Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O Estado de S. Paulo

‘O salvo-conduto concedido ao jornalista Larry Rohter pelo ministro Francisco Peçanha Martins, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), reabilitou a imagem da democracia brasileira que o governo Lula conspurcara ao ordenar – com base numa lei ditatorial – a expulsão do correspondente do New York Times. Infelizmente, essa foi a única notícia animadora nos jornais de ontem sobre os desdobramentos e repercussões de uma decisão que conseguiu ao mesmo tempo ser vexatória e estúpida.

Pois tudo mais aponta em duas direções convergentes que configuram um quadro acabrunhante. De um lado, a córnea obstinação do Planalto em sabotar qualquer iniciativa que lhe permitisse redimir-se do imenso erro cometido – e divulgado aos quatro ventos – sem perder a face. De outro, as manifestações, dentro e fora do governo, por ele estimuladas ou exploradas, do que só merece ser denominado nacionalismo de sarjeta: uma versão degradada, fora de hora e de lugar, do legítimo sentimento patriótico dos brasileiros.

A primeira oportunidade desperdiçada para passar uma borracha sobre um ato que precisa ser apagado o quanto antes foi construída pelo líder do governo no Senado, Aloizio Mercadante, que criticou de público o contraproducente castigo imposto ao autor de uma peça de mau jornalismo sobre os ‘hábitos sociais’ de Lula. A idéia era a de que todos os líderes de bancada no Senado, além do presidente da Casa, José Sarney, em romaria ao Planalto, apelassem ao presidente para revogar a expulsão de Rohter.

O governo matou a tentativa no nascedouro, fazendo os senadores da oposição perceberem que a peregrinação seria fútil. E, aos líderes aliados, os interlocutores palacianos, a começar de Lula, não deram a menor chance de argumentar que ele só teria a ganhar com um gesto de grandeza, a pedido do poder republicano por excelência, o Legislativo. Exsudando indignação, o presidente bancou a decisão calamitosa. ‘Não sou nenhum alcoólatra’… ‘Vou arcar com as conseqüências’, vangloriou-se, alheio ao fato de que essas conseqüências incidem sobre o País.

Ele reiterou que só voltaria atrás se o jornal publicasse uma retratação.

Não está claro se alguém teve o zelo de lhe informar que isso não é da praxe do NYT. De todo modo, se fizesse uso da sua decantada intuição política, atentando para o imperativo de impedir a propagação do estrago, poderia considerar que o jornal se desculpara o suficiente na carta do seu advogado, negociada pelo ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos. Mas, mais uma vez, a reação de Lula foi bater a porta, alegando, segundo se publicou, que ‘a carta defende mais o jornalista do que eu’.

Não há como fugir da constatação de que o presidente não está entendendo o que se passa. É de estarrecer, por exemplo, que tenha atribuído ao ‘corporativismo’ a unânime condenação da imprensa brasileira à truculência praticada – e não a um genuíno senso de ultraje e a um lúcido entendimento do seu efeito bumerangue. Não menos espantoso foi ele ter comparado, para pior, a matéria de Rohter com o gesto obsceno de um piloto americano no Aeroporto de Guarulhos – pelo que foi expulso do Brasil. Tampouco se pode descartar a idéia de que a obnubilação de Lula é fomentada por alguns de seus interlocutores próximos.

Exemplos não faltam. Na reunião com os senadores, o ministro da Casa Civil, José Dirceu, disse que os Estados Unidos precisam entender que o Brasil não é ‘uma republiqueta’, esquecido de que o governo não está ajudando. Por sua vez, o ministro da Comunicação, Luiz Gushiken, disse a correspondentes estrangeiros que Lula ‘é magnânimo, mas justo’. Por isso, ele não ‘poderia guardar silêncio’ sobre as acusações da reportagem. E o assessor especial do presidente, Frei Betto, escreveu no Globo que ‘algo no governo incomoda o NYT’, delirantemente – e mentirosamente – tratado como ‘um pastelão que sempre se aliou às políticas colonialistas e imperialistas da Casa Branca’.

Enquanto isso, outros amigos do presidente, dos programas ‘mundo-cão’ da televisão, defendem o indefensável com a sordidez típica de seus programas e a xenofobia compatível com a violência a que instigam o seu público tosco.

De seu lado, sindicalistas chamaram Rohter de alienígena e inimigo da pátria. Resta a esperança de que, antes tarde do que nunca, Lula se agarre ao salva-vidas que lhe acaba de lançar o ministro Peçanha Martins, do STJ, acatando decisão favorável ao jornalista ameaçado. É a última oportunidade para o governo ainda se sair airosamente da crise que a sua cegueira e propensão para o autoritarismo o levaram a criar.

N. da R – Este editorial já estava na página quando chegou a notícia de que, graças aos bons ofícios do ministro Márcio Thomaz Bastos, o incidente foi encerrado, de forma, entretanto, que não altera as considerações feitas acima.’

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‘‘NY Times’ dá destaque a recuo de Lula’, copyright O Estado de S. Paulo, 16/05/04

‘Jornal menciona editorial do ‘Estado’ como exemplo da ‘forte reação’ à punição de seu correspondente

Em longo artigo do jornalista Warren Hoge, o New York Times noticiou ontem, com destaque, a decisão do governo brasileiro de revogar a punição de seu correspondente no Brasil, Larry Rohter. Sem mencionar, em nenhum momento, a questão da retratação do jornalista – que o jornal negou ter apresentado, – a reportagem fala da ‘forte reação’ partida de meios jurídicos e da imprensa do País, destacando entre esses fatores o editorial do Estado na quinta-feira.

