Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Luiz Garcia

‘A formação de opinião política, desde que a mídia passou a ter mais importância do que comícios e carreatas, faz-se em palavras e imagens. Às vezes, juntas; em outras ocasiões, mais importa o que se lê – ou o que se vê.

Nos Estados Unidos, imagem e palavra impressa disputam a condição de fator politicamente mais influente palmo a palmo. A internet fica fora da discussão não por desimportância, mas por ser forma híbrida; tanto oferece palavras encadeadas como imagens em seqüência.

A disputa por influência depende do assunto. Os exemplos clássicos (desconfio que já os citei há algum tempo; se aconteceu, ponham por favor na conta da coerência inabalável do autor) são Watergate e a guerra do Vietnã. O primeiro é o escândalo das fitas gravadas pelo presidente Richard Nixon, que revelavam intrincado sistema de corrupção e abuso de poder.

Este era um caso tão emaranhado que só jornais e revistas podiam traduzi-lo para a opinião pública: narrativas e explicações eram complexas e longas. Pode-se dizer que foi principalmente a influência da mídia impressa (com o ‘Washington Post’ à frente) que forçou Nixon a renunciar. O dia-a-dia da crise era complicado demais para ter cada capítulo contado em cinco minutos na TV.

Na guerra do Vietnã, o que produziu a crescente onda de condenação à posição americana foi a cobertura de TV. As imagens diárias, em cores sangrentas, de combates e da morte de soldados americanos e mulheres e crianças vietnamitas emocionaram e indignaram a opinião pública a ponto de levar o presidente Lyndon Johnson a desistir de tentar a reeleição. Quem consegue esquecer a menininha vietnamita correndo nua por uma estrada, toda queimada por napalm?

A esta altura, a próxima disputa pela Presidência dos Estados Unidos está com jeito de ser decidida por imagens.

O projeto Bush para o Iraque não vai bem das pernas, por motivos conhecidos e óbvios. Mas por enquanto a situação econômica doméstica é confortável, e o horror causado pelo 11 de Setembro ainda rende dividendos políticos. Assim, até pouco tempo atrás Bush tinha ligeira vantagem sobre o democrata John Kerry.

Imagens podem mudar esse quadro. As cenas de tortura e humilhação de prisioneiros iraquianos estão roubando de Bush e do secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, a armadura de prata e o cavalo branco.

Faltam seis meses para as eleições. Pode ser tempo suficiente para as imagens perderem nitidez na memória dos eleitores. Mas talvez não: elas são muitas, e a cada dia aparecem outras.

Nas fotos, as figuras das vítimas horrorizam. Mas já vimos vítimas de violência irracional antes. O pior talvez sejam as figuras dos torturadores.

O que pensa o eleitor americano do projeto político que levou aquela mocinha bonitinha a sorrir, toda faceira, para a câmera, enquanto torturava, física e moralmente, um prisioneiro despido?

Fotos como essa, e são muitas, diz o próprio Rumsfeld, mexem com o eleitorado. É possível que fiquem em sua memória até novembro. E o levem a repudiar quem quer que tenha tido alguma coisa a ver com a fabricação do sorriso, catita e horrendo, da jovem torturadora.’



Contardo Calligaris

‘As fotografias dos presos iraquianos’, copyright Folha de S. Paulo, 13/05/04

‘Na capa da Folha de sexta passada e nos jornais do mundo inteiro: a soldado americana Lynndie England segurando a tira que mantém um iraquiano, nu e rastejante, na coleira.

O governo americano anunciou que, infelizmente, o conjunto dos documentos sobre a tortura na prisão de Abu Ghraib contém coisas ‘piores’, em foto e em vídeo.

A ‘New Yorker’ publicou a fotografia de um iraquiano nu ameaçado por dois cachorros (capa da Folha de segunda-feira) e descreveu outra, em que aparece um preso ensangüentado. Mas, ao que parece, essas imagens são exceções.

