Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Embaixo do edredom do BBB

Na madrugada entre sábado e domingo retrasados, o brother Daniel Echaniz, 31, e a sister Monique Amin, 23, deitaram-se numa cama do Big Brother Brasil 12. Ao que parece, ambos estavam para lá de Bagdá. Graças a câmeras hipersensíveis, os assinantes do BBB 24 horas entreviram assim uma movimentação sugestiva debaixo do edredom de oncinha que cobria Daniel e Monique. Alguns se indignaram porque, aparentemente, Daniel se agitava, enquanto Monique ficava parada.

Mais tarde, Monique disse se lembrar de beijos e amassos, e só: se Daniel tivesse feito mais, ele seria “mau-caráter”, pois ela tinha desmaiado. Daniel afirmou que não houve relação sexual. Mesmo assim, ele foi expulso do BBB por “comportamento inadequado” e encara agora, “no mundo real”, uma acusação de estupro (caso seja provado que ele transou com Monique enquanto ela estava inconsciente).

Quando eu era criança, durante um verão na Espanha, eu insistia para assistir a todas as touradas. Não é que eu fosse um “aficionado” da cruel e requintada arte de tourear; eu só queria ver sangue na arena, esperava que, ao menos uma vez, o touro enfiasse seu corno na pança do toureador. Depois de um mês vendo cavalos de picador sendo feridos, tive “sorte”: vi um toureador esventrado por um majestoso miúra, da Andaluzia.

Acusado e processado

O espectador do BBB não é diferente de mim naquelas férias espanholas, e a Globo, no caso, aposta em sua curiosidade um pouco mórbida: a possibilidade que haja comportamentos inadequados é a razão para alguém ficar acordado de madrugada, assistindo ao BBB 24 horas. Tanto faz, você dirá: que os espectadores queiram comportamentos inadequados ou se indignem por causa deles, de qualquer forma, Daniel teria ido longe demais – transar com uma mulher inconsciente é crime.

Concordo. Mesmo assim, quando li que a polícia tinha indiciado Daniel, achei bizarro, como se as forças da ordem se metessem num palco de teatro ou num set de cinema, para prender um ator que teria realizado o crime previsto no roteiro. Espere aí, alguém objetará, o BBB não é uma ficção! Esse, de fato, é o argumento de venda de todos os reality shows. No entanto, segundo, por exemplo, Scott Stone (roteirista de The Mole, The Man Show etc.), os reality shows, antes de serem escrotos, são, sobretudo, escritos. Obviamente, eles não seguem um roteiro acabado, com cenas e diálogos detalhados, mas se alimentam numa sinopse escrita de situações, conflitos e alianças desejáveis entre personagens.

Daniel e Monique podem não ser atores e o episódio do edredom pode não ser dramaturgia. Mesmo assim, as ações entre brothers e sisters do BBB não são propriamente “realidade”. No mínimo, os reality shows são parentes da commedia dell'arte: improvisações a partir de um canovaccio (roteiro rudimentar), com personagens escolhidos porque eles correspondem às máscaras estereotipadas das quais o canovaccio precisa. De muitas dessas máscaras, aliás, espera-se que produzam comportamentos inadequados. Então, se Daniel for acusado e processado, o BBB deveria ser acusado e processado com ele por instigar o crime, ou seja, por ter, de uma certa forma, “roteirizado” o suposto estupro de Monique.

Falsidade ideológica

Em suma, a “realidade” produzida pelos reality shows é duvidosa, e considerar crime o “comportamento inadequado” de Daniel não é muito diferente de a polícia invadir o set de Dormindo com o Inimigo para salvar Julia Roberts e prender Patrick Bergin, o marido espancador. Mas talvez eu esteja me preocupando por nada; talvez, nessa confusão entre realidade e ficção, a chegada de polícia e procuradoria ao BBB seja apenas mais um artifício dramático para convencer o público de que o show é mesmo “de verdade”.

Bom, nesta semana, além de Daniel e Monique, tivemos a grávida de quadrigêmeos fictícia e a Luiza que está no Canadá. Não sei se Daniel e Monique se darão mal ou bem. Luiza ganhou vários contratos comerciais “reais”. Resta que a mulher dos quadrigêmeos pode ser acusada de falsidade ideológica. Será que é justo? Ela inventou uma história, que se tornou pauta e nos entreteve. Ganhou um dinheiro com isso? E por que não? Afinal, foi menos do que ganha um ficcionista médio.

Seja como for, Zé Simão é sortudo: sem querer desmerecer seu talento, é óbvio que o mundo (ou é só o Brasil?) faz de tudo para facilitar seu trabalho.

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[Contardo Calligaris é colunista da Folha de S.Paulo]