Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A complicada cidadania digital

Na semana passada milhares de sites saíram do ar ou bloquearam seu conteúdo com tarja preta. Nerds foram às ruas. “Este introvertido está extrovertendo para protestar contra a censura”, disse um manifestante em Nova York. Funcionou. Os políticos recuaram e as duas propostas de lei antipirataria que seriam votadas nessa semana, a Sopa (Stop Online Piracy Act) e a Pipa (Protect Intelectual Property Act), foram suspensas da pauta do Congresso americano. Mas a discussão de como legislar sobre os excessos da internet sem apelar para medidas draconianas continuou na Europa, com protestos na Polônia contra a Acta (Anti-Counterfeiting Trade Agreement), lei irmã das propostas americanas.

A jornalista americana Rebecca MacKinnon comemorou a paralisação das leis nos Estados Unidos, semelhantes, segundo ela, aos mecanismos usados pela China para bloquear a internet. Mas não é porque dessa vez usuários e empresas deram as mãos que devemos eleger as gigantes da internet como nossas “soberanas benevolentes”, pondera Rebecca, pesquisadora do New American Foundation. Em outras batalhas, por exemplo, pela proteção à privacidade, à identidade e à liberdade de expressão, os interesses dos usuários e os de “Facebooquistão e Googledom” podem bem estar em lados opostos. Na quinta-feira, o Twitter anunciou que começará a restringir o conteúdo dos tweets em alguns países. “À medida que continuarmos a crescer internacionalmente, entraremos em países que têm ideias diferentes quanto aos contornos da livre expressão”, justificou a empresa.

É justamente nesse terreno escorregadio que Rebecca diz ser necessário transportar o que já fazemos no mundo físico para o digital. “Precisamos entender como a tecnologia funciona para protestar contra abusos de poder e barganhar diretamente com as empresas.” A autora de Consent of the Networked (Basic Books), com lançamento previsto nos EUA no fim do mês, entende que chegou o momento “carta magna” na história da internet. “Há 800 anos os barões anglo-saxões decidiram que a soberania inquestionável não funcionava mais e propuseram regras que mesmo reis tinham de seguir. Agora precisamos chegar ao consenso sobre que princípios vão forjar nossa cidadania digital”.

Quais os principais problemas das leis de direito autoral para a internet discutidas nos Estados Unidos e na Europa?

Rebecca MacKinnon – Até agora, as soluções disponíveis são pouco equilibradas. Os interesses de uma indústria de lobby poderoso e modelo de negócios antiquado estãosuper-representados no texto das leis. Precisamos balancear as preocupações das empresas de entretenimento, criação e software com a visão mais ampla da sociedade, antes e não depois de as leis serem escritas. Se isso tivesse sido feito, não estaríamos perdendo tempo em Washington com propostas de leis absurdas, desprovidas de conhecimento técnico. A Sopa previa um filtro de DNS (sigla em inglês para Sistema de Nomes de Domínio), o que reverteria os esforços de engenheiros que há uma década trabalham para transformar a internet num lugar mais seguro. Isso criaria uma lista negra de sites a serem bloqueados por provedores, serviços de busca, empresas de publicidade e pagamento online. Sopa, Pipa e Acta responsabilizam os provedores pelo conteúdo que os usuários estão compartilhando em suas plataformas. O que gera a expectativa de que os provedores passem a monitorar e, em alguns casos, censurar os usuários a fim de evitar problemas judiciais. É exatamente o mesmo mecanismo usado na China para delegar ao setor privado o ônus de vigiar os usuários da rede. Por causa de medidas parecidas, o primo chinês do Twitter, Weibo, contrata milhares de funcionários para monitorar o tempo todo o conteúdo do usuário. A intenção das leis americanas não é a mesma do bloqueio chinês, um sistema nacional de censura política da rede, mas o efeito prático pode ser parecido.

Qual a melhor abordagem para proteger a propriedade intelectual sem desrespeitar os direitos do usuário da internet?

R.M. – Quando se trata de desenhar qualquer lei para regular a internet, é preciso alguma compensação. Para se ter uma cidade totalmente livre de criminalidade, seria necessário colocar policiais em cada esquina. Aceitamos a força policial como legítima protetora de nossa segurança, mas nem por isso os policiais podem entrar em nossas casas a qualquer hora, para fuçar qualquer cômodo, sem motivo. Do mesmo modo, na internet, para combater crimes, às vezes mais sérios que o roubo intelectual, como ciberataques, pedofilia e pornografia infantil, não podemos permitir abusos inaceitáveis contra nossas liberdades individuais. O passo adiante na questão da proteção aos direitos autorais só pode ser dado se especialistas em tecnologia, segurança na internet e direitos humanos forem consultados no processo de redação das leis. Mas a solução definitiva vai passar, necessariamente, pela evolução das indústrias de criação e entretenimento, de modo a tornar seus modelos de negócios mais compatíveis com a tecnologia.

