‘Todos sabemos como é fácil atirar pedra, sobretudo quando se é mero expectador. Mas é difícil calar diante do sucessivo festival de erros que se está cometendo nesse nefasto episódio provocado pelo jornal The New York Times e seu correspondente Larry Rohter. Larry, aliás, virou celebridade nacional com direito aos seus 15 minutos de fama. Seria difícil desfrutá-lo aqui, como veremos adiante, mas isso são lá outros quinhentos…
Que sua matéria deixou muito a desejar, parece não haver dúvidas. Que era preconceituosa também parece óbvio. Foi, além disso, um insulto ao Brasil e aos brasileiros, prestando-se a desmoralizar um dos mais importantes líderes populares da história mundial contemporânea.
Um jornal que, apesar de sua importância, tem tantas manchas em sua história, carregará, de certo modo, mais esta. E isso ficou até certo ponto claro, com a reação espontânea da sociedade civil brasileira e mesmo da área política, o que por si só mostrava-se a maior de todas as defesas que o presidente Lula, seu governo e o País poderiam desejar.
Arrancar uma defesa tão enfática de colunistas como Clóvis Rossi e Jânio de Freitas, por exemplo, para ficar em dois dos mais críticos jornalistas do País, é tarefa que não se consegue a não ser numa situação de extrema gravidade. E foi isso o que se viu na edição desta terça-feira da Folha de S.Paulo.
Vejam as palavras de Clóvis Rossi: ‘Acompanho Lula, por força da profissão, faz quase 30 anos, das greves no ABC no fim dos anos 70 até a Presidência da República. Nunca vi nada, rigorosamente nada, que revelasse adição ao álcool, mesmo em viagens, nas quais o convívio é forçosamente de muitas e muitas horas seguidas. Posso ser distraído, mas, como não bebo rigorosamente nada, meu olfato para bebida é aguçado. Acompanhei Lula, relativamente de perto, em entrevistas (exclusivas ou coletivas), seminários…e ncontros reservados com seus próprios companheiros de partido ou com outros dirigentes políticos. Em geral, momentos agudos, que, dizem os especialistas, convidam a beber (quem gosta, claro). Em nenhum deles Lula demonstrou o mais leve sinal de que havia bebido ou, quando o fez, dentro do socialmente aceito, de que o álcool afetara sua atividade’.
Transcrevo também trecho de Jânio de Freitas: ‘Os norte-americanos gostam muito de coincidências. Pode-se entender assim o acaso que fez o texto do correspondente Larry Rohter, inequivocadamente elaborado para desmoralizar Lula e o governo brasileiro, sair em dias importantes para a política latino-americana…E quem é o presidente latino-americano capaz de levantar um movimento continental em defesa dos dois presidentes visados (Hugo Chavez, na Venezuela, e Fidel Castro, em Cuba)? Além dos motivos políticos para fazê-lo, inclusive em autopreservação das soberanias nacionais, Lula tem com Chavez e Fidel relações pessoais. É a esse Lula e na ocasião em que se lançam as duas operações contra Chavez e Fidel que, por coincidência, sai um texto desmoralizante para Lula. E em nada menos do que no jornal norte-americano de maior repercussão internacional – até por ser reconhecido como o mais leal servidor, na mídia, do que os governos dos Estados Unidos consideram ‘razões de Estado’.’
Até a oposição cerrou fileiras ao lado de Lula, a começar por líderes como FHC e Geraldo Alckmin, que consideraram a matéria injuriosa e difamante.
Se no plano interno as coisas estavam caminhando até melhor do que o esperado, cabia ao governo agir de forma vigorosa, mas no campo diplomático e no plano internacional.
O que aconteceu? O governo caiu na tentação de agir por impulso e fez pelo menos duas grande bobagens que não se pode admitir de autoridades graduadas.
O ministro Luiz Gushiken, por exemplo, ao defender Lula e o governo, no contra-ataque ao NYT, atingiu os jornalistas e a cidade do Rio de Janeiro, atribuindo a desinformação ao fato de o correspondente trabalhar no Rio de Janeiro. Estaria, segundo o ministro, ‘privado de uma observação pessoal e direta’ dos temas de Brasília. Gushiken foi além: ‘Talvez, como é comum autoridades norte-americanas cometerem erros quanto à capital do Brasil, o jornal ainda não tenha se dado conta de que desde 1960 a cidade do Rio de Janeiro deixou de ser a capital do país e seu principal centro irradiador da política brasileira.’