‘A decisão do sr. da Silva, na terça-feira, de expulsar Larry Rohter’, diz o Times, ‘provocou uma forte reação, conduzida por associações de jornalistas, advogados, grupos jurídicos e políticos da oposição. O mais influente jornal brasileiro, O Estado de S. Paulo, publicou um editorial na quinta-feira definindo a ação presidencial como ‘uma monumental estupidez’.

Warren Hoge destaca, no início do texto, o papel do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que assumiu o controle da situação ‘depois de receber uma carta dos advogados brasileiros de Rohter afirmando que ele não havia tido nenhuma intenção de ofender (Lula) da Silva e lamentando qualquer incômodo que a reportagem tenha causado’.

Ele lembra em seguida a reação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva: ‘Na segunda-feira, da Silva disse que o texto representava ‘um ataque malicioso contra a instituição da Presidência e na terça-feira determinou que o visto de Rohter fosse suspenso’. E acrescenta: ‘Inicialmente, a imprensa brasileira e grande parte da opinião pública apoiaram a violenta resposta ao artigo e deram força às suas denúncias’.

Má tradução – O jornal chama a atenção, em seguida, para o possível problema de tradução da reportagem, mencionado no requerimento mandado pelos advogados de Rohter ao governo, na tarde de sexta-feira. ‘No requerimento, Rohter, que fala fluentemente o português, argumentou que a tradução de seu artigo havia sido mal traduzida pela imprensa brasileira – um fato que teria tornado bem maior a confusão.’

É mencionada ainda a crítica dos analistas ao fato de o presidente brasileiro ‘ter baseado sua ação em uma lei de imprensa repressiva e desacreditada, dos tempos da ditadura militar, que havia perseguido e prendido (o presidente Lula) da Silva e muitos membros de seu governo esquerdista.’ Depois, refere-se à advertência feita na quinta-feira pelo porta-voz do Departamento de Estado americano, Richard Boucher. Para Boucher, diz o Times, o gesto de Lula ‘não estava de acordo com o fortre compromisso do Brasil com a liberdade de imprensa’.

Por fim, o jornal lembra que na quarta-feira Lula disse ‘que não iria considerar (a hipótese de) reverter sua ação’, mas no dia seguinte já afirmava que ‘poderia reconsiderar se o Times se retratasse’. Depois de anunciada a disposição do presidente Lula de desistir da punição, prossegue o autor, o jornal divulgou uma declaração sobre o episódio. Nela, o Times revela sua ‘satisfação’ pela solução do caso mas reafirma a posição anterior de que o conteúdo da reportagem lhe parece ‘fiel e correto’. E conclui com o treco final da nota: ‘Estamos felizes por (saber que) o sr.

Rohter poderá viajar livremente no Brasil e para fora. Tanto o Brasil quanto o New Y ork Times se beneficiarão por haver um correspondente do Times trabalhando nesse importante país’.’

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‘‘País não é governado por um alcoólatra’, diz Lula’, copyright O Estado de S. Paulo, 15/05/04

‘Na avaliação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o episódio envolvendo o jornalista americano Larry Rohter, do The New York Times, não abre nenhum precedente contra a liberdade de imprensa no País. ‘O jornal pode tirar este cidadão (Rohter) e mandar 350 jornalistas para cá, para fazerem 350 matérias criticando o governo que não tem problema’, disse o presidente, em entrevista à revista IstoÉ, que chega hoje às bancas.

Lula nem admite que o governo tentou expulsar Rohter. ‘É um direito do Estado conceder ou não o visto’, observou. ‘É engraçado: os EUA não concedem visto ao deputado Fernando Gabeira, que seqüestrou o embaixador em 1968. O embaixador já morreu de velho e ainda hoje o Gabeira não consegue entrar lá.’

O presidente disse que não concorda com a avaliação de que a decisão de expulsar o jornalista foi precipitada. ‘Li, reli, reli mais uma vez e fiquei tentando saber o fundamento’, contou. ‘Por que um cidadão faria uma matéria daquela? Ele poderia dizer que o governo é incompetente, que o governo não está conseguindo fazer nada. Poderia dizer que eu bebo. Que gosto de tomar uísque, de tomar uma cerveja, de fumar um charuto. É a pura verdade.’

Com declarações firmes, Lula fez questão de deixar claro que, sim, consome bebidas alcoólicas. ‘Nenhum político neste país já bebeu com o povo como eu bebi’, arriscou. ‘Nunca escondi de ninguém, nunca fingi, nunca impedi que tirassem uma fotografia minha.’

Mas, explicou Lula, o grande problema da reportagem de Rohter é que ela atinge o presidente da República, ‘que é uma instituição’. ‘Esse cidadão nunca esteve comigo, nunca viu o meu cotidiano. Não poderia passar para fora que o Brasil é governado por um alcoólatra’, afirmou. ‘Eu duvido que qualquer companheiro tenha me visto bêbado alguma vez. Faço este desafio para a imprensa nacional’, continuou. ‘Agora, veja a situação. Quando eu chegar à África do Sul, em Angola, quando eu for falar com o xeque da Arábia Saudita, ele vai dizer: ‘Pô, será que esse cara está bêbado? Ele é um alcoólatra. Fiquei indefeso. O Brasil não é governado por um alcoólatra.’

O presidente argumentou que a ameaça de cancelamento do visto do jornalista americano foi o ‘único’ instrumento de que ele dispunha. ‘Eu aprendi desde pequeno, acho que por razões da minha família, a me respeitar, sabe? Aprendi a ter auto-estima. Se eu não me defender, ninguém vai me defender. Este foi o gesto da minha indignação.’