A revista Wireddisse que a pirataria é um ‘custo inevitável’ da economia atual. É possível uma internet sem roubo de direito autoral?

R.M. – As pessoas estão transferindo expectativas para a internet incompatíveis com o modo como a sociedade funciona. Uma internet sem pirataria é como uma São Paulo sem crime. O argumento da Wired é que estamos numa nova era, em que para fazer dinheiro é preciso abrir mão do total controle sobre o produto e aceitar compartilhar conteúdo de graça, achando outras formar de fazer dinheiro, associando novos serviços e experiências ao produto. Empresas novas estão testando esse mercado e criando alternativas. Tem gente que acha que não devemos ter nenhum tipo de lei de direito autoral. Eu discordo. Acabo de escrever um livro que vai ser publicado por uma editora tradicional. Essa editora têm funcionários que trabalharam duro e merecem ser pagos. Fazer tudo de graça não é uma opção. Mas para proteger minha propriedade intelectual não devemos passar leis que desrespeitam outros direitos.

O teórico de direitos digitais Yochai Benkler questionou se a vitória sobre a Sopa e Pipa foi dos gigantes da internet, que usaram seu predomínio na rede para reunir apoio contra leis prejudiciais ao setor, ou dos usuários, que pressionaram sites a aderir ao blecaute. De quem foi a vitória?

R.M. – Foi um desses casos em que os interesses, felizmente, se alinharam. As preocupações da indústria da internet, descontente com uma legislação ruim para seu negócio, coincidiram com as da sociedade civil, preocupada com as ameaças para a liberdade de expressão. Ativistas, criadores independentes de conteúdo e wikipedianos não estão preocupados se Google ou Facebook sobreviverão, E sim com o fato de que Sopa e Pipa podem transformar os provedores de plataformas em policiais da internet. A aliança entre usuários e empresas não existe quando se discute a neutralidade na rede, por exemplo. A sociedade civil acha que a neutralidade é importante para permitir a atividade não comercial e independente, em plataformas públicas. As empresas não querem diminuir seu domínio, é claro. Movimentos sociais na internet se preocupam em como o Google coleta dados pessoais e os distribui para a publicidade dirigida. Ou como o Facebook estabelece suas políticas de identidade e privacidade. É pouco sábio pensar que, porque demos as mãos na batalha contra Sopa e Pipa, as empresas de internet serão defensores de nossos direitos na internet.

A Comissão Europeia começou a discutir novas leis de privacidade. O Facebook reagiu a um dispositivo chamado ‘direito de ser esquecido na internet’, pois, segundo a empresa, ele dificultaria a inovação de seus negócios, mesmo argumento usado contra Sopa e Pipa. Qual sua opinião?

R.M. – O direito de ser esquecido, que obriga as empresas de internet a deletar dados pessoais que você não quer online, pode ter duas implicações. Quem cresceu com a internet fazendo parte de sua vida tem razão para se preocupar com o vídeo embaraçoso dos seus 15 anos ou com aquelas fotos reveladoras. As pessoas têm o direito de exigir que companhias removam o conteúdo. Em outras situações esse pedido não é legítimo. Um político pode ter sido fotografado fazendo ou dizendo algo negativo que tenha implicações éticas e relevantes para a escolha do eleitor. O Facebook tem um visão extrema e advoga pela transparência radical. Acredita que todo mundo tem que ser aberto em relação a tudo, pois quando todos estivermos acostumados a detalhar a vida online, o medo, o desconforto e o estigma provocados por aquelas fotos constrangedoras irão embora, já que todos terão fotos assim na internet. Não compartilho essa visão. As pessoas têm o direito de controlar seus dados, mas é um argumento escorregadio, porque o direito de ser esquecido pode se transformar no direito de esconder uma transgressão. A Europa costuma dar mais ênfase a leis de proteção à privacidade que os Estados Unidos, onde grande parte das grandes empresas de internet estão sediadas. Na Alemanha, as pessoas ficaram um tanto traumatizadas com o fato de o Google Earth e o Street View mostrarem imagens detalhadas de seus quintais. Lá, a ferramenta foi duramente criticada como excessivamente invasiva. As companhias precisam respeitar essas diferenças culturais. Os engenheiros do Vale do Silício não podem só acordar um dia e pensar “ei, vamos criar algo legal hoje”, sem refletir sobre as possíveis consequências dessas ferramentas e do modo como podem violar os direitos e a confiança dos usuários.

