Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Marco Weissheimer

‘‘Nestes tempos, em que ‘todos somos democráticos’, não seria nada mal começar a democratizar o processo de construção textual do discurso jornalístico, abrindo sua caixa preta para o público.

Qual a qualidade do jornalismo que estamos fazendo? Essa reflexão se dirige, é importante que se diga logo de saída, a todos os graus do espectro ideológico – com perdão pela expressão. E, de um modo muito particular, dirige-se àqueles profissionais que tentam fazer algo que vamos chamar aqui de ‘jornalismo crítico’ (com todas as limitações e simplificações que essa expressão acarreta). E é por ter uma certa (e arriscada) pretensão de universalidade que ele – o texto – não vai recorrer a exemplos, as ‘muletas da faculdade de julgar’, segundo a formulação do filósofo alemão Immanuel Kant. A leitura diária daquilo que conhecemos como ‘notícia’ é uma oportunidade para refletir sobre a própria natureza do jornalismo, sobre o que ele se tornou enquanto gênero discursivo que pretende informar e formar a opinião da população. Não há aqui a pretensão de apresentar nenhuma novidade exatamente; tampouco de levantar receitas mágicas para os problemas enfrentados. É mais um convite à reflexão, uma proposta de olhar para o próprio umbigo.

Uma das primeiras coisas que chamam a atenção, na enxurrada de textos à nossa disposição diariamente, é a ausência de idéias razoavelmente estruturadas e de argumentos explicitamente formulados. Para além dos conceitos e preconceitos que ‘inspiram’ os textos (e sua edição), há uma permanente tendência em apresentar uma cadeia – mais ou menos aleatória – de ‘fatos’ e depoimentos com uma pretensão de ‘descrever’ o que está acontecendo. As aspas justificam-se aí, pois o que é apresentado como ‘fato’ não passa de uma construção conceitual (muitas vezes tortuosa) do próprio autor (e/ou editor) do texto.

Há um certo padrão onde, aparentemente, não existe nenhum: tantas pessoas participaram de tal evento, fulano de tal disse isso, sicrano disse aquilo, uma faixa dizia aquilo outro, a palavra tal foi empregada tantas vezes, etc. O título que sintetiza essa diversidade pretende apresentar a ‘essência’ do que está sendo descrito. Palavras e frases se sucedem sem que a ‘intenção’ do autor do texto seja expressa claramente como uma idéia central que estrutura o discurso. A palavra ‘intenção’ está sendo utilizada aqui, no sentido de construção conceitual, como se tentará explicitar mais adiante.

Há algo oculto no texto?

Esse déficit de transparência não implica, porém, afirmar que o texto ‘esconde’ a realidade. Para o leitor ‘atento’ (palavra utilizada aqui no sentido de desperto, acordado, não entorpecido), não há nada oculto no discurso. A intenção está entranhada nas próprias palavras, na forma pela qual elas são articuladas, nos recursos gráficos de que a notícia dispõe, na escolha das frases, na escolha ou na construção dos fatos, na enunciação da notícia, na forma e no conteúdo da reportagem escrita ou transmitida.

Mas, como a figura do leitor atento representa uma esmagadora minoria, pode-se falar de um espaço de ocultamento em um âmbito mais geral do discurso jornalístico. Talvez um dos elementos estruturantes desse tipo de discurso possa ser encontrado em um mito caro à formação jornalística, a saber, o de que o jornalista limita-se a ‘reportar’ o que vê e ouve, separando a ‘descrição’ da ‘opinião’. O bom texto jornalístico, ensinam os manuais de redação, limita-se a ‘reportar’, a ‘descrever’ o ‘fato’, como se isso fosse possível sem a presença prévia de conceitos (e preconceitos) estruturadores da narrativa. Tudo se passa como se a mais simples escolha de uma palavra para ‘descrever um fato’ fosse abençoada com a marca da inocência. O problema é que, no limite, jamais há uma ‘descrição’ de um ‘fato’, mas sempre uma construção, e que, em nome de uma desejável transparência na relação entre autor e leitor, essa construção deveria ser apresentada de forma mais clara.

O déficit democrático no discurso

Há um, digamos, déficit democrático na relação autor-leitor na medida em que esse processo de construção de fatos mascara-se sob uma pretensão de objetividade e imparcialidade. Assim, para verdadeiramente ‘ler’ um texto precisamos dispor de algumas informações prévias sobre o seu próprio processo de construção. No modelo atual, o argumento e a idéia de cada texto (quando há) devem ser pescados em um pequeno mar de intuições apresentadas de modo mais ou menos aleatório. A obsessão com a apresentação de quadros, gráficos e tabelas só dificulta a vida do pescador. No lugar de idéias, números; no lugar de argumentos, estatísticas. Não que números e estatísticas não possam fazer parte de idéias e argumentos, mas o que geralmente ocorre é que são apresentados ‘no lugar de’, com uma pretensão de fornecer um argumento irrefutável. Por que se tratam, tais apresentações, de argumentos irrefutáveis?

