democracia: a liberdade de imprensa.

Imaginem se os Estados Unidos tivessem expulsado um jornalista de O Estado de S.Paulo por começar a noticiar o caso do ex-presidente Clinton com uma estagiária na Casa Branca. A embaixadora americana enviaria uma carta ao jornal, republicanos e democratas se uniriam em torno do presidente atingido em sua honra, o Senado aprovaria um voto de censura e todos falariam da dignidade ultrajada do presidente. Como teria reagido o PT? Provavelmente, diria que a notícia talvez tivesse algum fundamento e, sobretudo, que era inadmissível a expulsão de um jornalista brasileiro, exercendo uma tarefa normal de sua profissão, fundamentada, aliás, num princípio constitucional que vigora tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil.

A ilação estabelecida entre o suposto hábito do presidente e a governabilidade terminou por suscitar um problema que ronda o atual governo, a saber, o seu imobilismo e a ausência de medidas práticas que coloquem o Brasil na rota de resolução de suas questões sociais e econômicas. É como se o governo tivesse dado um atestado comprobatório de que não governa, o que explicaria a presente sucessão de equívocos. ‘Si hay gobierno, soy contra.’

‘Pero si no hay?’, eis a nossa questão.

Não há, na verdade, nenhum nexo lógico entre ingestão de bebidas alcoólicas e governabilidade, pois, se assim fosse, Churchill não teria liderado a Grã-Bretanha e o mundo livre numa das mais cruéis épocas da humanidade, como foi muito bem lembrado em recente editorial deste jornal. Dizem as boas ou más línguas que o primeiro-ministro inglês ingeria uma garrafa de uísque por dia, sem que isso afetasse a sua capacidade de julgar ou comandar o seu país. A ninguém ocorreria dizer que o fino destilado escocês teria sido a causa de uma derrota política ou militar. A hipótese contrária seria a mais plausível: ele teria sido a causa da vitória aliada!

Ao acusar percepção de que o atual governo tem efetivamente um problema de governabilidade, o presidente da República e o seu partido puseram em funcionamento um mecanismo de uso nos antigos partidos comunistas, o da teoria conspiratória. Haveria em curso no mundo uma grande armação para desqualificar o líder de um país emergente que, por suas origens sociais, se coloca como uma alternativa política global. O argumento é, em si mesmo, pueril, pois foram essas mesmas características do presidente que foram louvadas internacionalmente e o próprio partido fez uso delas internamente.

Não era a política internacional a esfera de atuação mais bem-sucedida do atual governo? Ora, o que está em questão é a montagem, por parte do governo e de seu partido, de uma encenação na qual se colocaram como vítimas para, aí, poderem utilizar medidas arbitrárias, como a da expulsão de jornalistas, num tipo de prática que caracteriza as piores ditaduras.

Quando governava o Rio Grande do Sul, o PT teve a mesma dificuldade em lidar com críticas e divergências, que se traduziam por processos judiciais constantes a jornalistas e intelectuais de oposição. Tratava-se, já naquele então, de uma prática autoritária, embora se apresentasse, ‘democraticamente’, sob o manto de uma reparação moral da imagem do governador ou de seu governo. Nunca aquele Estado tinha convivido com uma tal avalanche de processos. Agora, parece que, no governo federal, o PT operou uma mudança de patamar, pois ele mostra a mesma dificuldade em conviver com a opinião alheia, com uma agravante de monta ao sinalizar que a liberdade de imprensa não é um princípio. Da mesma maneira, quando o Ministério Público começou a investigar as administrações petistas, a ‘resposta’ governamental foi a ‘lei da mordaça’. Analogamente, o próprio presidente do PT disse, quando de sua recente viagem à China, que o partido era favorável aos direitos humanos, mas não se manifestaria sobre as liberdades naquele país, pois isso seria uma ingerência nos seus assuntos internos. Teria sido mais fácil dizer que os direitos humanos não têm validade universal ou que o partido é contra eles.

O dano que a pretendida expulsão causou à imagem brasileira no exterior será duradouro, pois o País – em que pese a mudança de atitude do governo em relação ao caso específico do repórter do New York Times – corre o sério risco de ficar inscrito na lista daqueles Estados que não respeitam a liberdade de imprensa. A simpatia que muitos jornalistas nutriam por Lula, com ou sem cachaça – pois esse é um problema irrelevante -, poderá evaporar-se, prejudicando, aí, sim, a figura do presidente. A sua conduta não foi a de um líder de um grande país democrático, que estaria, inclusive, vocacionado para ocupar uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, mas a de um governante de uma republiqueta qualquer. O modelo da atitude presidencial foi propriamente cubano. Trata-se de uma recaída numa prática stalinista sobre a qual não se pode tergiversar. Com a liberdade de imprensa não se brinca, pois o seu custo é muito alto. Denis Lerrer Rosenfield, professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com doutorado de Estado em Filosofia pela Universidade de Paris, é autor, entre outras obras, de Hegel (Jorge Zahar Editor, Coleção Passo a Passo) e editor da revista Filosofia Política, da mesma editora E-mail: denisrosenfield@terra.com.br’



Daniela Nahass

‘Itamar Franco: ‘O governo não deveria processar o jornalista para não gastar dinheiro’’, copyright Ig (www.ig.com.br), 12/05/04

O embaixador do Brasil em Roma, Itamar Franco, afirmou que a decisão do governo brasileiro de expulsar o correspondente do ‘New York Times’, Larry Rohter, não vai prejudicar a imagem do país no exterior. ‘A repercussão internacional foi grave para o Brasil e não achei exagerada a ação do governo, muito pelo contrário. Se o presidente se acovardasse com uma calúnia dessas seria muito pior’, afirmou.

Itamar Franco foi irônico ao falar sobre a possibilidade de o governo processar o jornalista por calúnia e difamação. ‘O que eu digo é para o governo não processar este jornalista porque vai gastar dinheiro. Eu não deixaria que ele exercesse a profissão aqui, porque ele ofendeu o presidente, a nossa nação e o mais grave, com o apoio do jornal que tem grande penetração nos Estados Unidos e internacional.’, afirmou.

Para Itamar Franco, não houve cerceamento à liberdade de imprensa. ‘Não houve porque foi o jornalista que quebrou o respeito e a ética’, afirmou.

O embaixador se encontrou, na manhã desta quarta-feira, com o presidente do Congresso, senador José Sarney (PMDB-AM), que também saiu em defesa do governo.

‘Acho que não podia ser outra decisão. Uma matéria muito preconceituosa, que fere a imagem do Brasil. Então, o país tem que reagir. Não é só um problema de pessoa, mas de natureza nacional. É um jornal que tem uma responsabilidade muito grande, uma visibilidade e uma leitura mundial. Então uma coisa desse nível atinge a imagem do país’, afirmou.

Sarney disse ainda que os americanos já utilizaram metidos semelhantes quando os interesses do país foram contrariados. ‘Olha que algumas vezes os americanos já fizeram a mesma coisa em relação às pessoas que eles achavam que não era do interesse deles ter a residência lá’, disse.’