Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Fernando Duarte

‘Os resultados do inquérito Hutton fizeram mais uma vítima ontem na BBC, duramente criticada devido a uma reportagem sobre suspeitas de que o governo manipulou informações para justificar a adesão britânica à invasão do Iraque e que deu origem à investigação. Menos de 24 horas depois de o presidente da corporação estatal de mídia, Gavyn Davies, pedir demissão, o diretor-geral, Greg Dyke, fez o mesmo.

Simpatizante, e inclusive contribuinte, do Partido Trabalhista, Dyke se recusou a atender à exigência do primeiro-ministro Tony Blair de fazer um pedido formal de desculpas. O pedido acabou sendo feito pelo presidente interino da BBC, lorde Ryder, numa mistura de rendição e tentativa de evitar mais desdobramentos da polêmica que tem sido um dos assuntos mais discutidos pelos britânicos.

– Em nome da BBC, não hesito em pedir desculpas sem reservas por nossos erros e aos indivíduos que tiveram suas reputações afetadas. A corporação agora precisa seguir adiante, tendo em mente as observações do inquérito Hutton, que apontaram sérios erros em nossos procedimentos e processos – afirmou Ryder, que é ligado ao Partido Conservador.

Público, mídia e a oposição cobraram, porém, mais investigações sobre os argumentos do governo para justificar a adesão do país à guerra.

‘Tudo o que eu queriaeram desculpas’, diz Blair

Em seu discurso de despedida, Dyke disse ter defendido a independência editorial da BBC mas não entrou em detalhes sobre os resultados do inquérito – que investigou também o suicídio do cientista David Kelly, depois de ser identificado (supostamente pelo governo) como fonte da reportagem. Dyke foi substituído provisoriamente pelo executivo Mike Byford.

Centenas de funcionários protestaram contra a demissão do diretor-geral em frente a prédios da corporação, em diversas cidades. Mas o desfecho agradou a Blair, que abriu ainda mais o sorriso depois do pedido de desculpas de Ryder.

– Tudo o que eu queria eram desculpas por uma acusação séria feita a mim e ao governo, e que acabou sendo considerada falsa pelo relatório de lorde Hutton. Gostaria de deixar bem claro que respeito completamente a independência da BBC e estou certo de que a corporação continuará questionando e examinando o trabalho do governo, mas de maneira apropriada – afirmou o premier.

Segundo uma pesquisa divulgada no ‘London Evening Standard’, 49% dos britânicos acham que o inquérito acobertou o governo, 40% discordam do resultado e 70% acham que deveria haver uma investigação independente sobre os motivos que levaram a Grã-Bretanha à guerra. Além disso, 56% consideraram injusto o juiz Hutton pôr toda a culpa na BBC.

‘Independent’ pergunta na manchete: ‘Panos quentes?’

O jornal ‘Independent’ foi o que criticou mais abertamente o governo. Numa primeira página praticamente em branco, perguntou na manchete: ‘Whitewash?’ (algo como ‘Panos quentes?’). Para o ‘Guardian’ ‘os jornalistas devem continuar investigando, fazendo perguntas incisivas e criando problemas’. Já o ‘Daily Express’ disse que ‘o silêncio do juiz Hutton no caso deixa perguntas sem resposta’. Hutton deverá ser sabatinado no Parlamento em abril.

Para Martin Smith, ex-correspondente da BBC em Moscou e ex-funcionário do Departamento de Comunicações do governo, a questão do envolvimento do governo já deveria ter sido investigada por Hutton.

– Tudo bem que a reportagem tinha alguns erros, mas a questão abordada era de interesse nacional e o público gostaria de saber em que bases a Grã-Bretanha foi à guerra. A BBC tem o direito de questionar o governo. Gostaria de saber se as mesmas pessoas que pediram a cabeça de Davis e Dyke também vão assumir a responsabilidade se ficar provado que as informações do governo eram imprecisas – disse ele.’

***

‘‘Dois dias terríveis para a liberdade de imprensa no mundo’’, copyright O Globo, 31/01/01

‘Subsecretário do Sindicato Nacional dos Jornalistas Britânicos (NUJ), John Fray considera injusto o bombardeio de críticas à BBC e teme que os resultados do inquérito Hutton criem um clima de incerteza na mídia britânica e mundial que poderá inibir reportagens investigativas mais polêmicas envolvendo governos e governantes.