Uma das manifestações mais problemáticas desse tipo de construção discursiva consiste em apresentar uma frase dita por alguém, extirpada do seu contexto de enunciação, como sendo o elemento mais importante para entender o sentido da fala como um todo. Falas de 30 minutos são oferecidas ao leitor em uma bandeja de duas ou três linhas. Os critérios que orientaram a escolha dessas linhas jamais são explicitados para o leitor. As distorções de significado não param por aí. Boatos, especulações e intrigas são alçados à condição de ‘fatos’ e, paradoxalmente, muitas vezes acabam mesmo ‘produzindo’ um fato onde não havia nenhum.

Indigência cultural e teórica

Some-se a isso a indigência cultural e teórica que costuma acompanhar boa parte dos autores dos textos que lemos hoje na imprensa e obtém-se um verdadeiro circo dos horrores semântico. Essa indigência implica, muitas vezes, que a construção do texto seja dirigida ‘desde fora’ do autor, ou seja, ele carrega consigo e transporta para o texto idéias que não são, verdadeiramente, aquisições (construções) suas.

Encontrar a idéia central nesse tipo de texto pode ser uma tarefa árdua e penosa. Muitas vezes, ela está no que não é dito explicitamente, exigindo, por essa razão, não uma, mas várias leituras (várias aqui tanto no sentido quantitativo quanto qualitativo).

Talvez se esteja, aqui, exigindo do jornalismo e dos jornalistas algo que seja estranho a sua própria natureza. Mas não parece totalmente absurdo pensar a necessidade de um outro tipo de texto, onde as idéias e argumentos que o estruturam sejam apresentadas de um modo mais transparente, onde a apresentação de falas e eventos não seja marcada por uma aleatoriedade que desvia o olhar da rede de intenções, conceitos e preconceitos que cercam o autor. Aplicando essa pretensão a esse próprio texto, a idéia central expressa aqui aparece na forma de um questionamento: outro jornalismo é possível? Um jornalismo onde a relação entre ‘fatos’ e conceitos seja apresentada de modo mais transparente, de preferência sob a forma argumentativa? Uma regra de ouro para esse ‘novo’ texto (que, na verdade, não tem nada de novo, mas que caminha celeremente para a extinção) seria admitir, logo de saída, que a aparentemente inocente descrição de um ‘fato’ é, desde sempre, uma construção conceitual.

Os leitores – e os próprios autores – só teriam a ganhar com a revelação dessa construção, com a sua explicitação no próprio texto. Nestes tempos, onde ‘todos somos democráticos’, não seria nada mal começar a democratizar o processo de construção textual, abrindo sua caixa preta para o público. Um dos obstáculos para enfrentar esse tema é que, nestes tempos, onde ‘tudo é mercadoria’ e onde as relações entre o autor e o texto estão também submetidas à gramática do mercado, abrir essa caixa preta implica, entre outras coisas, expor os mecanismos de alienação que rondam e estruturam a própria produção textual. Ninguém está imune aos efeitos destes mecanismos, posto que eles estão, como diria o ministro Olívio Dutra, espraiados na vida cotidiana. Eles se manifestam inclusive no trabalho daqueles que pretendem fazer algo parecido com um jornalismo crítico e que não estão livres da armadilha de simplesmente mudar a direção da ‘seta ideológica’ do texto, mantendo uma forma que, em última instância, reproduz uma lógica que pretende combater. Reconhecer tais mecanismos e desnudá-los publicamente talvez seja uma das primeiras tarefas para quem admite a relevância política e teórica destes problemas e está disposto a enfrentá-los. (Marco Weissheimer é jornalista da Agência Carta Maior)’’

 

MEMÓRIA / PAULO FRANCIS

Comunique-se

‘Há sete anos, morreu Paulo Francis’, copyright ABI in Comunique-se (www.comunique-se.com.br), 5/02/04

‘Paulo Francis nasceu Franz Paulo Trannin da Matta Heilborn a 3 de setembro de 1930 no Rio. O apelido e o personagem que se tornariam um dos mais influentes polemistas das últimas três décadas apareceram no início dos anos 50, quando era ator na companhia Teatro do Estudante criada por Paschoal Carlos Magno. Descendente de alemães e franceses, Francis nasceu em família abastada. Frequentou colégios de elite, como o Santo Inácio, de jesuítas. Só foi trabalhar aos 27 anos.