Eleição – Sobre as eleições municipais de outubro, o presidente ressaltou a importância de uma aliança entre PT e PMDB em São Paulo, para a reeleição da prefeita Marta Suplicy (PT). ‘Estou certo de que dificilmente a Marta perderá as eleições’, apostou. ‘Não sei o que os companheiros do PT de São Paulo estão pensando, mas uma aliança com o PMDB é importante.’

Quando questionado sobre a resistência de Marta a ceder o lugar de vice na sua chapa a outro partido, Lula observou: ‘A Marta é muito inteligente. Vai analisar o quadro político.’

O presidente revelou ainda que já conversou com o PMDB, aliado do PT no plano federal, e que ‘o partido tem interesse em fazer aliança com o PT, mas quer discutir a composição da chapa’. ‘Se quisermos fazer uma coisa pra valer, o (presidente do PT) José Genoino e o (presidente do PMDB e candidato) Michel Temer têm de conversar com a prefeita’, considerou. ‘Como Marta tem muitas possibilidades de ganhar as eleições pelo trabalho que ela está fazendo – e não é só porque ela é uma mulher inteligente, bonita e que gosta de aparecer na TV -, dificilmente terá um candidato em condições de derrotá-la.’’

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‘A CARTA DOS ADVOGADOS’, copyright O Estado de S. Paulo, 15/05/04

‘Esta é a íntegra do documento enviado ao Ministério da Justiça pelos advogados de Rohter

‘Willian Lawrence Rohter Jr, cidadão estadunidense, casado, portador da RNE n.º V256192D e do passaporte norte-americano n.º 7012 89896, por seus advogados (procuração anexa) vem à presença de V. Exa., com respeito e acatamento sempre demonstrados, para apresentar seu PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO, COM EFEITO SUSPENSIVO contra a determinação deste Ministério da Justiça de cancelar o visto temporário do Requerente, divulgada por meio de nota a Imprensa emitida em 11 de maio de 2004, e publicada por despacho d o Gabinete do Ministro no Diário Oficial da União do dia 213 de maio, seção I, pág 47.

I – Dos Fatos:

1 – O Requerente encontra-se no País na qualidade de correspondente estrangeiro do jornal norte-americano The New York Times (NYT), como atesta o cartão de identidade emitido em seu nome pelo Ministério das Relações Exteriores. Para tal fim, apresentou à Coordenação Geral de Imigração do Ministério do Trabalho e Emprego pedido de concessão do visto temporário com base no artigo 13,VI, da Lei n.º 6.815/80, e no artigo 22, VI, do Decreto n.º 86.715/81, o qual foi deferido em 26.02.1999.

2 – Mediante despacho da Coordenação Geral de Imigração, publicada no Diário Oficial da União, tal pedido foi deferido, tendo o Requerente ingressado no País com visto temporário com prazo de 4 anos.

3 – Tendo em vista a proximidade da data de vencimento de seu visto temporário, o Requerente apresentou à Coordenação Geral de Imigração o respectivo pedido de prorrogação. Esse pedido ainda está em tramitação.

4 – Em 11 de maio de 2004, sobreveio a referida nota à Imprensa determinando o cancelamento do visto temporário do Requerente, formalizado pelo despacho publicado no Diário Oficial da União de 13 de maio de 2004, o que motivou o presente pedido.

II – Das Razões para Reconsideração:

5 – O requerente é jornalista do conceituado jornal NYT desde 1984, tendo sido designado para trabalhar no Brasil em razão de sua excelência profissional. Dita excelência é corroborada pela aceitação e reconhecimento sempre demonstrados pela empresa jornalística onde trabalha, e pelo reconhecimento de expressivos representantes da classe, tendo o Requerente sido merecedor do Prêmio Embratel, concedido em 2003, por ter sido correspondente estrangeiro que melhor desempenhou suas atividades no exterior sobre assuntos brasileiros. O Requerente igualmente foi agraciado pelo Prêmio Maria Moors Cabot, no ano de 1998, que é o maior prêmio existente nos Estados Unidos para os jornalistas em exercício profissional na América Latina.

6 – O Requerente desenvolve suas atividades profissionais de jornalista acompanhando e divulgando notícias sobre o Brasil e demais países da América Latina, há praticamente 32 anos, inicialmente como jornalista da sucursal da Rede Globo em Nova York, após como correspondente da revista Newsweek e, por fim, nos últimos cinco anos, como correspondente do NYT. Nesse período, o Requerente enviou incontáveis matérias sobre o Brasil, nas mais diversas áreas, quer sejam políticas, econômicas, sociais e culturais. Apenas nos últimos cinco anos, cerca de 300 matérias do Requerente foram divulgadas no exterior pelo NYT.

7 – A respeito do que menciona o artigo em questão, o Requerente declara jamais ter tido a intenção de ofender a honra do Excelentíssimo Senhor Presidente da República, a quem já pôde até mesmo entrevistar em algumas ocasiões, e reafirma seu grande afeto pelo Brasil e seu profundo respeito às instituições democráticas brasileiras, incluindo a da Presidência da República. Na opinião do Requerente, o artigo limita-se a veicular comentários, não contendo nenhum juízo de valor do próprio Requerente, que de todo modo reitera que o texto não foi escrito para ofender o Sr.

Presidente, embora as repercussões e polêmicas posteriores à reportagem possam ter lhe causado constrangimentos, os quais o Requerente lamenta.