Como o senhor avalia o futuro da BBC pós-inquérito Hutton?

JOHN FRAY: A BBC foi fundada como uma corporação financiada pelo dinheiro público, mas independente do governo. Tal compromisso faz parte de uma história vitoriosa na Grã-Bretanha e no resto do mundo. Os resultados do inquérito Hutton deixam no ar várias ameaças. Além de os críticos da BBC agora terem chance de falar mais alto em seus pedidos por mudança na estrutura da empresa, em especial sua subordinação ao órgão regulador de mídia, creio que o governo tentará exercer mais influência sobre seu trabalho daqui por diante, o que não é um prognóstico animador.

Você concorda com as queixas de que o lorde Hutton concentrou muito mais suas atenções sobre a BBC do que sobre o governo?

FRAY: Lorde Hutton pegou muito pesado com a BBC. É uma pena que o inquérito tenha deixado a impressão de ter colocado panos quentes num assunto que tinha um fundo de verdade. O relatório final me pareceu ter sido parcial e uma grave ameaça ao futuro do jornalismo investigativo. Tenho minhas dúvidas se outras histórias polêmicas envolvendo órgão governamentais não serão abafadas pelos órgãos de imprensa por medo de represálias. Vivemos dois dias terríveis para a liberdade de imprensa em todo o mundo.

Como o NUJ está lidando com o caso de Andrew Gilligan? Há uma ameaça de greve caso ele seja punido ou demitido…

FRAY: Gilligan teve sua reputação atingida pela situação, mas ele teve a decência de admitir e justificar os erros que cometeu em sua reportagens. A BBC disse que o apoiaria e o NUJ sinceramente espera ver tal compromisso cumprido.Tomaremos qualquer ação necessária para defender Gilligan de injustiça.’

 

Folha de S. Paulo

‘BBC x BLAIR’, Editorial, copyright Folha de S. Paulo, 1/02/01

‘O tão esperado inquérito da Justiça britânica sobre o suicídio do cientista David Kelly é implacável: o premiê Tony Blair e o governo são isentados de praticamente todas as suspeitas de ter manipulado relatórios dos serviços secretos. Já a BBC, que divulgou reportagem acusando o governo dessa prática, foi severamente criticada. Os dois principais dirigentes da TV pública renunciaram a seus postos.

Sabe-se, hoje, que o Iraque não possuía armas de destruição em massa e que os relatórios de inteligência produzidos pelos serviços secretos britânico e norte-americano estavam errados. Parece paradoxal que a BBC sofra críticas por ter divulgado uma reportagem que se revela, no final das contas, se não exata, ao menos compatível com essa conclusão -ao mesmo tempo em que o governo, cujos temores se mostraram, afinal, equivocados, seja eximido de culpa.

O paradoxo é mesmo aparente. Pelo menos em teoria, é possível que a reportagem não tivesse nenhuma base técnica e que o governo tenha agido com total boa-fé. É mais ou menos isso o que diz o relatório do juiz da Suprema Corte lorde Hutton, que investigou durante meses o suicídio de Kelly depois que o cientista e assessor do Ministério da Defesa teve revelado seu nome como principal fonte da reportagem da BBC.

A imprensa britânica, de um modo geral, fez severas críticas ao relatório Hutton. Em que pese uma reação talvez corporativa, as queixas não deixam de ser justificáveis. As conclusões do juiz são excessivamente rígidas e parciais. Como observou Yavuz Baydar, presidente da ONO, organização que congrega ombudsmans de veículos de comunicação de 15 países, o risco do parecer de Hutton é ser lido como uma recomendação para que o jornalismo não procure ir além do declarado -num mundo onde governos e autoridades mentem com freqüência.

A BBC admitiu que cometeu falhas técnicas na reportagem em questão. Mesmo que se aceite que o premiê Tony Blair estava convencido da acuidade dos relatórios de seu serviço secreto, como parece razoável, as informações estavam tão erradas que se torna inverossímil imaginar que todos no governo e nos serviços secretos tenham agido sem dolo.

Faltou ao relatório Hutton o equilíbrio entre a necessária condenação de falhas de procedimento da mídia e o reconhecimento de que, ainda assim, não se devem desestimular os esforços de jornalistas de ir além das aparências na tarefa de informar e fiscalizar o poder.’

