Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um voo geral

Na quarta-feira (18/1), diversos sites, blogs e coletivos aderiram ao #SOPABlackout da forma que foi possível. O ideal era que o site ficasse fora do ar por 12h (de 8h as 20h), para que as pessoas sentissem como seria deixar de ter acesso ao site caso ele seja bloqueado pelo Sopa [Stop Online Piracy Act (EUA)]. Era o objetivo mostrar às autoridades e grandes grupos econômicos a posição da sociedade (não só brasileira) em relação ao Sopa e demais práticas, normas, medidas judiciais e leis que ameaçam a liberdade na Internet, e aproveitar a oportunidade para expor as ameaças locais (ver aqui).

Muitos entendem que o problema central é a pirataria, até por conta do próprio título da lei estadunidense (ver aqui). Porém, este não é o problema central. O fundamental, talvez não tão visível e declarado, é que está em jogo a manutenção tal qual se tem hoje e pela qual se brigou muito, dos direitos civis como liberdade de expressão, privacidade, direito de acesso à informação e à cultura.

Está em discussão, quem sabe num terceiro plano – aquele dos lobbies, por exemplo – todo um modelo de negócio de uma indústria que se move a partir do pressuposto do aprisionamento do conhecimento, de sua dominação, da retenção dos “direitos” de propriedade intelectual para consequente obtenção de gigantescos lucros.

Temos agora uma discussão que envolve política, economia, tecnologia e ética. A indústria argumenta a favor da sua inércia, muitas vezes num tom de quase chantagem, ao pôr em jogo os empregos de milhões de trabalhadores. Fazem-se campanhas maciças contra pirataria – “se vc copiar um CD vc está roubando e alimentado o crime organizado!” Mas ninguém faz campanhas maciças com slogans do tipo: “Você deveria ter acesso à cultura, mas não tem”, “É um direito seu a privacidade, seus dados pessoais devem ser confidenciais e qualquer empresa (ou site) que use seu perfil para auferir lucros sem seu consentimento está infringindo as leis”, “Você deveria ter acesso a dados públicos, afinal, os políticos são servidores públicos” ou mesmo “Sua liberdade de expressão é um direito constitucional e ninguém, nem mesmo o governo, pode tirar isso de você”.

Para que cidadãos abram mão de seus direitos

Essas campanhas podem ser perigosas, conscientizar e ajudar a discernir que o indivíduo não deve ser controlado pelo Estado, e sim, o Estado ser transparente para ser controlado pelos indivíduos. Apesar de démodé, ainda é cabível a distinção do público e do privado, dos direitos coletivos e dos direitos individuais, pois ainda há quem ache que se devam resolver os problemas públicos como nas empresas privadas – um equívoco. O interesse público é diferente e deve predominar sobre os interesses privados e o compartilhamento de informações e conhecimento só corobora para o interesse público, ao contrário do que grande grupos econômicos de origem particular querem nos fazer pensar.

O Preventing Real Online Threats to Economic Creativity and Theft of Intellectual Property Act (Pipa) [Preventing Real Online Threats to Economic Creativity and Theft of Intellectual Property Act of 2011 (EUA)] é um projeto de lei com o objetivo de dar ao governo dos EUA e aos detentores de copyright ferramentas para conter o acesso a “sites desonestos dedicado a violação ou falsificação de mercadorias”, especialmente aqueles hospedados fora os EUA. O projeto, apresentado no Senado em maio/2011, é uma repaginação do Combating Online Infringement and Counterfeits Act (Coica) [Combating Online Infringement and Counterfeits Act (EUA)], que não conseguiu passar em 2010. A versão da Câmara do projeto de lei semelhante, Stop Online Piracy Act (Sopa) foi introduzida em outubro/ 2011 (ver aqui).

O Sopa é um projeto de lei estadunidense que prevê instrumentos para bloquear os serviços de publicidade e pagamento online de tudo que estiver sob a jurisdição dos EUA. Isso poderá ser feito a título de averiguação, ou seja, apenas com base em uma denúncia de suspeita e, assim, afetará profundamente a liberdade de expressão na internet. Não há como negar que há a expectativa de que os sites, para atender à legislação e se precaver juridicamente, acabem antecipadamente praticando autocensura. Assim, acaba-se utilizando algo bastante comum ultimamente nos EUA que é inspirar o medo para que os próprios cidadãos abram mão de seus direitos, para que eles próprios pratiquem autocensura, aliviando o papel do Estado como promotor de medidas excessivas “que se forem tomadas, será por um bem maior” e por vezes, inexistente.

