O jornal e o livro é parte da periferia do continente Machado de Assis. Nas canônicas “obras completas” da Nova Aguilar (versões de 1959 e 2008, em três e quatro volumes, respectivamente), está perdido na genérica “Miscelânea”, barafunda de gêneros à qual se relegou tudo o que na obra do escritor carioca parecia pouco definido literariamente.
Foi de lá que saiu o livrinho publicado agora na série “Grandes Ideias” [Penguin Companhia, 128 págs., R$ 10,90], que torna acessíveis ensaios mais comentados do que lidos, como “Notícias da Atual Literatura Brasileira – Instinto de Nacionalidade” e “O Ideal do Crítico”. Principalmente, dá protagonismo a um texto “menor” que, a meu ver, é importante por seu malogro em provar a superioridade do jornal sobre o livro.
Em janeiro de 1859, quando O Jornal e o Livro foi publicado no Correio Mercantil, Machado de Assis tinha 19 anos e meio e, havia três meses, trabalhava na Redação como revisor. Sua vida literária começara precocemente quatro anos antes, n’A Marmota Fluminense, jornal capitaneado pelo mítico livreiro e editor Paula Brito.
Colaborar no Correio era, no entanto, entrar na vida literária pela porta da frente. Em 1854, o jornal publicara “Ao Correr da Pena”, célebre coluna de José de Alencar.
Entre 1852 e 1853, nasceram em suas páginas as Memórias de um Sargento de Milícias, a obra-prima de Manuel Antônio de Almeida – de quem Machado era protegido e a quem dedica seu desassombrado ensaio, uma reflexão sobre o alcance e a velocidade da escrita e das ideias nada estranha ao que se lê hoje sobre as “novas mídias”.
Influência
A principal referência intelectual de Machado era Eugène Pelletan (1813-84). O pensador francês, escritor, polemista e republicano ardente, exerceu considerável influência no Brasil com um discurso altissonante, que fazia do progresso um Deus no qual deveria espelhar-se o homem em busca de comunhão com seu tempo.
Um ano antes, no mesmo jornal, Machado dedicara a ele (tratado como “Sr. E. Pelletan”) o poema “O Progresso – Hino da Mocidade”. A mistura indigesta das ideias de Pelletan com uma eloquência “à moda” de Victor Hugo marcou, segundo o pesquisador francês Jean Michel-Massa, esse primeiríssimo Machado.
“Homem de vastas sínteses, Pelletan abarcava de um só relance o passado, o presente o futuro”, comenta Massa em A Juventude de Machado de Assis [Unesp, 582 págs., R$ 70], publicado originalmente em 1971 e reeditado em 2009.
“Seu sincretismo generoso de ideias, em que misturava tumultuosamente todos os domínios do conhecimento, seduzira então numerosos espíritos eminentes. Machado de Assis, sensível ainda a todas as correntes, encontrou nele uma fé ardente e talvez uma resposta a algumas das questões que a si mesmo colocava.”
Galope
A descrição de Massa corresponde ao peculiar “método” de exposição de Machado. Em duas partes, o ensaio do brasileiro evolui num galope, às vezes atabalhoado, para mostrar como a humanidade vem, ao longo dos séculos, “em busca de um meio de propagar e perpetuar a ideia”.
Das inscrições em pedra ao primeiro livro, esses meios de escrita e reprodução técnica se sucedem vertiginosamente na narrativa do atilado polemista. Trata-se quase de um épico em que escrita, arquitetura e arte convergem como patrimônio da humanidade.
Para que se tenha uma ideia do quanto esse percurso é pontuado por saltos e conclusões precipitadas, Machado considera a arquitetura o resultado de uma progressão da comunicação primeira, nascida para “transformar em preceito, em ordem, o que eram então partos grotescos da fantasia dos povos”.
Aperfeiçoando-se, a arte de construir e dar sentido a uma comunidade encontrará no livro um sucedâneo como forma de transmissão das ideias e das representações dos povos.
