Se há um lugar onde a imprensa aponta para uma direção e os leitores dirigem os olhos para outra, este lugar é no Recife. Os recentes protestos contra o aumento das passagens dos ônibus comprovam. Na quinta e sexta-feiras (17 e 18/11), os estudantes foram às ruas, pararam o trânsito, modificaram percursos, viraram carros, picharam e quebraram vidros dos ônibus, esvaziaram os pneus desses transportes de massas que, de repente, não mais que de repente, tornaram-se patrimônio público. Para quê?
De imediato, para gerar as manchetes do sábado (19/11). No Diário de Pernambuco: ‘Pra que isso?’, com fotos de um jovem com pedra na mão levantada, policiais arrastando estudantes pela garganta, fogueiras de papéis e plásticos na avenida. No Jornal do Commercio: ‘Mais baderna’, mais desordem, numa composição de cores até bonita – ‘mais’ em vermelho, ‘baderna’ em branco, sobre um fundo escuro, de luto. O vermelho e o negro para as fotos de ônibus com os pneus murchos, para o arremesso de um extintor contra um pára-brisa, para a mãe a retirar um bebê da revolta, num Encouraçado Potenkim invertido. A Folha de Pernambuco então, em seu estilo popularesco, mais parecia anunciar a derrota brasileira para a seleção de futebol da Espanha: ‘Fúria’, no alto, com fotos de fogueiras, ônibus quebrado, estudante arrastado a ponto de ter o pescoço partido por um policial militar.
Mais baderna, fúria, para que isso?
Do Diário de Pernambuco, como legenda nas fotos da primeira página:
‘Vandalismo, pânico e muito tumulto. Recife viveu mais um dia conturbado devido às manifestações de estudantes contra o aumento das passagens de ônibus. O comércio fechou as portas. Dezenas de ônibus foram depredados. A Polícia Militar prendeu 30 pessoas e a população assistiu a tudo atônita sem entender o porquê de tanta violência’.
Pelo regência culta do verbo assistir e pela escolha dos adjetivos, dir-se-ia que o redator tem mais de 50 anos. Mas importa mais aqui o ponto de vista, anterior ao século 19. Se vandalismo é uma ação própria de vândalos, de bárbaros que destroem monumentos e objetos respeitáveis, então os ônibus do Recife estão longe de ser tais objetos. Sujos, com insetos de toda sorte, apertados, em número insuficiente para atender à população, que neles viaja como sardinhas no sufoco de latas, e por isso paga caro demais, mais de 30% do salário. Ainda que os empresários dos transportes, esse ‘patrimônio público’, vejam qualquer dano a sua propriedade como um vandalismo, ainda assim aqui há um exagero somente possível em séculos longínquos.
O problema é que esse redator dos séculos anteriores ao 19 é onipresente, porque faz uns extras lá no Jornal do Commercio. De um salto, por táxi ou veículo próprio, nunca de ônibus, foi à Rua do Imperador e redigiu para a primeira página:
‘Subiu para 47 o número de ônibus depredados nos protestos contra o aumento de passagens, no Recife. O movimento, transformado em vandalismo, levou aos usuários momentos de terror. Lojistas foram obrigados a fechar suas portas. Ontem, mais 32 manifestantes foram detidos’.
Além de vandalismo, terror, e a ponto de os lojistas, esses operosos anunciantes, sem os quais os periódicos jamais anunciariam – Vândalos, Vândalos, Terror – fecharem as portas. E terem que partir para o confortável lar, último reduto dos burgueses, desde 1789.
Outras vozes, outras versões
Aqui e ali, percebe-se algo diferente do anúncio de vândalos e terroristas das primeiras páginas dos jornais do Recife. No site do Centro de Mídia Independente, no sábado (19/11):
‘De acordo com informações de ativistas contra o aumento das passagens e pelo Passe-Livre em Pernambuco, as autoridades do Estado decidiram ressuscitar o Ato Institucional nº 5 no Recife. Em uma medida inédita, o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) decidiu na sexta-feira (18) que todo manifestante que for detido durante protestos contra o aumento de passagens será preso e não será liberado em seguida. Já o comando da Polícia Militar informou na noite de sexta que irá dispersar e deter qualquer grupo suspeito de estar organizando uma manifestação nos próximos dias. Em resposta, alguns manifestantes já planejam fazer greve de fome na próxima semana. Outra medida que já foi tomada pela polícia é o confisco de equipamento de foto e vídeo dos que não tiverem identificação de imprensa. A própria polícia, no entanto, se valeu de câmeras digitais para fotografar manifestantes e prendê-los em emboscadas’. [Grifo meu]
Aqui, mais uma vez, exibe-se a oposição entre liberdade de imprensa e de pensamento em Pernambuco. Se um homem pertence à grande imprensa é digno de respeito até onde se mostrar confiável, mas se um jornalista pertence à chamada imprensa alternativa, é indigno de qualquer direito. Passa-se por cima dele com toda e qualquer violência.