Pois bem, mesmo se desculpando publicamente da escorregada que deu, abriu caminho para a primeira crítica contundente ao Governo, que de vítima passou a réu. O Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro mandou bala, em Nota Oficial em que afirma: ‘A qualidade duvidosa da reportagem do NYT nada tem a ver com o diagnóstico de alto teor provinciano do sr. Gushiken. Este, pelo cargo que ocupa, não deveria demonstrar tamanha falta de visão federativa em relação ao Estado que deu ao presidente Lula o maior percentual de votos em 2002. Sua declaração equivocada não desqualifica apenas os profissionais do Rio, mas de todo o País. O fato de trabalhar em São Paulo, Porto Alegre, Salvador, Belo Horizonte ou outra cidade não torna qualquer profissional incapaz de tratar com propriedade dos temas de Brasília’.’
Não bastasse um erro primário do condutor-mor da Comunicação do Governo, veio um outro, imensamente maior, rudimentar, colossal, de onde? Do Ministério da Justiça, que decidiu cassar, no final da tarde desta terça-feira, o visto de permanência do correspondente Larry Rohter no Brasil. Ou seja, na prática o está expulsando do País. Curiosamente, a portaria é assinada não pelo ministro titular Márcio Thomaz Bastos, mas pelo ministro interino Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto. Custo a crer que um ministro forjado nas lutas democráticas e que tanto fez pela democracia e pela liberdade de imprensa e de expressão, como é o caso de Thomaz Bastos, assinasse um monstrengo como esse. De todo o modo, como titular da pasta ele também é responsável pelos atos ali praticados e vai acrescer à sua biografia o fato de ter sido o primeiro ministro da era democrática, no Brasil, a tomar uma atitude oficial de censura e perseguição política. Justamente um ministro do governo do PT. Uma pena. E, repito, o governo não precisava disso. Rohter dificilmente teria clima para continuar trabalhando e morando no Brasil, tamanho o repúdio que sua matéria alcançou por aqui. Mas ainda que decidisse ficar, carregaria consigo por muito tempo o ônus de ser visto como jornalista faccioso, leviano etc etc etc. Ou seja, encontraria dificuldades naturais para exercer sua profissão, como geralmente ocorre com profissionais que cometem deslizes dessa monta. O que se deu com a atitude infeliz do Ministério? Larry virou vítima. Incrível, não é mesmo? O vilão de ontem transformou-se na vítima de hoje e vai ter todos os órgãos nacionais e internacionais de imprensa a seu favor e contra o governo brasileiro. INACREDITÁVEL!!!!
Várias instituições, aliás, já se manifestaram contra a medida infeliz, entre elas a OAB e a Associação dos Correspondentes Estrangeiros. E outras certamente vão se manifestar, caso da Associação Brasileira dos Jornalistas Investigativos – Abraji que prometeu uma nota para esta quarta-feira, como veremos abaixo.
A lista de discussão da Abraji, a propósito, está repleta de manifestações de repúdio à medida do Ministério da Justiça. Vou citar algumas, omitindo os nomes (até porque não tive a autorização dos colegas), para mostrar em que enrascada o governo acaba de se meter. E mesmo que volte atrás, o mal à imagem do País e do governo já está feito – infelizmente.
* ‘É inacreditável essa medida do governo. Tanto quanto a irresponsável reportagem de Rohter, merece repúdio de todos nós a decisão de cancelar o visto do jornalista americano. Impressionante como nem mesmo o papel de vítima o governo sabe fazer direito…’
* ‘Concordo em gênero, número e grau, independentemente de qualquer posição política com relação ao governo Lula. E mais: acho que todas as entidades jornalísticas (ABI, Abraji, Federação e sindicatos) devem reagir imediatamente à essa decisão do governo, emitindo notas à imprensa e à assessoria do Palácio do Planalto. A medida é absolutamente antidemocrática e merece o repúdio de toda a sociedade brasileira, começando pelos jornalistas brasileiros, antes mesmo de qualquer entidade estrangeira. Sugiro, portanto, que os colegas do Comitê de Defesa da Abraji se pronunciem sobre a possibilidade de reação inteligente, sensata e equilibrada. Mas não podemos ficar calados, amigos e confrades. Não podemos compactuar com qualquer tentativa de censura à imprensa e a profissionais credenciados a representá-la.’