Pelo que se sabe hoje (terça-feira, quando encerro esta coluna), as fotografias que veremos não são imagens de tortura física, mutilação ou assassinato. A galeria dos horrores é no mesmo tom das fotos da semana passada. Só para lembrar: além de Lynndie England com o preso na coleira, Lynndie e Charles Graner (seu companheiro de cama) triunfantes sobre um amontoado de iraquianos nus numa suruba forçada, Lynndie rindo enquanto aponta para o pênis de um preso, outro preso nu encapuzado com uma calcinha e por aí vai.

Segunda à noite, aliás, a CNN informou que, entre as novidades, se destacam presos forçados a simular sodomia e um ato sexual entre soldados americanos.

Apesar de tudo isso, a mídia, quase unânime, fala genericamente de violência e abuso; esquece pudicamente que as imagens são intragáveis por serem FOTOGRAFIAS ERÓTICAS.

Essas maiúsculas respondem ao esforço em curso para que desviemos o olhar do óbvio erotismo das fotografias da semana passada. Dois exemplos.

À esquerda, Robert Fisk (Folha de 9 de maio) dá prova de uma ingenuidade que beira a idiotice, perguntando, sério: quem treinou Lynndie e Charles, quem lhes ensinou essas práticas? Ele vê nos atos fotografados a prova evidente de que torturadores profissionais da CIA presidiram os interrogatórios. Mas de quais interrogatórios ele está falando? Será que Robert Fisk não vê que, nas fotos da semana passada, as humilhações impostas aos presos não têm outra finalidade senão o gozo de Lynndie, Charles e seus cúmplices (da CIA ou não)? Será que Robert Fisk nunca entrou numa ‘sex shop’? Será, em suma, que ele não percebe que as fotografias reproduzem a banalidade do repertório sadomasoquista? Será que não se dá conta de que a foto de Lynndie de uniforme e botas, com o preso na coleira, poderia ser, assim como está, o anúncio de uma ‘dominatrix’?

À direita (também na Folha de 9 de maio), Gerald Baker declara que a ‘depravação’ de Lynndie e Charles ‘é tão difícil de compreender quanto é abominável’. Abominável não há dúvida (por ser imposta aos presos); mas ‘difícil de compreender’? Como é possível, quando o sadomasoquismo integra o jogo sexual da metade (conto por baixo) dos casais do mundo? Qual é a surpresa?

Por que Fisk faz de conta que não percebe o erotismo das imagens? Por que Baker se apressa a declarar que elas manifestam um desvio patológico extremo?

Parece que, para ambos, a trivialidade que se trata de negar é a mesma que foi revelada pelo marquês de Sade: na modernidade, O EXERCÍCIO DO PODER É ERÓTICO. Incômodo, não é?

O presidente Bush disse que achou as imagens de Lynndie e Charles ‘sickening’, nauseabundas. Acredito. Mas, se ele ficou com vontade de vomitar, é porque as imagens devem ter-lhe lembrado, justamente, que o poder é uma fonte de gozo, sempre: goza-se com um preso na coleira, assim como se goza ordenando que comece um bombardeio ou que as tropas avancem.

Não existem motivos nobres que possam eliminar a parte de gozo que acompanha o exercício do poder. Para nós, o poder é sempre erótico, e o erotismo é sempre atravessado pelo jogo do poder. Quem não quer saber disso se condena a um uso louco do poder, inocentado por suas pretensas melhores intenções.

Se não reprimirem o erotismo que explode na cara de quem contempla as imagens da semana passada, talvez, desta vez, os americanos consigam inventar um uso mais complexo (e, por que não, mais envergonhado) de seu poder. Se isso acontecer, agradeçam a Lynndie e Charles.

Para complementar:

1) A imprensa americana não pára de contrapor duas mulheres soldados: Lynndie England, a abominável, e Jessica Lynch, que foi ferida, presa pelos iraquianos e liberada por um comando americano. Aposto que as duas receberão (para Jessica já é o caso) cartas com juras de amor e propostas de casamento. Muitos, como o presidente Bush, acharão ‘sickening’ (nauseabundos) os homens que implorarão a Lynndie para que ela os amarre na coleira. O problema é que esses muitos não querem saber o seguinte: aqueles que escreveram para Jessica, por traz das promessas de carinho e flores (as famosas melhores intenções), são provavelmente levados pela fantasia de possuir o corpo da jovem como eles imaginam que foi possuído e estuprado pelos iraquianos que a prenderam (os quais, aliás, na ocasião, parece que se comportaram decentemente).