Combate ao streaming ilegal

Além dessa tensão entre o Estado, dominado pelos interesses setoriais e lobistas, e o indivíduo, deslumbrado pelo imenso mundo virtual, o Sopa acaba sendo um instrumento de pressão internacional, estimulando que outros países adotem legislações semelhantes. Além disso, os EUA concentram muitos dos serviços e sites que utilizamos diariamente (como Wikipedia, YouTube, Facebook, WordPress, Google, Gmail, Twitter, entre outros) e talvez por isso a mobilização em torno do bloqueio ao Sopa e ao Pipa tenha sido tão grande – já tamanha mobilização não ocorreu com a Lei Sinde, na Espanha, a Hadopi, na França ou o AI5-digital no Brasil.

Na Espanha, sobre o mesmo tema temos a Ley de Economia Sostenible, mais conhecida como a Lei Sinde [Lei Sinde (Espanha): link 1, link 2, link 3], por conta da ministra da Cultura Ángeles González-Sinde. De acordo com o jornal espanhol El País, esta legislação permite que o governo elimine sites e páginas da web apenas pela recomendação de uma comissão do Ministério da Cultura, composta parcialmente por representantes das editoras. Isto não é para impedir que alguém distribua material coberto por copyright porque para isso já existia na legislação. É para apagar os sites em que as pessoas discutem onde se pode encontrar esse material. Outro aspecto da lei Sinde é beneficiar apenas os distribuidores. Tirar páginas da web não ajuda os autores, muitos dos quais se manifestaram contra esta lei. A lei Sinde resultou da pressão dos EUA sobre o governo espanhol, somada à dos lobbies da indústria do copyright, e não reflete a vontade do eleitorado [El País].

Na França, há um órgão previsto com a competência de controlar e regular o acesso à internet e estimular o cumprimento das leis de direitos autoral, a Hadopi (Haut Autorité pour la Diffusion des Oeuvres et la Protection des Droits sur l’Internet) [Haute Autorité pour la diffusion des œuvres et la protection des droits sur internet; (o site http://www.hadopi.fr/está atualmente em manutenção “Le site est actuellement en maintenance, merci de votre compréhension)]. A Hadopi baseia-se no mecanismo batizado de resposta graduada, que tata-se de um mecanismo de desincentivo em três etapas [Lei Hadopi (França): link 1, link 2, link 3]. Após uma primeira recusa, em abril/2009 a Hadopi foi aprovada, mas em junho/2009 o Conselho Constitucional declarou a parte principal do projeto de lei inconstitucional. No entanto, essa disputa judicial não foi suficiente para fazer Sarkozy desistir: em nov/2011 ele declarou em discurso no Fórum de Avignon, que reuniu os Ministros da Cultura dos países do G-8 e G-20, ter planos de reformular as competências da Hadopi para combater também o streaming ilegal (ver aqui).

Liberdade de expressão e privacidade

Mas essa cruzada global com pretexto de combate à pirataria conta com algumas vozes dissonantes. O Conselho Federal suíço manifestou antipatia pela Hadopi em seu recente relatório sobre uso ilícito de obras na internet [Conselho Federal Suíço]. Para o governo suíço as medidas repressivas podem ter um impacto negativo na produção cultural. E é a indústria do entretenimento que deve adequar-se às novas demandas impostas pela Internet e não os usuários/consumidores. A ONU declarou recentemente que considera o corte ao acesso à internet como “uma violação artigo 19, parágrafo 3 º, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos”, independentemente da justificativa e incluindo violação de direitos de propriedade intelectuais [ONU afimra que acesso à internet é um direito humano]. Estudos diversos apontam também que o peer to peer não fragiliza o mercado, muito pelo contrário, o fortalece pois quem partilha conteúdo na internet são também os maiores consumidores culturais [Estudo do governo holandês – peer to peere artigos sobre pirataria e sua influência na economia].