Seu livro sugere ser este o momento de uma ‘nova carta magna’. Como esse contrato social da internet está sendo negociado?

R.M. – Há 800 anos os barões anglo-saxões decidiram que a soberania inquestionável não funcionava mais e propuseram regras que mesmo reis tinham que seguir. Escreveram a Carta Magna. Centenas de anos depois, pensadores políticos amadureceram a ideia e estabeleceram o consenso dos governados, um novo contrato social para um governo representativo dos interesses da maioria. Precisamos definir agora quais os princípios do consenso da internet. Apple, Facebook, Twitter e Google estão virando impérios globais. Essas empresas criam leis privadas, que mudam de uma hora para outra, para governar as plataformas que usamos. Na Primavera Árabe vimos o poder político que essas plataformas podem ter ao desafiar um líder soberano nacional. O problema é que essas empresas se autointitulam soberanas benevolentes do mundo digital sem, contudo, procurar o consentimento dos cidadãos digitais, dos “netizens”. Em paralelo, vemos que um Estado-nação não é suficiente para legislar sobre o mundo global da internet. Se o Congresso americano aprovar a Sopa, ou uma versão modificada da lei, para proteger os interesses dos americanos, ou melhor, de um setor da indústria americana, isso vai afetar a vida dos usuários da internet em todo o mundo. Não só daqueles que votaram nos congressistas americanos. O consenso nacional não funciona mais quando se trata de internet, mas não estou propondo um governo global. Estamos num momento de “carta magna” do mundo digital, não de Revolução Americana e da redação de uma Constituição. Só agora começamos a perceber que o antigo sistema não funciona mais. Não chegamos ao ponto da história em que sabemos qual será o novo modelo de governança. Para chegar lá, será preciso maior ativismo na internet. As pessoas precisam se engajar nas discussões sobre como governos e grandes empresas estão esculpindo nossas vidas digitais.

Qual o papel do setor privado na censura da rede e como responsabilizar as corporações pelos abusos de poder?

R.M. – Há muitas formas de fazer isso. Na Europa, as pessoas estão recorrendo aos governos para regular a ação das empresas. Nem sempre esse é o modelo mais eficiente. As pessoas podem se organizar e barganhar diretamente com as empresas. Começamos a ver usuários do Google +, a rede social do Google, pressionando a empresa a mudar a política de identidade e permitir que você use um apelido. Isso é extremamente importante em países com regimes opressores. O Facebook ainda não está respondendo a isso. Outra forma de pressionar as empresas é pelo controle acionário. Aqueles de nós que investiram em fundos e ações precisam se perguntar, assim como já se faz com a questão ambiental ou o trabalho escravo, se essa ou aquela empresa é responsável no mundo digital e respeita os direitos de liberdade de expressão de seus usuários. No mundo físico estamos acostumados a pensar que, se eu não gosto da maneira como meu país está sendo governado, há coisas que posso fazer, como eleitor, manifestante, líder comunitário. As pessoas precisam se educar sobre como a tecnologia funciona, como os dados que pomos na rede são usados, e se envolver mais nas discussões fundamentais que vão moldar nossa cidadania digital.

Vint Cert, reconhecido por alguns como o pai da internet por ter criado o modelo TCP/IP, disse que ‘internet não é um direito humano’. Você concorda?

R.M. – Acho que Vint foi infeliz em sua opinião. Tomado em sentido literal, ter uma conexão de banda larga de graça pode não ser um direito fundamental do homem. Mas é bastante evidente que, num mundo como o nosso, se um cidadão não tem acesso a uma internet sem filtro e relativamente eficiente, ele estará em desvantagem. O acesso à internet se tornou um pré-requisito para que alguns de nossos direitos humanos sejam exercidos e expandidos. Acho que Vint não discorda disso, mas sua fala literal é prejudicial num momento em que se luta contra o monopólio de provedores de internet e tentando conseguir financiamento público para que comunidades pobres ou remotas conectadas possam participar política e economicamente da sociedade global.

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[Carolina Rossetti, do Estado de S.Paulo]