2) Domingo à noite, fiz uma pesquisa na internet. Em menos de duas horas encontrei o que procurava. Nas salas de bate-papo abertas pelos assinantes de um grande provedor americano, seção ‘Special Interests’, numa sala cujo título convidativo era ‘Squeeze my balls’ (aperte meus testículos), lá estava: alguém se apresentava como uma dominadora e usava, como ‘nick’ (pseudônimo), numa palavra só, ‘LynndieEngland’.

Não acabei, a coluna continua na semana que vem, salvo imprevistos.’



Rafael Cariello

‘CBS exibe novo vídeo com mais casos violentos’, copyright Folha de S. Paulo, 13/05/04

‘O programa ‘60 Minutes’, da rede de TV CBS, o primeiro a revelar as fotos de tortura na prisão de Abu Ghraib, perto de Bagdá, exibiu ontem novas imagens e relatos de maus-tratos a prisioneiros em outra prisão no Iraque.

Um vídeo gravado por uma soldada americana na prisão de Camp Bucca (sul) mostra, segundo o apresentador Dan Rather, ‘uma atitude em relação aos iraquianos’. ‘Dois prisioneiros já morreram, mas quem se importa? São dois a menos com quem eu me preocupar’, diz a integrante do Exército enquanto grava o vídeo -seu nome não foi revelado.

‘Hoje atiramos em dois prisioneiros. Um foi atingido no peito por agitar um bastão contra nós. Outro foi atingido no braço. Não sabemos se aquele que atingimos no peito já está morto.’

O apresentador também entrevistou dois militares afastados do Exército por supostos maus-tratos em Camp Bucca. Um deles, Lisa Girman, acusa seus superiores de se ausentarem durante uma revolta dos prisioneiros, deixando a situação -sem comando- a cargo dos soldados.

Girman diz que, entre os motivos da revolta, estava o péssimo tratamento médico oferecido aos prisioneiros. Seu colega Tim Canjar afirma ter tido que vigiar sozinho mais de 500 prisioneiros iraquianos.

Segundo a CBS, as famílias de ambos informaram assessores do secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, sobre os relatos feitos por seus parentes no Iraque, mas não obtiveram respostas.

A CBS também entrevistou Lynndie England, a militar que aparece nas fotos de tortura sorrindo e fumando ao lado dos torturados. Ela disse que recebeu ordens para fazer o que fez. ‘Nos diziam: ‘Tenham certeza de eles estejam amolecidos [para o interrogatório]’.’’



Argemiro Ferreira

‘Choque de realidade: o escândalo da tortura’, copyright Tribuna da Imprensa, 11/05/04

‘O americano comum, que em geral acompanha sem muita atenção o noticiário da TV e mal lê os jornais, custou a perceber a dimensão do escândalo das atrocidades praticadas por soldados dos EUA na prisão de Abu Ghraib. Mas a esta altura já ficou claro o desconforto das pessoas neste país. E as pesquisas mostram a queda no apoio da opinião pública interna à própria decisão de ir à guerra.

‘No passado houve o massacre de My Lai no Vietnã. E até em muitos filmes, depois, vimos as atrocidades daquela guerra. Sempre achei que eram casos isolados. Agora começo a duvidar’, disse-me um suburbano da área metropolitana de Nova York. Essa região, liberal, não reflete a tendência da maioria. Isso é privilégio do meio-oeste e do sul. São mais conservadores e também mais patriotas.

Pesquisa feita pela rede de televisão ABC em seguida à divulgação das fotos de Abu Ghraib e das primeiras explicações do governo Bush constatou desapontamento entre os americanos. Mostrou ainda a divisão no país: 44% das pessoas ouvidas disseram que as autoridades tentam realmente investigar o que houve; mas 43% estão convencidas de que elas buscam, ao contrário, acobertar os fatos.