* ‘Quero crer que isso não sirva de motivo para ‘retaliações’ do companheiro Bush. A lei é clara, como dizem: basta apenas uma arbitrariedade do Ministério da Justiça em considerar o estrangeiro leviano para que ele tenha a presença ‘obstada’ no território nacional. É inacreditável a decisão do governo. Não apenas essa. Para quem acompanha de perto como os jornalistas são tratados pelos ‘legítimos representantes do povo’ é lastimável. Compartilho minha indignação com todos.’
* ‘Além de absurda, a expulsão do jornalista do NYT é a coisa mais burra que eu vi um governo fazer desde que o Collor convocou a população a usar verde e amarelo, acelerando o processo de impeachment. É inacreditável. A matéria do Larry Rohter era mal feita, mas o governo acaba de demonstrar que ele tinha razão: devem ter bebido muito antes de tomar essa decisão.’
* ‘O ex-ministro Paulo Brossard lembrou de um caso semelhante ocorrido lá pelos idos de 1935 (ele ficou em dúvida se o jornalista foi expulso ou se, pressionado pelo ‘povo’ e pelo governo, pediu para ir embora). Naquelas priscas eras, o jornalista inglês Ernest Hambloch cometeu o supremo desatino de escrever um livro chamado ‘Sua majestade, o presidente do Brasil’. Qualquer coincidência com o atual episódio é mera coincidência. Passados tantos verões, não é que o Senado brasileiro, no ano de 2000, republicou o livro do Hambloch, o ex-Larry Rohter? E nós até podemos lê-lo aqui. Parece que quem ‘expulsou’ Ernest Hambloch foi Getúlio Vargas. Se foi assim, então já ensaiava o Estado Novo (1937). PS: (para não perder a piada) eu acho que o governo Lula agiu com o fígado.’
* ‘Caros, permitam-me complicar – e muito – essa estória da expulsão do Larry. Sugiro, em primeiro lugar, a leitura do artigo de Janio de Freitas hoje… Na mesma linha da crítica do Janio, lembro de outro caso recente envolvendo o Larry . Ele foi o autor da matéria, publicada há poucos meses, sobre o avanço da soja na direção da floresta amazônica. Tem gancho jornalístico? Óbvio. Mas, o interesse ecológico do NYT só veio à tona quando o Brasil estava prestes a ultrapassar os EUA na condição de maio exportador mundial de soja, numa disputa muito acirrada. Antes, nem uma linha. Apesar de ecologistas brasileiros e estrangeiros virem alertando para essa tragédia ambiental há anos, o jornal deixou para publicar o texto – corretíssimo tecnicamente, ao contrário dessa matéria de última categoria sobre a suposta preocupação nacional com a suposta bebedeira do Lula – justo quando o governo dos EUA iniciava uma ofensiva para afastar o Brasil do posto alcançado no mercado internacional de commodities agrícolas. Ou seja, há razões de Estado na decisão do governo brasileiro. Não digo que a expulsão é correta. Mas, afirmo que o caso do Larry não começou agora e, acho, isso foi levado em conta.’
* ‘A diretoria da Abraji vai analisar a lamentável decisão do governo brasileiro de expulsar do país o correspondente do NYT e deve divulgar, possivelmente amanhã (hoje), uma nota oficial da entidade a respeito do tema.’’