8 – Por fim, o Requerente manifesta sua preocupação, por entender que a versão de seu texto para o português não é fidedigna, o que pode ter causado a ampliação do mal-entendido.

III – Do pedido: Em razão do acima exposto, o Requerente requer que V.Exa.

se digne a: (1) aceitar o efeito suspensivo do presente pedido de reconsideração, com base no art. 61, parágrafo único, da Lei 9.784/99, vez que no caso há possibilidade de prejuízo de difícil e incerta reparação, ordenando a suspensão da determinação ao Departamento de Polícia Federal para notificar o Requerente a deixar o território nacional no prazo de oito dias; e (2) reconsiderar a determinação de cancelamento do visto temporário do Requerente. Nestes termos, P. deferimento.

Brasília, 14 de maio de 2004.

Celso Cintra Mori, OAB/SP n.º 23.639), Marta Mitico Valente, OAB/SP n.º 75.951-A, Sup.João Luís Aguiar de Medeiros, OAB/RJ n.º 60.298.’’

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‘Reação stalinista’, copyright O Estado de S. Paulo, 13/05/04


‘A reação do governo à matéria publicada dia 9 no New York Times foi tão estapafúrdia que levanta, sim, dúvidas sobre a capacidade do governo Lula de dar respostas adequadas aos problemas da economia brasileira.


Além de divulgar uma nota oficial imprópria, o governo acabou cancelando o visto de entrada do correspondente do Times, Larry Rohter.


Como é de conhecimento público, Rohter assinou matéria de 1,4 mil palavras que, em síntese, fala que ‘alguns dos conterrâneos (de Lula) começam a se perguntar (‘begun to wondering’) se a predileção do seu presidente por bebidas fortes está afetando seu desempenho no cargo’.


Se estamos diante de uma ‘reportagem caluniosa’ ou de ‘um texto digno da pior espécie de jornalismo, o marrom’, como diz a nota do porta-voz da Presidência da República, a melhor maneira de enfrentar suas conseqüências é abrir um processo na Justiça e aguardar a sentença do Juiz, como qualquer pessoa ou qualquer autoridade deve fazer quando trata da defesa da sua própria honra.


No entanto, ao cancelar o visto de Rohter, o governo Lula está cometendo graves erros. O primeiro deles é o de dar ao caso tratamento de segurança nacional. O secretário de Comunicação do governo federal, Luiz Gushiken, chegou a ver na matéria o dedo da CIA ou de outro organismo de inteligência de potências estrangeiras ‘que desprezam a soberania alheia’ e que estariam interessados na desmoralização do governo Lula. No entanto, nada foi mais desmoralizante no episódio do que o revide do governo, que usou canhão para matar passarinho.


Fechada – O segundo erro é de comunicação. Reagir como reagiu o governo é exagerar a importância da matéria veiculada no Times. Aquilo que teria impacto limitado ganhou dimensão cósmica. A repercussão ficou mais importante do que o fato. A imprensa mundial agora vai multiplicar matérias que vão tratar não só do suposto halterocopismo do presidente, mas da truculência demonstrada por autoridades com baixa capacidade de suportar críticas.


Não há o que desmoralize mais uma autoridade pública do que uma chacota criativa e o governo acaba de fornecer pano abundante para essa manga. Ontem mesmo, antes de protocolar um projeto de decreto legislativo com o objetivo de reverter a decisão do Executivo, o deputado federal Eduardo Paes (PSDB-RJ) dizia: ‘quem tomou essa decisão só podia mesmo estar de porre’.


Tiradas desse tipo vão multiplicar-se agora, em escala global.


A pergunta que a turma lá de Brasília tem agora de responder é se, a cada matéria que sair no exterior com esse tom, o governo responderá com a expulsão do correspondente do veículo no Brasil.


O terceiro erro é político. Quando tasca uma multa sobre um contribuinte que eventualmente tenha fechado seu carro no trânsito, um fiscal de rendas está usando impropriamente seu cargo público para se vingar.


Truculência – Transgressões da Lei de Imprensa têm de ser punidas pela Justiça, e não por medidas truculentas. Quando o presidente da República manda expulsar um repórter que escreveu matéria que considera caluniosa está adotando represália de cunho stalinista. E, nesse momento, o governo Lula deixa de ser visto como vítima e passa a ser visto como agressor.


Vacilações recorrentes, assembleísmo, tendência a evocar para tudo o poder do governo, falta de clareza sobre objetivos a atingir, viés centralista – existe um pouco de tudo isso nas administrações petistas. Mas, no governo Lula, nada dessa cultura chegou, até agora, a contaminar decisões essenciais em política econômica. Ao contrário, sempre que pressionado a percorrer atalhos alternativos, o governo Lula respondeu com firmeza exemplar. Em nenhum momento, adotou políticas irresponsáveis que eventualmente pusessem em dúvida o cumprimento dos compromissos assumidos na Carta ao Povo Brasileiro, de junho de 2002. E a reação do governo nesse momento em que deverá ser aprovado o salário mínimo de R$ 260 é uma forte prova disso.


é à perda de noção de proporção das coisas e a certa propensão a ‘chutar o pau da barraca’ que se pode chamar de ‘petismo’. E ‘petismo’ preocupa porque hoje a reação despropositada pode limitar-se a punir despropositadamente um suposto detrator; amanhã, pode resvalar para decisões de maior relevância pública.’