***

‘Para 56%, juiz foi duro demais com a BBC’, copyright Folha de S. Paulo, 30/01/01

‘A conclusão do inquérito sobre a morte do cientista britânico David Kelly provocou ontem mais uma baixa na rede estatal de rádio e TV BBC -com a saída de seu diretor-geral-, mas não pôs fim à polêmica sobre os motivos que levaram o Reino Unido a participar da Guerra do Iraque.

O relatório judicial do lorde Hutton, divulgado anteontem, foi recebido com desconfiança pela população, que acha que ele foi duro demais com a BBC, e criticado pela mídia.

Segundo pesquisa de opinião do jornal londrino ‘Evening Standard’, 56% dos entrevistados acham que o relatório do juiz não foi justo e 70% pediram uma investigação independente dos motivos que levaram o país a se aliar aos EUA contra o Iraque.

Ontem, jornais e tablóides britânicos criticaram Hutton por ter ‘sufocado o caso em proveito do establishment político’. ‘Os jornalistas da BBC devem seguir investigando, fazendo perguntas incômodas e criando problemas’, disse editorial do ‘Guardian’.

Já o ‘Daily Express’ afirmou que ‘o abafamento do caso pelo juiz Hutton deixa perguntas sem respostas’. Outro jornal publicou uma foto de Blair em sua primeira página, com o título ‘São Tony’.

Anteontem, Hutton, da Suprema Corte, exonerou o premiê Tony Blair de responsabilidade na morte do microbiologista David Kelly. O assessor do governo na área de armas químicas e biológicas suicidou-se em julho passado após ter sido nomeado como fonte de uma reportagem da BBC que criticava o governo por seu dossiê sobre o Iraque.

O juiz disse ser infundada a alegação da BBC de que o governo britânico teria inflado seu relatório de inteligência sobre a ameaça representada pelas armas de destruição em massa iraquianas.

O premiê Tony Blair justificou sua decisão de participar da Guerra do Iraque com o argumento de que o regime do ditador Saddam Hussein representava um sério perigo à segurança internacional. Para convencer a população, ele divulgou um dossiê sobre o suposto arsenal de armas de destruição em massa iraquiano.

Nove meses após a queda de Saddam, não foram encontradas armas de destruição em massa no país. Sabe-se que o Iraque as utilizou contra o Irã e inimigos do regime na década de 80, mas elas foram parcialmente destruídas pela ONU nos anos 90, após a Guerra do Golfo (1991), e é possível que o Iraque tenha eliminado o que restava. Entretanto o regime de Saddam nunca provou isso.

Um dia após o presidente da BBC, Gavyn Davies, se demitir, ontem foi a vez de o diretor-geral, Greg Dyke, deixar seu cargo.

Já o presidente interino da BBC, Richard Ryder, apresentou ‘desculpas sem reservas’ ao governo. O premiê Tony Blair -que havia prometido renunciar caso o juiz Hutton o responsabilizasse no episódio- tentou colocar um ponto final à questão.

‘Para mim, isso sempre foi, simplesmente, questão de uma acusação muito séria que havia sido feita. Agora, ela foi retirada, e é tudo o que eu queria. Isso nos permite encerrar o assunto e seguir adiante’, disse Blair.

Em frente à sede da BBC, em Londres, funcionários protestaram. A BBC, com 82 anos de história, é motivo de orgulho para os britânicos e referência em termos de jornalismo em todo o mundo.

Ontem, não havia nenhuma informação sobre o destino do jornalista Andrew Gilligan, autor da polêmica reportagem, de maio de 2003, sobre o dossiê iraquiano.’

***

‘Jornalista pivô da crise na BBC se demite e diz que erros foram ‘honestos’’, copyright Folha de S. Paulo, 31/01/01

‘Na seqüência da saída do presidente e do diretor-geral da BBC após a conclusão do inquérito sobre a morte do cientista David Kelly, ontem foi a vez de o jornalista Andrew Gilligan pedir seu desligamento da emissora estatal britânica.

Gilligan é o autor da polêmica reportagem, publicada em maio, segundo a qual o governo britânico inflou seu relatório de inteligência sobre a ameaça representada pelas armas de destruição iraquianas, argumento para a Guerra do Iraque.

No embate entre o governo do premiê Tony Blair e a BBC, foi divulgado que a fonte da reportagem era Kelly, assessor do governo na área de armas proibidas. Dias após a revelação, em julho, ele se suicidou.