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‘Exclusivo: pesquisadora mostra que NYT trata o Brasil com desprezo e preconceito’, copyright Jornalistas & Cia, Ano 9 – Edição 437 12 a 18 de maio de 2004
‘A matéria do correspondente Larry Rohter, publicada com destaque (incluindo chamada na primeira página) pelo jornal The New York Times, com insinuações de que o presidente Lula tem o hábito de abusar de bebidas alcoólicas, é inédita, mas o hábito do jornal de tratar o Brasil com desprezo e preconceito não. Aliás ele é velho e recorrente. E a constatação não é de nenhuma petista, de nenhum político do PT e menos ainda de algum membro do atual Governo, e sim de uma pesquisadora que está concluindo doutorado em lingüística (análise do discurso), pela Unicamp. Aliás, sua pesquisa nada tem a ver com o episódio Lula e sim com um projeto que tem por objetivo mapear a percepção do Brasil nos Estados Unidos. Formada em Letras e Artes pela Universidade Federal do Espírito Santo, a pesquisadora e tradutora Regina Martins (que tem especialização em tradução pela UFMG) acaba de defender uma dissertação de Mestrado na Unicamp em que analisa as representações do Brasil no jornal The New York Times no período 1986-2000.
Para a pesquisa de doutorado que está fazendo, ela coletou, na seção de microfilmes da Biblioteca do Congresso, em Washington, durante os anos de 2001 e 2002, farto material (incluindo diversos artigos de Rohter) que mostra uma visão preconceituosa e distorcida do País e que certamente pode contribuir para enriquecer as discussões relativas a esse episódio. Diz a pesquisadora: ‘Especificamente na dissertação, que é parte de várias outras iniciativas (inclua-se aí o período em que passei na Embaixada do Brasil em Washington) voltadas para mapear a percepção do Brasil nos Estados Unidos, e suas repercussões na área de educação e em outros setores da sociedade brasileira, apresento resultados de análises que apontam para um discurso recorrente que, durante 20 anos, traz imagens carregadas de ironia e de desvalorização do País, não exclusivamente pela associação do Brasil a temas como miséria, violência, samba, carnaval e misticismo, mas também pelo atravessamento constante de uma retórica preconceituosa, de cunho racista. Discuto também as implicações sociais da supervalorização dos brasileiros à opinião que os estrangeiros fazem do País, trazendo para o debate vários autores e jornalistas nacionais que já refletiram sobre o assunto’. Regina mora em São José dos Campos e pode ser acessada através do e-mail r.parreiras@uol.com.br ou pelo telefone 12-3922.8902 / 9709.3942.
Em tempo – . Se o assunto já estava dando o que falar, decisão tomada pelo Ministério da Justiça (assinada pelo ministro interino Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto, na tarde desta 3ª.feira, 11/5) eleva ainda mais a temperatura. Rohter teve seu visto temporário de permanência do País cassado. É a seguinte a íntegra do despacho: ‘Em face de reportagem leviana, mentirosa e ofensiva à honra do Presidente da República Federativa do Brasil, com grave prejuízo à imagem do país no exterior, publicada na edição de 9 de maio passado do jornal The New York Times, o Ministério da Justiça considera, nos termos do artigo 26 da Lei nº 6.815, inconveniente a presença em território nacional do autor do referido texto. Nessas condições, determinou o cancelamento do visto temporário do sr.William Larry Rohter Junior’.
A decisão, salvo engano, deverá ser bombardeada pelas várias instituições jornalísticas do Brasil e do mundo, por seu caráter de cerceamento à liberdade de imprensa. A Abraji, por exemplo, que reúne os jornalistas investigativos, deve soltar uma nota oficial sobre o tema nesta 4ª.feira (muito provavelmente lamentando e condenando a decisão do Ministério da Justiça).’
Antonio Machado
‘Reação ao jornalista do New York Times foi muito além da conta’, copyright Cidade Biz (www.cidadebiz.com.br), 17/05/04
‘O governo incorreu em grave equívoco ao mandar cassar o visto de trabalho, que equivale na prática a expulsar, do correspondente do The New York Times, Larry Rohter, autor da reportagem segundo a qual o presidente Lula abusaria do consumo de bebidas alcoólicas.
Baseado em fontes de informação frágeis e numa inverossímil preocupação nacional com os hábitos presidenciais, o descabido despacho de Rohter não honra o conceito de seriedade do Times, considerado o mais importante jornal do mundo.