O Globo

‘Faxina final’, Editorial, copyright O Globo, 16/05/04

‘Foi preciso que o governo cometesse o erro de decretar a expulsão do correspondente do ‘New York Times’ Larry Rohter, para vir à tona o Estatuto do Estrangeiro, de agosto de 1980. Essa lei, de número 6.815, leva a assinatura do general João Baptista Figueiredo e do seu ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel. Tem, portanto, as impressões digitais da ditadura.

E assim deu-se uma aberração: Lula, líder operário perseguido pelos militares, valeu-se de uma lei da ditadura para tentar punir o jornalista. Além de deixar uma nódoa na biografia do presidente, o fato chama a atenção para o paradoxo de vivermos em pleno regime democrático e ainda haver na legislação resquícios dos tempos de autoritarismo. Na verdade, o Estatuto do Estrangeiro é filho legítimo da filosofia do AI-5, suspenso em dezembro de 78, menos de dois anos antes de Figueiredo e Abi-Ackel assinarem essa lei.

A Constituinte de 87, convocada para fazer uma faxina no entulho autoritário, produziu uma Carta condizente com a abertura política e a democracia: descentralizou recursos tributários, redistribuiu poderes, restabeleceu direitos civis. Mas aquela limpeza jurídico-institucional, como não poderia deixar de ser, restringiu-se aos pilares do sistema. E mesmo que tenham sido detalhistas em excesso, os constituintes não poderiam desinfetar toda a legislação contaminada por vinte e um anos de regime militar.

Nem era o caso. Mas como o esforço das legislaturas seguintes tem sido empregado para rever os excessos da Constituição, não tem havido condições para se completar a dedetização.

Por isso o presidente da República, seja Luiz Inácio Lula da Silva ou qualquer outro, continua com poderes para decretar expulsões como a de Larry Rohter. Ainda bem que o regime é de fato democrático e a Justiça pode conter ações arbitrárias dos outros poderes.

Inúmeras decisões tomadas em instâncias inferiores da Justiça têm ferido a liberdade de imprensa, mesmo estando inscrito na Constituição o princípio da liberdade de expressão. O caso Rohter deve levar o Congresso a lançar-se nessa faxina final, para varrer de vez a legislação autoritária ainda em vigor.’

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‘Desserviço’, Editorial, copyright O Globo, 13/05/04

‘A reação do governo à reportagem do correspondente do ‘New York Times’ Larry Rohter sobre uma inexistente preocupação nacional com um suposto hábito do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de consumir em excesso bebidas alcoólicas atingiu o ponto máximo de insanidade com a expulsão do jornalista. Publicado domingo no mais influente jornal americano e um dos mais importantes do mundo, o texto, baseado em fontes descredenciadas, provocou justa reação do Palácio do Planalto.

Nota foi emitida, o embaixador em Washington recebeu a incumbência de formalizar em carta uma reclamação ao NYT, e parecia que o curto-circuito provocado por uma peça de mau jornalismo se esgotaria ali.

Mas, infelizmente para o governo e o próprio país, teorias conspiratórias e adormecidos cacoetes antiamericanistas da velha esquerda brasileira agiram em Brasília para produzir a desastrosa decisão de expulsar Larry Rohter. O ato macula o governo do PT e o equipara à ditadura, quando estrangeiros eram mandados embora por pretensas ameaças ‘aos interesses nacionais’. A arbitrariedade —- cometida com base numa lei do regime militar —- mancha, ainda, as biografias do presidente e de companheiros de governo e poder, que se esqueceram dos tempos em que eram perseguidos pelo Estado e defendiam a irrestrita liberdade de expressão.

Fica também abalado o projeto de Lula de converter-se em líder mundial e de ampliar os espaços do país nos fóruns multilaterais. A expulsão do correspondente equipara o Brasil a Repúblicas de Banana e confunde a estatura do presidente da República com a de personagens como o histriônico populista venezuelano Hugo Chávez, feroz inimigo da imprensa.

O mau jornalismo é punido pelos leitores. E o melhor caminho para quem se sente atingido por um repórter é a porta dos tribunais. O resto é autoritarismo de quem acha, como já confessou o secretário Luiz Gushiken, que imprensa boa é imprensa a favor.

Ao país resta torcer para que a visão estreita, a ideologia e o desequilíbrio emocional que inspiraram a punição não voltem a se manifestar em momentos de decisões importantes no Planalto.’

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‘Deu em todos os jornais, na política, no Judiciário, no governo’, copyright O Globo, 13/05/04

‘‘A decisão do governo brasileiro de cancelar o visto do jornalista não condiz com o forte compromisso do Brasil com a liberdade de imprensa’

RICHARD BOUCHER Porta-voz do Departamento de Estado dos EUA

‘Se o Brasil pretende expulsar um jornalista por causa de uma reportagem ofensiva ao presidente, isso faz crescer as dúvidas sobre o anunciado comprometimento do país com a liberdade de expressão e de imprensa’

BILL KELLER Editor-executivo do ‘New York Times’

‘O governo deve ser mais tolerante e respeitoso com relação à liberdade de imprensa’

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO Ex-presidente da República

‘ Saímos há muito tempo do império do arbítrio do AI-5, que afastava do questionamento jurisdicional algumas questões. Mas vou me pronunciar quando tiver todos os elementos que levaram a formar essa decisão’

MÁRCIO THOMAZ BASTOS Ministro da Justiça

‘Se a ofensa extrapola a pessoa física do presidente e atinge o país, há a desmoralização realizada por uma superpotência, os Estados Unidos, em relação a uma potência inferior. Se você considerasse que a ofensa não extrapola a pessoa física do presidente, o visto não poderia ter sido cancelado. Eu tenho pra mim que isso (a reportagem) extrapola a pessoa física e atinge a nação como um todo’

