A cobertura internacional da mídia sobre o desabamento de três prédios no centro da cidade do Rio de Janeiro, até o dia 26 de janeiro não foi muito original, nem trouxe nada de novo que já não houvesse sido abordado pela imprensa local. O tema da decadência da infraestrutura do centro da cidade foi recorrente, como era de se esperar. A BBC e a Reuters revelaram preocupações sobre a capacidade da cidade sediar a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos, dois anos depois.
A BBC (26/1) apresentou a argumentação de uma testemunha de fala inglesa, Hugh Oliver, que acredita que a infraestrutura em torno das principais vias do centro “é pobre e somente a Barra da Tijuca tem condições urbanísticas 'modernas e bem reguladas' para sediar os eventos”. O argumento de Oliver é parcial porque não explica completamente a situação da geografia urbana contemporânea no Rio de Janeiro. A Barra da Tijuca não é a maravilha urbana que os empresários do setor imobiliário anunciam.
No centro do Rio coexistem tecnologias urbanas desde o tempo do Império, passando por diferentes épocas e oriundas de diversas legislações urbanísticas. A fibra ótica da revolução digital convive com esgotos do século do Império. Começando com os investimentos do Barão de Mauá em saneamento, no século 19, e acomodando várias estruturas de sucessivas restaurações urbanas, nosso marco construído é cercado por equipamentos e mobiliários urbanos de diversos períodos históricos. No centro do Rio convivem diferentes épocas e equipamentos urbanos que nem sempre são renovados ou cuidados como deveriam ser.
Olimpíada sem legado
Ao redor das ruas e avenidas principais do centro da cidade encontramos sinais evidentes de decadência e manutenção precária que não se limitam apenas à sua região central, mas são comuns a todos os bairros. Cortes de luz são frequentes por toda a cidade. A precariedade que a privatização impôs à população, com a terceirização de programas importantes, como a “linha viva”, causou a decadência na manutenção da rede elétrica da cidade em toda a parte, e não apenas no centro. Este, de fato, apresenta, como em muitas cidades do mundo, zonas decadentes e fora da regulação urbanística. O subsolo do Rio, depois das privatizações da empresa estatal de luz e força, transformou-se em campo minado. Equipamentos elétricos sem manutenção combinados a vazamentos de gás têm causado explosões pelo centro da cidade e outros bairros. Além disso, irregularidades como o uso indevido de gás engarrafado em zonas abastecidas pela rede de gás encanado da cidade persistem, levando a acidentes como o da Praça Tiradentes, no ano passado, que a Reuters não deixou passar.
Mas o que ficou bem claro foi a falta de uma cobertura compreensiva da urbanização carioca na mídia internacional. A Reuters (26/1), além de questionar o estado de conservação da infraestrutura no centro, também anotou o problema dos aeroportos, dos transportes e do atraso nas obras para a Copa do Mundo. Nada original. Nada que já não tenha sido escrito ou transmitido pela mídia local, que questiona a capacidade organizacional do país para os jogos internacionais após cada temporal, inundação ou outro abalo urbano significativo.
O que ficou de fora da cobertura internacional foi uma explicação para a deterioração do centro e por que a Barra da Tijuca, bairro da classe média alta, foi escolhida para abrigar o Parque Olímpico de 2016 e receber a maior parte dos investimentos. Vai ser uma Olimpíada sem legado, apesar do que diz a prefeitura. A maior parte das atividades está programada para acontecer longe do centro, na Zona Oeste da cidade, próximo à Barra.
Regulação urbana
O que aconteceu, na realidade, foi que a expansão da fronteira habitacional do Rio em direção oeste não conduziu a uma esperada descentralização das forças produtivas na cidade. O centro do Rio ainda exerce uma força de atração para os negócios que desafia a capacidade de fiscalização e prevenção de acidentes por parte da autoridade pública competente. Os trabalhadores ainda têm que viajar para o centro todos os dias. A pressão sobre o uso do solo urbano excedeu a capacidade da cidade de absorver o choque da expansão dos negócios num centro que já é antigo e que já não suporta mais o crescimento desordenado combinado com uma legislação urbana vendida ao capital especulativo imobiliário.
Os investimentos para os jogos poderiam ser usados para revitalizar o centro, mas em vez disso vão ser aplicados na expansão da Barra da Tijuca. Sobre este bairro, outro mito deve ser derrubado: a Barra não é a maravilha moderna que pregam os defensores da proposta do prefeito para 2016 e o artigo da BBC. O bairro apresenta uma feição moderna, mas por trás de seus prédios luxuosos e inspirados na arquitetura de Miami existe uma urbanização ainda incompleta.
No caso do Rio de Janeiro, graças a este tipo de crença equivocada, o centro do Rio não vai se beneficiar em nada dos investimentos que acompanham os jogos. Cerca de 60 projetos concorreram para a construção do plano urbanístico da Vila Olímpica. Alguns planos previam a recuperação urbana do centro do Rio, através de obras para os jogos na cidade, começando pela Praça Mauá. Mas estes projetos foram derrotados pelas forças de mercado, que vendem ao mundo a falsa ideia da Barra da Tijuca como bairro urbanizado, moderno e adequado e pronto para receber os jogos. Essa ideia é falsa.