A reação do governo, em seguida à dura nota de protesto enviada ao jornal, que já estava de bom tamanho, porém, deu ao caso uma relevância que não tem, apesar da forma desrespeitosa com que o repórter se referiu ao presidente, e foi totalmente inapropriada à luz da liberdade de expressão.
Arranhou a percepção externa sobre a ampla liberdade de imprensa existente no país e permitiu que lá fora os críticos equiparem a democracia brasileira às democracias de opereta desta triste América Latina.
Rohter errou ao redigir uma reportagem que ofende a boa técnica do jornalismo isento e imparcial, porque baseada em informações não fidedignas.
O Times errou duplamente ao se mostrar superficial e desinformado sobre o perfil do presidente da maior economia da América Latina e terceira maior democracia do mundo, ao aceitar divulgar sem ressalvas um traço de comportamento visível, se fosse verdadeiro, desconhecido às fontes diplomáticas de Brasília, ausente do debate político e somente visto pelo seu repórter.
Mas o governo errou muito mais ao deixar que o natural sentimento de honra ofendida atropelasse a liturgia sagrada da liberdade de imprensa, dando a um caso típico de mau jornalismo uma inexistente dimensão política, quiçá diplomática, diante da suspeita de fontes do Palácio do Planalto de um obscuro interesse da Casa Branca em minar a imagem externa do presidente.
A nota de protesto ao jornal, a moção de censura do Congresso e a ida eventual à Justiça são os meios hábeis para resgatar a honra maculada. Tudo o mais é sinal de insegurança, que não condiz com a estatura internacional do governo e do país. Dentro das regras do jogo, o ministro Peçanha Martins, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), acabou por conceder salvo-conduto para o jornalista americano permanecer no país.
Imagine-se agora, por analogia, o que o governo faria, se Rohter e o Times fossem brasileiros. O jornalista seria preso, reeditando os tempos negros da ditadura? A edição do jornal seria apreendida nas bancas? A resposta para essa situação absurda demonstra o exagero da reação do governo, o que não isenta Rohter e sua desprezível matéria
(No início da noite de sexta-feira, o Ministério da Justiça anunciou ter considerado pedido de desculpas do correspondente do jornal The New York Times, Larry Rohter. Com isso, foi suspensa a decisão do governo de banir o jornalista do país. Rohter se retratou, em carta, desculpando-se pela reportagem que escreveu, a qual insinua que Lula abusa do álcool)’
Villas-Bôas Corrêa
‘A mancha indelével da burrice’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 14/05/04
‘Leva o jeito de mania, de cacoete agravado pela teimosia e sua dose de arrogância ou é apenas o embaraço na análise e na avaliação das conseqüências, mas impressiona a reincidência com que o governo joga mal no gargalo das decisões fundamentais e reverte em derrotas as partidas nas quais está levando vantagem.
Balda ou incompetência, os exemplos se repetem, sem que a lição dos erros seja aproveitada. Para ficar em dois episódios recentes: se sempre foi difícil empurrar de goela abaixo das vítimas o reajuste de R$ 0,66, sessenta e seis centavos, por dia do salário mínimo de R$ 260, não há como justificar que o anúncio do que estava decidido desde o início não tivesse sido feito logo, em breve pronunciamento do presidente Luís Inácio Lula da Silva, com a choradeira das explicações e o rateio da responsabilidade com a herança maldita, ao invés da novela que se espichou por três semanas de angústia nas intermináveis e inúteis rodadas de reuniões, prolongando a agonia e jogando na rua as indignadas reações dos iludidos.
Nos remendos a que ficou reduzida a pomposa promessa de reforma da Previdência, o governo esqueceu de combinar com o seu partido o logro nos aposentados e pensionistas. A experiência e a esperteza aconselhavam o debate preliminar com a bancada petista, abrindo a oportunidade dos desabafos dos descontentes para a decisão pelo voto, com o prévio compromisso da obediência dos vencidos à democrática decisão, aprovada por ampla maioria. O sestro autoritário de impor a vontade soberana do presidente, com a exclusiva assessoria do grupo palaciano, resultou no racha do PT, com a expulsão da senadora Heloísa Helena, de quatro deputados e tende a ampliar-se com novas rebeldias.