CLÁUDIO FONTELES Procurador-geral da República

‘Eu acho que (a decisão de expulsar) é inapropriada do ponto de vista dos padrões americanos, segundo os quais a imprensa é livre mesmo quando não faz o que o governo acha que ela deveria fazer’

DANIEL OKRENT Ombudsman do ‘New York Times’

‘Não poso de santo. Nunca fui candidato a santo. Fumar, eu fumo. Já tomei um copo de cerveja. Agora dizer o que ele (Rohter) disse é porque ele não me conhece’

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Presidente

‘O que o presidente Lula tinha que ter considerado é que ele já tinha o apoio da imprensa e da oposição. O governo abusou do poder. Foi um erro político’

FÁBIO KONDER COMPARATO Jurista

‘O presidente teve reação emocional, mas ele não pode levar este caso para o lado pessoal. Nunca vi um jornalista ser expulso da América Latina por causa de uma reportagem’

JENS GLUSING Porta-voz da Associação de Correspondentes de Imprensa Estrangeira no Rio

‘A decisão é indigna de um regime democrático, como é o caso do Brasil. Além disso, essa medida cai mal, porque vai causar mais prejuízo à imagem do presidente do que o próprio conteúdo do artigo. Se o artigo trata de um caso de difamação, isso tinha que ser resolvido no tribunal, e não por uma medida autoritária que não resolve’

REGIS BOURGEAT Representante da organização Repórteres sem Fronteiras

‘Devemos buscar um outro instrumento, como a defesa pelo caminho jurídico, apesar da lentidão. O cancelamento do visto não é a melhor resposta do país. O presidente se dispôs a nos receber e conversar. Vamos expressar o sentimento do Senado de repúdio à reportagem. Pelo que conheço dele e por sua sensibilidade, isso pode significar a reversão do fato’

ALOIZIO MERCADANTE Líder do governo no Senado’

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‘Não desceu bem’, copyright O Globo, 14/05/04

‘A expulsão do correspondente do ‘New York Times’ Larry Rohter por determinação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que se sentiu ofendido por reportagem sobre suposto excesso com bebidas alcoólicas, conseguiu provocar uma das mais fortes reações negativas a seu governo, no Brasil e no exterior. Nunca na História deste país – uma das frases preferidas de Lula – um jornalista foi expulso por governos democráticos.

– Se a notícia foi maldosa, a reação foi burra, e muitas vezes a burrice é pior que a maldade – disse Miguel Reale Jr., um dos juristas que consideram a expulsão inconstitucional porque, entre outros motivos, Larry é casado com uma brasileira e tem filhos brasileiros.

O comentário de Reale resumiu o tom da repercussão nos meios jurídicos, políticos, diplomáticos e entre associações de jornalistas de todo o mundo. No fim do dia, o presidente do Senado, José Sarney, e o líder do governo na Casa, Aloizio Mercadante, pediram e Lula concordou em receber hoje uma comissão para discutir a medida. Além de prestar solidariedade ao presidente pelo tom ofensivo da reportagem de Larry Rohter, os senadores vão pedir a Lula que reveja a expulsão. Pode ser o caminho encontrado para o recuo do presidente.

O porta-voz da Presidência, André Singer, porém, afirmou:

– O governo brasileiro não vai retroceder nesta questão. O governo tem razões sólidas, fundadas e refletidas e é nossa responsabilidade defender o Brasil, as instituições e a figura do presidente.

O Departamento de Estado americano reagiu logo cedo dizendo que a decisão de Lula não condiz com o compromisso do Brasil com a liberdade de imprensa. Associações internacionais de jornalistas do mundo inteiro consideraram a expulsão do repórter lamentável e questionaram a liberdade de imprensa no país.

O ‘New York Times’ anunciou que vai recorrer. A diretoria do jornal americano mandara carta à embaixada do Brasil em Washington convidando Lula para uma conversa quando ele visitar Nova York, em junho próximo. O convite, porém, fora feito horas antes de o governo brasileiro anunciar a expulsão do jornalista.

O editor-executivo do ‘Times’, Bill Keller, enviou a carta depois ter ouvido as queixas do embaixador do Brasil nos EUA, Roberto Abdenur, numa conversa de 40 minutos na manhã de terça-feira, na sede do jornal. O diplomata levara um calhamaço contendo cópias de notícias de todo o mundo referentes à reportagem que o jornal publicara no domingo e que Abdenur qualificara de caluniosa. Keller acenou com uma trégua: ‘Estamos abertos a ouvir os pontos de vista de seu governo’, diz trecho da carta assinada pelo editor-executivo do ‘Times’.

Na conversa com o embaixador, Keller já dissera que o conselho de direção do ‘Times’ gostaria de receber Lula para um café da manhã. O diplomata disse que devido ao clima criado pela reportagem publicada pelo jornal no domingo, achava que seria difícil o presidente aceitar.

A decisão de expulsar o jornalista foi tomada pelo próprio Lula. O secretário de Imprensa da Presidência, Ricardo Kotscho, teria sido contra a medida. No programa ‘Observatório da Imprensa’, anteontem à noite, ele comentou:

– Como jornalista, acho que não é a melhor solução, não é a que eu gostaria que acontecesse. Mas tenho de defender como decisão do governo.

Sequer o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que está na Suíça, foi consultado. O procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, defendeu a expulsão.

Larry Rohter, que mora no Rio, está na Argentina a trabalho.’