Boa parte dos condomínios daquela bonita parte da cidade não está conectada a nenhuma rede de esgoto. Muitos prédios não possuem estações de tratamento de dejetos e despejam os mesmos in natura nas águas oceânicas. As lagoas da região estão poluídas além do limite. A regulação urbana também deixa a desejar: o bairro sofre de precariedade na legalização dos imóveis. A segurança jurídica dos compradores de imóveis na região esbarra em interesses privados combinados a dificuldades no registro de muitos imóveis da Barra. A regulação que o sr. Oliver mencionou à BBC parece não ser tão sólida.
Punir a vítima
A barra da Tijuca não é a maravilha de regulação urbana que a BBC pregou. Ao contrário, representa a natureza selvagem da especulação imobiliária que destruiu o traçado urbano original de Lúcio Costa, que previu em seu plano o que se chama em urbanismo de “adensamento vertical controlado”. Deixando de fora a linguagem críptica do planejamento urbano, isto significa construção limitada de edifícios, que são dispostos em pequenos grupos, em sequência ao longo de um eixo único de transportes, entremeados por áreas verdes e não construídas. Deste modo, a densidade populacional por metro quadrado é controlada, desde que se respeite o desenho original do plano, que há muito já foi destruído pelas forças do mercado.
A prefeitura da cidade pretende lograr a urbanização completa da Barra e seu entorno através da abertura da mesma à exploração pelo capital imobiliário. Antes e depois dos jogos. Por isso vende a ideia da Barra perfeita e abandona o centro e outras partes da cidade. A Barra moderna e completamente urbanizada, que só existe na imaginação de alguns. O que o prefeito e seus aliados nacionais e internacionais pretendem é remover a população pobre dos locais com maiores possibilidades de valorização, despoluir as águas das lagoas e brejos do local e ampliar a quantidade de terra disponível para futuro desenvolvimento imobiliário.
A infraestrutura da cidade anda abandonada em função da expansão imobiliária em direção à Barra da Tijuca, da superexploração do centro antigo do Rio pelos negócios, pela legislação urbana confusa, burocrática e ineficiente, por falta de fiscalização municipal e por muitos outros fatores. Não há uma explicação de causa única para a decadência atual do centro do Rio. De qualquer forma, uma coisa fica garantida desde já: o centro do Rio nada vai ganhar com os Jogos Olímpicos ou a Copa do Mundo. Segundo o Observatório das Metrópoles (30/11/2011), estes eventos “não deixarão legado significativo para a população brasileira”.
O Rio perdeu uma grande oportunidade de fazer investimentos maciços em infraestrutura no centro da cidade ao escolher o projeto do escritório de arquitetura londrino para 2016, que também vai ser responsável pelos Jogos deste ano em Londres. Associar a decadência do centro do Rio a uma suposta incapacidade do país em organizar eventos esportivos de grande porte é punir a vítima por seu próprio sofrimento e ignorar a história da urbanização no Rio de Janeiro, além de falta de conhecimentos elementares da geografia da cidade.
Situação semelhante
Em novembro do ano passado (30/11/2011), o Observatório das Metrópoles publicou uma matéria sobre o impacto dos jogos que virão para a cidade do Rio de Janeiro. Parte da série de debates “Copa, esporte e paixão”, promovida pelo “Comitê Popular Rio Copa e Olimpíada”, um dos eventos reuniu o jornalista Juca Kfoury, a professora da FAU/USP Ermínia Maricato e o historiador Luiz Antonio Simas. A professora Maricato é uma das maiores autoridades em urbanismo do Brasil. Uma das conclusões a que se chegou com esses debates foi a ausência de um “legado efetivo” para a população por parte desses jogos
“No momento em que a gente deixa parte da população fora da cidade, não há condição de falar em democracia.” A afirmação da professora Ermínia Maricato foi feita durante o primeiro encontro da série de debates “Copa: Esporte, Paixão e Negócio”, promovida pelo Comitê Popular Rio Copa e Olimpíada. No auditório da ABI, no centro do Rio, Ermínia dividiu o palco com o jornalista Juca Kfouri e com o historiador Luiz Antônio Simas. Eles falaram sobre a falta de transparência nos preparativos dos megaeventos, a elitização do futebol e a ausência de um legado efetivo para a sociedade brasileira.
O jornalista Juca Kfouri começou sua apresentação comentando um dos problemas mais graves dos preparativos para a Copa do Mundo de 2014: as remoções e desapropriações que estão sendo feitas nas 12 cidades-sedes brasileiras (veja “Relator acompanha denúncias de violação do direito à moradia no Rio de Janeiro”). De acordo com Kfouri, situação semelhante ocorreu na Cidade do Cabo durante os preparativos para a Copa da África do Sul. “Uma das situações mais angustiantes que eu vi na vida foi a tal cidade de lata. Era o local para onde foram levadas aproximadamente 4 mil famílias desalojadas para a construção de um dos estádios mais lindos que existe no mundo, que é o Green Point. O governo africano prometeu que seriam casas provisórias, mas até hoje eles estão lá vivendo em condições deploráveis”, afirmou.
Remoção da população pobre, falta de representação popular e de transparência da administração da cidade. Além do centro decadente. Tudo isso já temos por aqui. Mas quando o prefeito do Rio fala em “legado”, referindo-se aos jogos no Rio, confesso que ainda não sei do que se trata.
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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]