O sentimento dos vândalos
E aqui chegamos ao espírito real, à voz e à palavra dos que aparecem nas primeiras páginas como vândalos. Vejam:
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‘Estive na passeata e pude ver como a polícia agiu com violência, inclusive batendo em estudantes que já estavam dominados e os policiais não usavam a tarja com os nomes deles, esses torturadores ainda ameaçavam quem estava fora do protesto. Vamos criar uma comunidade no orkut.’**
‘É claro que deve haver quebra-quebra de ônibus. Demorou. O que a EMTU quer? Manifestação pacífica? Bandido só entende uma linguagem. Que essa seja apenas uma das muitas manifestações que estão por acontecer. Estamos, ainda que desorganizados, acordando.’**
‘Caro amigo, enquanto você anda confortavelmente na sua pick up, muita gente deixa de comer para pagar passagem. A EMTU como sempre parece ir a favor dos donos das empresas de ônibus, pois se assim não fosse não permitiria que a passagem para Vitória custasse 4,20 só por que o dono da Borborema quer. Vitória já deveria ser considerada região metropolitana há muito tempo! O Cabo é mais longe e a passagem não custa esse absurdo! Não fale bobagens se você nem precisa andar de ônibus! Não desfoque o assunto seu tucano! Estamos falando de aumento do preço das passagens!’**
‘Esses são os nossos estudantes, mostrando força e determinação. João Paulo, adoro você, mas mesmo sendo governante do município, espero que não esqueças do passado. Aí!!! jovens estudantes, futuro do nosso país, o JC Online descreve o movimento como vandalismo, mas vandalismo são estes empresários explorando a gente. Vamos à Luta!!!’Estas são as opiniões publicáveis. Porque existem algumas mais vandálicas, digamos assim:
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‘Os motoristas deveriam ter passado por cima de todo mundo, enquanto nós estávamos trabalhando e no final do dia ou noite querendo voltar para os nossos lares esses bandos de malucos com camisas pretas ou vermelhas, bolsas de lado, toquinhas, maconheiros e vagabundos estavam fazendo arruaça e quebrando tudo… O choque era pra ter metido o cacete mais ainda… Votem no PT de novo!!!! A maioria nem dinheiro para pagar passagem tem…vivem na vagabundagem…’**
‘Agora, eles (os maconheiros e grafiteiros) têm mesmo é que levar porrada. Também, um governo que tem um Ministro da Cultura que diz que fumou maconha até 50 anos de idade e que é a favor da descriminilização da maconha, não esperamos coisas boas’.Todas opiniões de internautas, extraídas dos comentários no site do JC Online. A maioria delas favorável ao protesto, à destruição até mesmo do ‘patrimônio público’, que é tão público quanto os supermercados, que também se abrem ao público. E como tal amostra está longe de ser científica, devemos acrescentar: o sentimento das praças e das ruas é de franco apoio aos baderneiros, aos vândalos, aos maconheiros, aos delinqüentes, aos, sabem deus e o diabo que nomes recebam, que estão a dizer, alô, alô, senhores de cima, nós não agüentamos mais. A população que pagava, mal, aqui e ali se deslocando a pé, quando não quase sempre, quem pagava 1,50 real não suportará a passagem a 1,65 real. Quem, desgraçadamente, pagava 2,30 reais, acorda para o fato de que 2,50 reais ficam além do suportável. Com uma pequena ajuda, é certo, desses amigos.
A juventude, os estudantes concordam com os vândalos. O povo, insatisfeito, apóia esses baderneiros. E tudo por causa da miséria de 15 ou 20 centavos, diz a boa imprensa. Muito barulho por nada, proclama.
‘Mais baderna’, reclama o Jornal do Commercio. ‘Fúria’, exagera a Folha de Pernambuco. ‘Pra que isso?’, pergunta o Diário. Se ainda fosse em razão de outros valores, de páginas e cadernos inteiros pagos por grandes anunciantes… Se assim fosse, vândalos, baderneiros, maconheiros, arruaceiros e terroristas receberiam o nome de as produtivas classes do Brasil.
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Jornalista e escritor