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‘Crítica e ironia na imprensa estrangeira’, copyright O Globo, 14/05/04

‘O anúncio da expulsão de Larry Rohter foi noticiado pelo próprio ‘New York Times’, em sua edição de ontem, em reportagem de Warren Hoge, ex-correspondente do jornal no Brasil. Também o ‘Los Angeles Times’ (quarta maior circulação do país) e o ‘Miami Herald’ deram a notícia.

Na Europa, a edição de hoje da revista britânica ‘The Economist’ diz que o líder brasileiro ‘forçou a mídia internacional a prestar atenção em uma história embaraçosa que, de outra forma, teria desaparecido’.

A revista afirma que planejava dedicar o seu espaço para uma reportagem sobre os esforços do governo para lidar com a criminalidade no Rio de Janeiro, mas teve de mudar de assunto na última hora em vista da decisão de Lula de cancelar o visto de Rohter. O texto argumenta que ‘a resposta (de Lula) imitou a forma como as ditaduras se livram de seus críticos’, e isso teria feito com que o presidente passasse do papel de vítima ao de algoz.

‘Magro na experiência e magro de realizações’

‘O governo pode ainda pensar melhor sobre a expulsão de Rohter, mas algum prejuízo já foi feito. A expulsão levanta mais questões sobre o discernimento de Lula do que qualquer coisa que o jornalista escreveu’, conclui o texto da ‘Economist’.

O ‘New York Times’ compilou as principais opiniões dadas no Brasil sobre o caso e repetiu as palavras da principal relações-públicas do jornal e do editor-chefe. O ‘Los Angeles Times’ citou a acusação, feita pelo governo, de que Rohter estaria a serviço do governo americano para desmoralizar Lula. Na abertura do texto, os dois jornalistas que fizeram a reportagem fazem um jogo de palavras (repetindo a palavra thin , que pode significar fino e magro). Referem-se a um governo que, acostumado a críticas de que é ‘magro na experiência, magro de idéias e magro de realizações’, mostrou ter ‘pele fina’ no episódio. O ‘Miami Herald’ deu a informação do pedido de hábeas-corpus impetrado pelo senador fluminense Sérgio Cabral (PMDB).

Na Grã-Bretanha, o ‘Times’ classificou os comentários de Rohter como gratuitos, mas sua correspondente no Brasil, Gabriella Gamini, disse que Lula é conhecido por sua admiração pela cachaça. O jornal criticou o que classifica como resultados lentos na política social do governo Lula.’

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‘A decisão do ministro do STJ’, copyright O Globo, 14/05/04

O ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Francisco Peçanha Martins, relator do pedido de hábeas-corpus para o jornalista do ‘New York Times’ Larry Rohter apresentado pelo senador Sérgio Cabral (PMDB-RJ), afirmou em sua decisão:

‘O Brasil é um Estado democrático de direito e o presidente da República contribuiu com intensa participação política para a instauração da democracia plena no país e se conduz com honra e dignidade.

‘A imprensa é um dos pilares fundamentais da democracia e ‘é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença’, nos precisos termos do artigo 5, inciso IX, da Constituição.

‘A imprensa’, disse Rui Barbosa, ‘é a vista da nação’ e ‘o jornalista às mais das vezes é isto, um refletor da luz que vem do público, dos sentimentos populares do meio que o cerca’. (‘In’ Laudelino Freire, Ruy, pág. 38, Ed. Casa de R.B. 1958 e Obras Completas, vol. XXIX, tomo V, pág. 186, respectivamente).

‘O fato é que o paciente, jornalista estrangeiro, teve cancelado o visto de permanência no país, por ter assinado reportagem dita leviana, mentirosa e ofensiva à honra do presidente da República Federativa do Brasil, publicada no ‘The New York Times’.

‘Poderia o ministro da Justiça fazê-lo?

‘O ato de concessão ou revogação de visto de permanência no país de estrangeiro, em tese, está subordinado aos interesses nacionais (art. 3 da Lei n 6.815/80). O visto é ato de soberania. Pergunto-me, porém, se uma vez concedido poderá ser revogado pelo fato do estrangeiro ter exercido um direito assegurado pela Constituição, qual o de externar a sua opinião no exercício de atividade jornalística, livre de quaisquer peias? Estaria tal ato administrativo a salvo do exame pelo Judiciário?

‘Neste caso penso que não. É que no Estado Democrático de Direito não se pode submeter a liberdade às razões de conveniência ou oportunidade da Administração. E aos estrangeiros, como aos brasileiros, a Constituição assegura direitos e garantias fundamentais descritos no art. 5 e seus incisos, dentre eles avultando a liberdade de expressão. E dúvidas não pode haver quanto ao direito de livre manifestação do pensamento (inciso IV) e da liberdade de expressão da atividade de comunicação. ‘Independentemente de censura ou licença’ (inciso IX).

‘Mas dos autos só constam alegações e notícias publicadas em jornais. Não acompanha a inicial a reprodução do ato administrativo e entendo necessário conhecer as razões que o determinaram.

‘Urge, porém, assegurar ao paciente, cujo pleito vejo revestido da fumaça de bom direito, a plena eficácia das garantias constitucionais, pelo que lhe defiro salvo-conduto até decisão do feito, nos termos do art. 201, IV, do RISTJ.

‘Oficie-se ao Exmo. senhor ministro de Estado da Justiça comunicando a decisão e requisitando informações no prazo de 72 (setenta e duas) horas.

‘Publique-se e intime-se.’’

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‘O melhor caminho’, copyright O Globo, 14/05/04

‘O PRESIDENTE Lula tem amplas razões pessoais para processar o correspondente Larry Rohter e o ‘New York Times’.