Esse movimento mundial de querer controlar o fluxo de informações na internet também chegou à legislação brasileira, trata-se do projeto de lei do apresentado pela última vez pelo deputado Eduardo Azeredo que diz tratar de cibercrimes [PL 84/99 – Projeto de lei de cibercrimes]. Também conhecido pelo apelido de AI-5 digital, o projeto intenta autorizar aplicação de penalidades criminais para atividades como troca de arquivos, comunicações peer-to-peer, ou mesmo a responsabilização de provedores de internet(ISPs) e sites como o YouTube e Flickr por eventual conteúdos ilegal postados por seus usuários. Além disso, este projeto de decreto lei prevê que os ISPs, serviços de correio eletrônico e outros intermediários da internet sejam obrigados a coletar e reter dados pessoais dos usuários por extensos períodos de tempo. Isso pode acaber crimalizando práticas cotidianas nossas e mudar os rumos das políticas digitais progressistas no Brasil.

Lideranças da sociedade civil, defensores dos direitos digitais e mesma a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania apontaram pontos graves no PL 84/99 que podem interferir com nossos direitos civis, liberdade de expressão e privacidade.

Reações e protestos

Vale destacar os seguintes pontos (ver aqui e aqui):

>> Criminalização da violação de uma “expressa restrição de acesso” a um computador, rede ou serviço online – sendo a expressão usada tão ampla, seria possível criminalizar as violações dos “termos de serviços” de sites e outros serviços online.

>> Criminalização da obtenção ou transferência de dados de um sistema informatizado ou rede protegida por “expressa restrição de acesso” – isto pode significar que compartilhar e transferir dados de um dispositivo ou sistema para outro pode tornar-se crime.

>> Geração de consequências legais para intermediários – ISPs, provedores de hospedagem, ou plataformas para conteúdo gerado pelos usuários (web 2.0) – que facilitam, inconscientemente e não intencionalmente, a transferência “não autorizada” de dados ou a difusão de código malicioso.

>> Obrigação de que intermediários retenham dados do usuário (inclusive logs) para fins legais – medida que fere o direito à privacidade das pessoas.

>> Atendimento a interesses da indústria cultural dos EUA – o que fere o princípio de soberania e autodeterminação dos povos.

>> Alinhamento à legislação brasileira à Convenção de Budapeste – porém a a adoção dessa norma internacional já foi rejeitada pelo Ministério da Relações Exteriores, porque o Brasil não não foi convidado a participar de sua elaboração e nem convidado para assinar o tratado [Convenção de Budapeste e Convenção de Budapeste considerada a pior lei do mundo de regulação da Internet].

>> A guarda de dados não ajuda o combate ao cibercrimes – autoridades alemãs constataram isso e seus tribunais anularam a lei de retenção de dados em 2010 [http://www.computerworld.com.pt/2011/01/27/retencao-de-dados-nao-ajuda-a-combater-crime/ e http://www.edri.org/edrigram/number9.12/germany-police-data-retention].

Após várias tentativas, reações e protestos, no fim do ano passado (nov/2011) o projeto foi retirado da pauta de votação na casa legislativa (ver aqui).

Intenção de censura digital

Trégua momentânea: Sopa e Pipa barrados e AI-5 digital retirado de pauta. Mas… por enquanto, é bom salientar (ver aqui).

É preciso manter-se atento para que não ocorra como com a Lei Sinde que aparentemente havia sido brecada por ativistas espanhóis, mas foi aprovada logo no início do novo mandato sob grande pressão dos EUA. Ou como ocorreu com a Hadopi, na França, cujo projeto de lei foi rejeitado pela Assembléia Nacional Francesa em abril/2009 e, reconsiderado a pedido do governo francês, foi aprovado em maio/2009 tanto pela Assembleia quanto pelo Senado franceses (ver aqui). No Brasil, a intenção da censura digital nos ronda há mais de dez anos. Desta vez, os EUA, que têm uma predileção por dizer ao mundo como deve-se portar, agora sofre influência do mundo todo na aprovação de suas próprias leis. Colheres na sopa americana – é o custo do império.

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[Haydée Svab é técnica em edificações, São Paulo, SP]