“O edifício, manifestando uma ideia, não passava de uma coisa local, estreita”, escreve Machado, lembrando um mundo em que os referenciais eram bem definidos, estáticos e locais.
“O vivo procurava-o para ler a ideia do morto; o livro, pelo contrário, vem trazer à raça existente o pensamento da raça aniquilada. O progresso aqui é evidente”.
Ocorre aí, argumenta, uma revolução sem precedentes. Já não é preciso ir ao monumento para dar conta da história, pois o livro é a forma portátil para a difusão do “pensamento da raça aniquilada”.
Democratização
Essa passagem é o início da democratização que Machado vê se materializar plenamente no impulso que toma a imprensa.
Trata-se, no seu entender, de um processo de radical democratização do conhecimento, com consequências imediatamente políticas – aqui, a celebração dos ideais republicanos, consonante aliás com a orientação do Correio Mercantil.
“O jornal apareceu, trazendo em si o gérmen de uma revolução”, prossegue Machado. “Essa revolução não é só literária, é também social, é econômica, porque é um movimento da humanidade abalando todas as suas eminências, a reação do espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo literário, do mundo econômico e do mundo social.”
O Jornal e o Livro aponta ainda para a redefinição do papel social do escritor. Até então ligada às alturas da criação artística, a literatura entra no circuito da mercadoria, e o escritor é instado por Machado a se alinhar à nova ordem, deixando de lado as inalcançáveis musas vaporosas.
“O jornal, abalando o globo, fazendo uma revolução na ordem social, tem ainda a vantagem de dar uma posição ao homem de letras; porque ele diz ao talento: ‘Trabalha! Vive pela ideia e cumpres a lei da criação!’. Seria melhor a existência parasita dos tempos passados, em que a consciência sangrava quando o talento comprava uma refeição por um soneto?”
A um dado momento, Machado trai a motivação tática de seus exagerados argumentos: “Se procuro demonstrar a possibilidade do aniquilamento do livro diante do jornal, é porque o jornal é uma expressão, é um sintoma de democracia”.
E termina com o ponto que, talvez, seja o mais radical do texto, derrubando a forte marca de distinção do escritor sobre os “mortais” de seu tempo:
“O talento sobe à tribuna comum; a indústria eleva-se à altura de instituição; e o titão popular, sacudindo por toda a parte os princípios inveterados das fórmulas governativas, talha com a espada da razão o manto dos dogmas novos. É a luz de uma aurora fecunda que se derrama pelo horizonte. Preparar a humanidade para saudar o sol que vai nascer – eis a obra das civilizações modernas.”
Precipitação
Eivado de precipitação, o jovem Machado agarrava-se a certezas -moeda rara em sua obra futura. Naquele momento, porém, cumpria o que em alguma medida se espera de um intelectual em formação: curiosidade, desejo de intervenção e o direito, inalienável, ao equívoco.
É impossível não ver analogias entre esse raciocínio, que prega a rapidez de um novo meio sobre a lentidão do livro, e o que se escreve, muitas vezes vadiamente, sobre os rumos da edição e da difusão de informação.
O erro de Machado é o erro dos que tentam caminhar em areia movediça – mas o que se sucederia, em seu caso particular, de certa forma redime o equívoco e até o enobrece.
Mais de 30 anos depois, Machado recebia “com um acesso de gentilezas” o jovem Paulo Barreto, que seria conhecido como João do Rio. O futuro autor A Alma Encantadora das Ruas levava a ele o mesmo questionário que dirigiu a seus mais notáveis contemporâneos: afinal de contas, o jornalismo ajuda ou prejudica a literatura?
Em 1904, quando foi publicado o resultado da enquete em O Momento Literário, Machado era uma ausência gritante. Consagrado, jamais respondeu a João do Rio, que aprofundava o debate iniciado no Correio Mercantil.
“O fogo, a confiança, o futuro, o progresso” do jovem polemista pareciam ter dado lugar ao “tédio à controvérsia” tão caro a um certo Conselheiro Aires.
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[Paulo Roberto Pires é editor da revista de ensaios Serrote, do Instituto Moreira Salles (IMS)]