A REPORTAGEM de Rohter é lição de mau jornalismo: todos os entrevistados são adversários de Lula, nenhuma fonte isenta foi ouvida e a referência ao alcoolismo do pai do presidente é típica de um jornalismo marrom que o ‘Times’ não costuma praticar.

SÃO FALHAS graves. É lamentável que estejam dividindo a atenção da opinião pública com teorias politicamente paranóicas. Por exemplo, a tese de que a reportagem seria uma resposta dos EUA às posições brasileiras nas discussões sobre o comércio internacional.

SÓ MUITA má-fé ou excessiva ingenuidade pode justificar a teoria conspiratória que põe o ‘Times’ fazendo o jogo da Casa Branca. A independência do jornal é reconhecida universalmente; além disso, ele tem condenado, em sucessivos editoriais, o protecionismo comercial defendido pelo governo Bush.

O MELHOR caminho para o presidente é aproveitar a decisão da Justiça que revogou liminarmente a expulsão de Rohter e reformular as manifestações de sua justa indignação. Inclusive repudiando tolas teorias conspiratórias que sabotam a solidariedade internacional a que Lula tem direito.’

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‘Na ditadura, Lula opôs-se à expulsão de padre italiano’, copyright O Globo, 14/05/04

‘O hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva já se opôs publicamente à expulsão de um estrangeiro, durante a ditadura militar. Em 1980, quando o governo do general João Figueiredo decidiu expulsar o padre italiano Vito Miracapillo, o PT soltou nota de solidariedade ao sacerdote, opondo-se à decisão.

‘Está o PT muito preocupado com o fato de que, em um país de predominância cristã, já não se possa mais pregar e praticar o verdadeiro cristianismo’, diz a nota assinada pelo então presidente do partido, Luiz Inácio Lula da Silva.

A mensagem se solidarizava com ‘os prelados da Igreja Católica vítimas de uma campanha sistemática de agressão e ameaça, pelo fato de pregarem e promoverem a justiça social e a defesa dos direitos humanos’. O documento autografado pelo atual presidente da República chamou a expulsão de ‘uma nova prova dessa escalada de intolerância’ e ainda lamentou ‘ataques e violências verbais’ contra bispos como dom Paulo Evaristo Arns e dom Helder Câmara.

Padre foi pivô de conflito entre Igreja e militares

O padre Vito Miracapillo foi o pivô do maior conflito entre a ala progressista da Igreja e os governos militares iniciados em março de 1964. Pároco de Ribeirão (PE), ele recusou-se a celebrar uma missa que fazia parte das comemorações oficiais do 7 de Setembro em 1980, por considerar ‘que o Brasil não havia conquistado sua efetiva independência’. Sua expulsão foi pedida com base no artigo 106 da Lei dos Estrangeiros, que determina que ‘o estrangeiro admitido no território brasileiro não pode exercer atividade de natureza política nem se imiscuir, direta ou indiretamente, nos negócios públicos do Brasil’.

O pedido de expulsão foi feito pelo então ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel (hoje deputado federal do PP mineiro), e após uma batalha judicial no STF, o padre italiano deixou o Brasil, em 31 de outubro. Para sustentar a expulsão, o governo acusou Miracapillo de ‘insuflar trabalhadores rurais à invasão de terras’.

Políticos de vários partidos – até de apoio ao governo militar – protestaram à época, considerada a decisão arbitrária e politicamente equivocada. Em vão – o padre italiano foi expulso e só voltou ao país mais de 12 anos depois, em março de 1993 já na democracia, quando o presidente Itamar Franco revogou a decisão de Figueiredo.’


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"O repórter ‘Pac-Man’", copyright O Globo, 13/05/04


"Seus colegas correspondentes no Brasil lhe deram o apelido de ‘Pac-Man’, em alusão ao personagem do videojogo homônimo cujo apetite é insaciável. Mesmo antes da notícia de sua expulsão, jornalistas estrangeiros que trabalham no Brasil só tinham elogios para Larry Rohter.


Seu pai, o aposentado William Lawrence Rohter, disse ao GLOBO, por telefone, de Chicago, que não sabe de situação semelhante vivida pelo filho. Quando trabalhava para o ‘New York Times’ em Miami, a garagem da casa de Rohter foi atingida por tiros dados por cubanos exilados.


William Lawrence (Larry) Rohter Jr. escreve sobre América Latina há três décadas. Chefiou a sucursal do ‘New York Times’ na Cidade do México e ganhou, em 1998, o prêmio de jornalismo Maria Moors Cabot, conferido pela Universidade Columbia. No Brasil, Rohter recebeu o prêmio de correspondente estrangeiro da quinta edição do Prêmio Embratel, pela reportagem sobre queimadas na Amazônia.


Outras reportagens suas provocaram desmentidos de governos da América do Sul. Em 2002, o então embaixador brasileiro em Washington, Rubens Barbosa, reclamou de reportagem que associava exportações brasileiras a trabalho escravo. Na Argentina, uma reportagem sobre a suposta intenção separatista da Patagônia fez com que Rohter fosse acusado de defender interesses do governo americano. Ele também acusou o ex-presidente argentino Carlos Menem de ter recebido US$ 10 milhões para acobertar os autores do atentado que, em 1994, matou 85 pessoas num centro comunitário judeu.


A mulher de Rohter é brasileira, assim como seus filhos. O rapaz é músico e trabalha nos EUA. A filha está na universidade. Rohter começou no ‘New York Times’ e foi correspondente na China. No início dos anos 70, ele trabalhou no escritório da TV Globo em Nova York."