O fim da histeria patrioteira

A grande maioria dos americanos ainda acha que o governo de Washington estava certo ao atacar o Iraque, mesmo não tendo encontrado as célebres armas de destruição em massa e nem prova de conexão entre o regime de Saddam Hussein, não religioso, e o terrorismo fundamentalista islâmico de Osama bin Laden, abertamente hostil à ditadura derrubada pelos EUA.

Não só eram falsos os pretextos invocados para a guerra. Agora a tortura desmente que se tenta levar democracia ao Iraque (com atrocidades?). Apesar do grande esforço dos americanos para acreditar na inocência dos soldados, as imagens não combinam com os sentimentos patrióticos. E os guardas da prisão parecem pessoas normais, jovens iguais a tantos americanos típicos que vêem TV e adoram hambúrguer, cachorro-quente e batata frita.

Muitas bandeiras ainda são vistas em janelas de apartamentos em Manhattan e à frente das casas nos subúrbios de Nova York. Mas o orgulho patriótico já está bem distante da histeria patrioteira desencadeada pelos ataques terroristas a Nova York e Washington. Perdeu gás. Boa parte da mídia que a alimentava – em especial a TV, apostando no crescimento da audiência – recuou e caiu na realidade.

A derrota daquele gordo idiota

A Fox News, que apostou no patriotismo irracional para tirar a liderança da CNN entre as redes de cabo, insiste na receita ideológica. Mas as dúvidas sensatas do país já são veiculadas em programas políticos e jornalísticos das grandes redes. Como a NBC, dura nas perguntas a Bush numa entrevista exclusiva; a CBS, que revelou as fotos de Abu Ghraib; e a ABC, que leu os nomes dos soldados mortos na guerra.

O patriotismo conservador e extremado está vivo e atuante, só que mais confinado ao meio-oeste e ao sul da antiga confederação, sem afetar tanto o nordeste liberal da Nova Inglaterra (Nova York à frente) ou o oeste, Califórnia, Oregon e estado de Washington, menos sensíveis ao fundamentalismo cristão. Na mídia, essa tendência é sustentada não só pela pela Fox News, mas ainda pelos ‘talk shows’ do rádio.

O programa de Rush Limbaugh, o ‘gordo idiota’ denunciado num livro de sucesso pelo humorista Al Franken, lidera em centenas de emissoras espalhadas pelo país a tendência que retrata como irrelevante as fotos de torturas, a pretexto de que árabes e o próprio Saddam sempre fizeram coisa muito pior. é a mesma linha de Bill O’Reilly e Sean Hannity, astros da Fox News que têm seus próprios ‘talk shows’ também no rádio.

Virá coisa bem mais grave

Aparentemente a campanha presidencial foi pouco afetada pelo escândalo de Abu Ghraib, apesar do caso abrir novo flanco às críticas contra a guerra de Bush e sua alegação de que está levando democracia ao mundo árabe. Os analistas acham que um estrago devastador ainda virá, no devido tempo, por isso o rival democrata John Kerry evita o tema e deixa Bush ser consumido por um desgaste natural.

O interrogatório no Congresso (Senado e Câmara) do secretário da Defesa Donald Rumsfeld e da cúpula militar do Pentágono, sexta-feira, foi acompanhado em todo o país pelas grandes redes de TV aberta, amplificando a dimensão do escândalo. E o próprio Rumsfeld avisou já ter visto fotos e vídeos ainda mais chocantes, que podem chegar ao público no desdobramento do caso, talvez nas próximas horas.

As audiências do Congresso amplificaram o golpe sofrido por Bush porque mesmo personalidades republicanas horrorizaram-se com a falta de respostas convincentes. O senador John McCain até perdeu a paciência com Rumsfeld: ‘O senhor é incapaz de responder a pergunta clara e direta?’ Outro republicano, Lindsay Graham, avisou à imprensa: ‘Ainda virá coisa muito mais grave. Também houve estupros e mortes’.’