Em nota, Gilligan pediu desculpas pelo que chamou de ‘erros honestos’ de sua reportagem. ‘Minha saída é por iniciativa própria, mas a BBC como um todo tem sido vítima de uma grave injustiça.’

O inquérito tem provocado várias críticas da imprensa britânica, que considera a decisão uma intimidação contra reportagens investigativas e favorável demais a Blair.’

 

Veja

‘A vingança de Blair’, copyright Veja, 3/02/01

‘O que parecia se encaminhar para uma crise política forte o suficiente para derrubar o primeiro-ministro Tony Blair terminou como um caso de mau jornalismo. O juiz inglês Brian Hutton divulgou na semana passada o resultado de sua investigação do chamado ‘Caso Kelly’, batizado assim depois do suicídio de um especialista em armas biológicas e consultor do Departamento de Defesa chamado David Kelly. A BBC, o sistema público de rádio e televisão da Inglaterra, acusara Blair de ter exagerado intencionalmente as provas da existência de um arsenal de armas de destruição em massa no Iraque – em especial, a informação de que o Iraque só precisaria de 45 minutos entre tomar a decisão e disparar esse tipo de arma. O objetivo seria justificar a entrada da Inglaterra na guerra em apoio aos Estados Unidos. Mais tarde, a BBC responsabilizou o governo pela revelação de que teria sido Kelly o informante do jornalista da organização, Andrew Gilligan, autor da reportagem original. Em meticulosa exposição, o juiz Hutton livrou Blair das acusações e deixou a BBC em péssima situação. A investigação mostrou que Gilligan colocou no ar em seu programa de maio de 2003 ‘acusações infundadas’ e que ‘seus superiores na BBC não se deram ao trabalho de verificar a qualidade de suas fontes’.

Embora toda a sua receita venha do governo, a BBC se orgulha de ser uma organização independente. Ela tem 40% da audiência de televisão e 50% dos ouvintes de rádio da Inglaterra. O relatório de Hutton derrubou a cúpula da organização e a deixou na pior crise de seus 82 anos de existência. Gavyn Davies, seu presidente, pediu demissão antes mesmo da divulgação do veredicto do juiz. O diretor-geral Greg Dyke caiu em seguida. Brian Hutton sugeriu que seja feita uma revisão dos mecanismos internos de aprovação das reportagens. ‘É triste dizer isso, mas a reportagem da BBC é um exemplo típico do jornalismo britânico moderno: a distorção ou falsificação dos fatos para que eles se encaixem na visão particular do jornalista sobre o que é a verdade’, escreveu a revista The Economist sobre o episódio. Andrew Gilligan também se demitiu, mas o dano está feito. ‘Chegou o momento de a BBC passar a ser dirigida por um jornalista experiente e não por um grupo de homens e mulheres politicamente corretos’, disse o escritor Frederick Forsyth, autor de O Dia do Chacal e O Dossiê Odessa.

Mesmo sem aumentar uma só vírgula no relatório de seus espiões, Blair acabou falando mentira, já que parece mesmo não existirem armas de destruição em massa no Iraque. Por que então condenar a BBC? O juiz Brian Hutton é cristalino a respeito. Ele diz que são duas coisas completamente diferentes e coube-lhe investigar apenas se Blair mentiu sobre o uso do documento produzido pelo serviço de espionagem. A conclusão foi que o governante não mentiu. Na visão do juiz, se e por que o documento estava errado deve ser fruto de outra investigação. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte teve de decidir sobre uma questão aparentada. Em 1964, um funcionário do governo do Alabama chamado L.B. Sullivan processou o jornal The New York Times por ter cometido erros em um artigo pago condenando a repressão a ativistas dos direitos civis no Estado. O artigo realmente continha erros. Como a questão envolvia a Primeira Emenda, que garante a liberdade de expressão, o caso chegou à Suprema Corte. Em uma decisão histórica, os juízes determinaram que não pode ser punido ‘o erro honesto da imprensa, mesmo que resulte em afirmações difamatórias contra ocupantes de cargos públicos’. A sentença dos juízes americanos estabeleceu também que deve ser punido o ‘erro fruto da malícia ou de flagrante desrespeito pela verdade’. Nem nos EUA Andrew Gilligan e a BBC escapariam de uma condenação.’