Dei algumas voltas antes de chegar ao principal. E vou direto ao ponto nevrálgico: alguém de bom senso e o mínimo de isenção pode cultivar dúvida de que a inacreditável incompetência da obtusa decisão da responsabilidade turrona de Lula, de expulsar o correspondente no Brasil do ‘New York Times’, Larry Rohter, está custando um desgaste doméstico e internacional ao próprio presidente, à imagem do país infinitamente maior do que uma sensata e indispensável reação, no limite do razoável?
Não vou chover no molhado e repisar obviedades, como a reprovação à leviandade do repórter americano ao embarcar em fofocas e mexericos de fontes vulneráveis pelas suas notórias posições políticas.
Mas, o jogo estava ganho por goleada no primeiro tempo, com a solidariedade consensual do país, inclusive a expressa e veemente condenação das lideranças oposicionistas. Com a cabeça fria, o governo orquestraria os protestos pela via diplomática e avaliaria a conveniência e o amparo legal a uma ação na Justiça.
A esta altura, o incidente teria encolhido à sua exata dimensão, rebaixado para notas em uma coluna das páginas internas dos jornais e revistas e de segundos nos noticiários dos rádios e TVs. No Congresso, com coisas mais urgentes para cuidar na minguada semana brasiliense de dois a três dias úteis, nada mais do que o requentado de discursos da turma ociosa. No resto do mundo, o manto opaco e conveniente do esquecimento.
O que valorizou o assunto, ressuscitado com fôlego de sete bichanos, foi a invocada, despropositada, incompetente reação do presidente, na estréia da expulsão do país de jornalista nos nossos intervalos democráticos, baseado no Estatuto dos Estrangeiros, de 80, esquecida lei da ditadura militar e aplicada uma única vez pelo presidente Garrastazu Médici, seu orgulhoso autor, há mais de 30 anos.
Lula arrumou uma sarna que o incomodará por muitos anos. Coçando até arrancar sangue todas as vezes que for flagrado com um copo na mão. Terá que se cuidar com o sacrifício da sua espontaneidade. Em público, hábitos de abstêmio ou o risco das gozações, ricocheteando na tribuna parlamentar, nos espaços do humor. E não adianta chiar, pois é sua a culpa.
Aliás, há muito tempo, Lula provocava a maledicência nos exageros do estilo popular do modelo da liderança sindical. É infamante a insinuação de viciado em bebidas alcoólicas. Mas, nos momentos de descontração, em qualquer ambiente, brincava com a sua preferência pelo cálice de cachaça, as batidas e as bebidas fortes.
Em declaração para um documentário, que ainda não está pronto, puxando a memória dos tempos de torneiro mecânico, relembra a extravagante rotina da sua turma de amigos para a fruição plena do horário de almoço. Disparavam da fábrica, de macacão grosso e botas, para o botequim onde viravam ‘dois a três cálices de cachaça’, emendavam no almoço farto da pensão e corriam para a pelada sagrada de todos os dias até o apito de advertência para o segundo turno.
Os próximos dias, acalmando os nervos, aconselham a reflexão da autocrítica. Certamente aprendeu que, em assunto de imprensa, não tem melhor conselheiro que o sensato, arguto e confiável Ricardo Kotscho.
Doída como ferroada de marimbondo, o mais enxuto resumo da opereta é de autoria do jurista Miguel Reale Jr.: ‘Se a notícia foi maldosa, a reação foi burra, e muitas vezes a burrice é pior do que a maldade’.’
Milton Coelho da Graça
‘Porta-voz muitas vezes atrapalha’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 17/05/04
‘O bom senso do Ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, e do jornalista Larry Rohter, encerrou uma desnecessária crise política. Mas continuamos a ter uma crise de porta-voz. Até hoje temos na memória as mentiras de Carlos Átila, as vaidades juvenis de Alexandre Garcia e a fidelidade equivocada de Cláudio Humberto.
Agora temos André Singer – jornalista e cientista político – que mostrou não entender o significado das claríssimas disposições da Constituição de 1988 sobre liberdade de imprensa.