Dizia que a ferocidade que seria a marca registrada de seus textos nasceu na infância. ‘Aos 7 anos fui arrancado dos braços da minha mãe e atirado às feras de um internato na ilha de Paquetá. Atribuo todo o meu sarcasmo e agressividade a essa brutal separação’, contou ao jornalista José Castello.

Até entrar para a companhia de teatro de Paschoal Carlos Magno, que o batizou de Paulo Francis, vivia na zona sul carioca bebendo, farreando e lendo.

Levou um susto ao conhecer a miséria brasileira, na figura do flagelado nordestino, quando excursionava com o grupo no Ceará. ‘Voltei para o Rio de Janeiro certo de que era preciso fazer uma revolução social’, disse.

Nascia aí o colunista de esquerda, trotskista, adepto da idéia de que não é possível fazer a revolução socialista num só pais. Teve ídolos à esquerda e à direita:Leonel Brizola era um deles. Roberto Campos, outro.Francis renegaria a esquerda nos anos 80, mas manteve a admiração por Brizola. ‘Eu acredito na grandeza das amizades’, disse, sobre o político.

O crítico

No dia 2 de fevereiro de 1957 Francis começou a exercitar o seu estilo. Foi nesse dia que estreou como crítico de teatro na ‘Revista da Semana’, com um texto que comparava Cacilda Becker a Fernanda Montenegro e tomava o partido de Cacilda.

Até 1963, escrevia críticas para o ‘Diário de Notícias’ e ‘Última Hora’. Segundo George Moura – autor do livro ‘Paulo Francis, o Soldado Fanfarrão’, sobre as críticas teatrais de Francis -, ele foi ‘um divisor de águas’. ‘Antes dele, crítica era uma ação entre amigos’, avalia. Francis praticava uma crítica militante. Defendia a dramaturgia brasileira (Nelson Rodrigues e Dias Gomes) contra autores estrangeiros.

Não passou por nenhuma faculdade, mas fez mestrado com o crítico Eric Bentley na Universidade de Columbia, em Nova York.

O demolidor

O colunista iconoclasta que fala de tudo e de todos surgiria entre 1962 e 1964, no jornal ‘Última Hora’.

Foi na década de 60 que se tornaria um jornalista de projeção. Editou a revista ‘Senhor’, o caderno de cultura e variedade do ‘Correio da Manhã’ (o jornal de mais prestígio à época) e em 1969 seria um dos fundadores do ‘Pasquim’, tentativa de fugir à censura imposta pelo regime militar.

Entre 1969 e 1970, foi preso quatro vezes por causa do que escrevia. Ao todo, ficou oito meses encarcerado. Dizia que a prisão não o mudou em quase nada.

O personagem

A grande mudança aconteceria com a sua transferência para os Estados Unidos, em 1970, onde sobrevivia com uma bolsa da Fundação Ford e dos textos que enviava a jornais brasileiros.

A partir de 1975, quando passou a escrever na Folha, Francis se tornaria um dos principais personagens do jornalismo. Começou escrevendo sobre política internacional, a convite de Cláudio Abramo, diretor de Redação à época, e virou um fazedor de cabeças.

Sua opinião influenciava e provocava universitários e a classe média entusiasmada com a abertura política. Se Francis demolia um filme, essa opinião era repetida à exaustão. Se elogiava, também.

A idéia de que o polemista era um personagem teatral é do próprio Francis: ‘Há em mim um resíduo de saltimbanco. Gosto de uma platéia, quero mantê-la cativa, afinal vivo disso há 40 anos.’

O texto predileto desse personagem era a polêmica. Até 1990, quando deixou a Folha, polemizou com diretores de teatro, políticos, cantores e jornalistas. A partir de dezembro de 1990, sua coluna passou a ser publicada em ‘O Estado de S.Paulo’ e, desde junho de 1992, em ‘O Globo’.

O duplo

Foi na década de 80 que o colunista de esquerda começou a dar lugar ao pregador neoliberal. Os elogios a Trotski e às suas análises da Revolução Russa foram substituidos por louvores ao mercado. Troca Isaac Deutscher, biógrafo de Trotski, por Roberto Campos, a quem ironizava nos anos 60. ‘Eu era crítico de esquerda e hoje sou contra a esquerda porque ela representa a ortodoxia cultural’, afirmou.

Nessa aversão pela ortodoxia, Francis preferiu retratar a elite aos miseráveis em seus dois romances: ‘Cabeça de Papel’ (1977) e ‘Cabeça de Negro’ (1979). Abominava qualquer tentativa de romantizar a pobreza.

Deixou ao menos dois livros inéditos: escrevia uma biografia romanceada de Getúlio Vargas, já batizada de ‘O Homem que Inventou o Brasil’, e tinha concluído em 1990 um romance sobre a revolta dos estudantes franceses em 1968. Dizia não ter intenções de publicar o romance. ‘Escrever para mim é muito fácil. Mas não quero escrever um livro banal’, afirmava.