Vários colegas responsáveis pela cobertura do Planalto informaram que Singer foi o ‘falcão’ mais entusiasta a favor da decisão desastrada do Presidente, enquanto Ricardo Kotscho e o ministro Luiz Guchiken procuravam convencer Lula de que a situação exigia comedimento e cuidadosa avaliação das conseqüências da expulsão do jornalista.
A reação praticamente unânime dos grandes jornais e da opinião pública nacional a essa decisão pode ser sintetizada pelo título da coluna de Merval Pereira (O GLOBO de quinta-feira, 13/5): ‘Truculenta e arbitrária’.
Nesse mesmo dia, a Folha de São Paulo publicou um artigo de André Singer sob o título ‘Uma reação à altura’, que demonstra sua total falta de sintonia com a alma do país e com as determinações constitucionais, conforme demonstrou a claríssima explicação dada pelo ministro Peçanha Martins, do Superior Tribunal de Justiça, ao conceder habeas corpus para impedir a suspensão do visto do correspondente do New York Times.
Em três trechos pode-se resumir a essência do pensamento de Singer. ‘Cancelar o visto temporário de um correspondente do NYT no Brasil não constitui nenhuma tentativa de cerceamento à liberdade de imprensa.’
‘Do mesmo modo que a liberdade de exercer a medicina não pode impedir que se proíba de clinicar a um médico que deliberadamente mata seus pacientes, a liberdade de imprensa não pode servir de pretexto para ser leniente com quem difama, injuria e calunia. É por isso que os jornalistas, de acordo com a legislação brasileira, têm que responder na Justiça quando acusados de cometer um desses três tipos de crime’.
‘A referida reportagem foi produzida por um estrangeiro e publicada fora do Brasil, longe, portanto, da competência da Justiça brasileira. Sendo assim, a alternativa compatível com a gravidade do caso foi a de suspender o visto do correspondente para restaurar um ambiente de responsabilidade e respeito no trato dos assuntos públicos brasileiros.’
No primeiro trecho Singer ignora a letra e o propósito de nossa Constituição, ignorância incompatível com o exercício do cargo que ocupa e a sua própria formação profissional. Ministros, parlamentares e outros dignitários podem dizer bobagens sobre ‘honra nacional’ e se mostrar personagens de uma republiqueta de bananas. Mas não um jornalista, cientista político e porta-voz do Governo.
No segundo, ele compara o erro de um jornalista mentiroso ao erro de um médico homicida – o que mais uma vez demonstra sua dificuldade para avaliar problemas corretamente. E torna-se óbvio que Singer não aceita o princípio de que a liberdade de imprensa é irrestrita – mesmo para publicação de injúrias, calúnias e difamações. A Justiça (não ele ou o Presidente) é que decide sobre a punição a eventuais abusos. Ele insiste em subordinar esse direito irrestrito a ‘um ambiente de responsabilidade e respeito no trato dos assuntos públicos brasileiros’. Igualzinho como diziam e faziam os censores da ditadura.
Finalmente, fico imaginando o que ele poderia ter aconselhado ao Presidente se algum jornalista brasileiro tivesse escrito aquela mesma matéria. Cancelar o visto (e, portanto, expulsão do país) foi o que Singer recomendou ‘porque a reportagem foi produzida por um estrangeiro e publicada fora do Brasil’. E se o jornalista fosse brasileiro trabalhando para um jornal estrangeiro? Ou se Rohter tivesse escrito a matéria para um jornal brasileiro?
Singer cometeu um erro grave, assessorando mal nosso Presidente. Possivelmente ainda mais grave seria o erro de Lula, se o mantiver no posto.’
Luiz Orlando Carneiro e Romoaldo de Souza
‘Justiça suspende decisão de Lula’, copyright Jornal do Brasil, 14/05/04
‘No dia em que a Justiça garantiu a permanência do correspondente do New York Times Larry Rohter no Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se viu forçado a recuar pela primeira vez na ofensiva contra o jornal americano. O ministro Francisco Peçanha Martins, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), suspendeu, em caráter liminar, a decisão do governo de cassar o visto temporário do jornalista por ter escrito uma reportagem sobre o suposto ‘hábito de bebericar’ de Lula. Em reunião com líderes da bancada governista no Senado, o presidente voltou a exigir uma retratação do NYT, mas reconheceu que acatará qualquer decisão judicial.