Essa tensão entre o escritor e o jornalista, entre o ensaísta que ele gostaria de ter sido e o comentarista ligeiro da Rede Globo, onde estreou em 1979, incomodava Francis nos últimos anos. Achava que sua herança teria pouca densidade cultural.

Até o rótulo de conservador, com o qual se divertiu muito, incomodava-o nos últimos meses. ‘Eu permaneço, antes de tudo, um humanista. As esquerdas inventaram um Paulo Francis que não sou eu’, disse em entrevista em agosto do ano passado.

Outra chateação da qual Francis reclamava era o processo que a Petrobrás movia contra ele na Justiça dos Estados Unidos por calúnia, injúria e difamação. Achava que a Petrobrás queria calá-lo pela via econômica – reivindicando uma alta indenização.

Casado com a jornalista Sônia Nolasco, Francis vivia cercado por livros, jornais e vídeo-lasers em seu apartamento de Nova York. Adorava gatos. Não tinha filhos. Repetia como justificativa a frase de Machado de Assis que encerra o livro ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’: ‘Não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria’.’

 

MEMÓRIA / HILDA HILST

José Aristodemo Pinotti

‘Hilda Hilst, uma anarquista pós-moderna’, copyright O Estado de S. Paulo, 7/02/04

‘Hilda rompeu com a língua portuguesa com o mesmo vigor de Guimarães Rosa e rompeu por cima, com neologismos cínicos e poéticos, foi uma poetisa maior. Ao escrever do amor disse um dia: ‘Como se te perdesse, assim te quero.’ Entendia do assunto, amou e foi amada muitas vezes, bebeu, fumou, nunca fez nada do que os médicos aconselham para uma vida sadia.

Gastou seu corpo, consumiu-se e morreu totalmente endividada mas, com um grande crédito da literatura brasileira. Estive com ela no seu último aniversário. Como sempre, era difícil descer do carro cercado por dezenas de cães vira-latas, simpáticos e barulhentos. Ao entrar, vi uma velha senhora com um xale nas costas, em frente à televisão. Beijamo-nos, ela chorava ao receber cada um dos poucos amigos que chegavam. Seu corpo alquebrado, mantinha os olhos com a mesma chama cínica, romântica e iconoclasta de sempre.

Voamos pelo passado. Ela foi a primeira artista residente da Unicamp, uma forma de tentar fazer com que o mundo acadêmico das estatísticas, da precisão e também do ‘establishment’ científico pudesse conviver com a capacidade criadora, livre e descomprometida de verdadeiros artistas. Suas conferências escandalizavam como alguns de seus livros, mas eletrizavam e, seus poemas faziam chorar e pensar.

Se é verdade que Hilda procurou a morte, em nenhum momento ela seguiu Kundera na busca da imortalidade. Tampouco as academias a buscaram para isso e, se o tivessem feito – mérito não lhe faltou -, seguramente teriam ouvido um palavrão, que na sua boca e no lampejar do seu olhar parecia sempre simpático, e um gesto obsceno para sua origem aristocrática dos Almeida Prado, tinha imagem delicada e feminina de uma mulher linda, elegante e atraente.

Sua obra completa está sendo publicada pela editora Globo. Já recebi os quatro volumes iniciais e alguns de seus livros foram traduzidos pela Editora Gallimard, para o francês. Não tenho dúvida que ela será eternizada pelo seu legado literário, pois tanto na poesia como na prosa é radical, inclusive nas experimentações gráficas. É dona de uma anarquia genérica pós-moderna na tradição de Rainer Maria Rilke, T.S. Eliot e James Joyce.

Nasceu em Jaú-SP, em 21 de abril de 1930, foi criada em Santos e formou-se em Direito nas Arcadas da USP, em 1952.

Lutou sempre, como todos os grandes pensadores, com sua dúvida agnóstica, sua imagem de Deus é expressa em um dos seus poemas mais lindos Estar sendo sem ter sido.

Finas farpas, vastas redes, porque te fazes ausente. Loucura há tantos meses e dás lugar à torpe lucidez, ao nojo do existir e do me ver morrer? Por que me atiras à desordem de ser e à futilidade do mover-se?

Ou ainda, em outro livro que segundo ela a retrata, cujo título é mais um neologismo hilstiano Amavisse onde em um outro lindo poema Odes maiores ao Pai, ela proferiu uma linda frase poética ‘E ainda que as janelas se fechem é certo que amanhece’.

Cara Hilda, nas leituras e reeleituras dos seus escritos continuaremos conversando, agora, mais do que antes.’