Até que o mérito do habeas-corpus impetrado pelo senador Sérgio Cabral (PMDB-RJ) seja julgado pela 2ª Turma do STJ, o salvo-contudo dá a Rohter o direito de se locomover livremente no país e continuar exercendo seu trabalho como correspondente estrangeiro.
Em despacho com menos de duas páginas, Peçanha Martins ressaltou que, ‘no Estado Democrático de Direito, não se pode submeter a liberdade às razões de conveniência ou oportunidade da administração’. Citou Ruy Barbosa, que disse ser a imprensa ‘a vista da nação’ e o jornalista ‘um refletor da luz que vem do público’, e acrescentou que os direitos e garantias fundamentais, sobretudo a liberdade de expressão, são assegurados pela Constituição tanto aos brasileiros como aos estrangeiros.
O ministro-relator do hábeas ajuizado por Cabral informou que solicitaria ao Ministério da Justiça, num prazo de 72 horas, mais informações sobre os motivos que levaram o governo a cassar o visto de Larry Rohter. Depois disso, enviará os autos ao Ministério Público para o parecer do procurador-geral da República. Quando receber esse parecer, Peçanha Martins vai preparar seu voto e submetê-lo ao plenário da 2ª Turma.
De posse do salvo-conduto, o correspondente não pode ser incomodado pela Polícia Federal, pelo menos até eventual indeferimento do mérito do habeas-corpus pelo STJ. O jornal americano se disse ‘satisfeito’ com a decisão da Justiça.
Lula, no entanto, voltou a cobrar uma retratação do New York Times. Poucas horas antes da expedição da liminar do STJ, o presidente condicionou um recuo no cancelamento do visto ao pedido de desculpas do periódico. Reunido com o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-MA), e com líderes de partidos que apóiam o governo, Lula tinha em mãos uma tradução da reportagem. Com os olhos marejados, leu aos presentes o trecho que mais o magoou: o comentário de que seu pai, Aristides, era alcoólatra e maltratava os filhos.
O jornalista americano, na verdade, limitou-se a citar, no texto, relatos da imprensa baseados em depoimentos do próprio Lula. Nas entrevistas que deu após a eleição e em sua biografia autorizada, o presidente conta que Aristides abandonou a família em Caetés, no interior de Pernambuco, e foi viver em São Paulo com uma sobrinha. Nas memórias, Lula recorda uma mágoa de infância: num passeio de domingo, o pai lhe negou um sorvete, alegando que o filho não era tão educado quanto seus irmãos do segundo casamento.
Diante da forte emoção do presidente, Sarney e a comitiva de senadores sentiram que seria difícil deixar o Palácio do Planalto com uma decisão oficial de rever a expulsão de Larry Rohter.
Mesmo antes do encontro, Lula já demonstrava pouca inclinação para rever a posição. Ao encontrar o jornalista Armando Rollembeg, diretor de Comunicação Social do Senado e velho amigo de militância sindical, o presidente não se sensibilizou com o apelo que recebeu.
Rollemberg, que foi presidente da Organização Internacional dos Jornalistas (OIJ), antecipou-se aos senadores e pediu a Lula para rever sua posição.
– Presidente, aproveite esse gancho e reveja sua decisão – pediu Rollemberg.
Lula foi seco na resposta: ‘Não dá’.
Um dos principais incentivadores da expulsão do correspondente americano, o secretário de Comunicação de Governo, Luiz Gushiken, recebeu ontem, a portas fechadas, um grupo de jornalistas estrangeiros que trabalham no Brasil. A reunião estava marcada há uma semana, mas a pauta acabou centrada no cancelamento do visto do repórter.
Após o encontro, Gushiken não falou com a imprensa brasileira. Segundo um jornalista da Bloomberg News, os correspondentes estrangeiros temem que seus vistos sejam cassados caso publiquem alguma matéria contra o presidente Lula. O secretário respondeu que a imprensa é livre no Brasil e insistiu em considerar correta a decisão tomada pelo Planalto. Sobre a decisão do STJ, Gushiken limitou-se a dizer que o Executivo não interfere nas decisões do Judiciário.’