“A chuva começava a cair lá fora dando sinais de que o clima seco, que por tantos meses assolara a cidade, estava por terminar. Era o início da primavera, estação na qual as flores deixam o frio e o seco do inverno para trás e dão início a sua nova floração. Mas dentro daquela sala as gotas que escorriam não davam sinais de esperança. As três mulheres sentadas à mesa principal, ao fundo, não deixavam dúvidas do que estava em jogo ali. Com os olhos pesados, as bocas titubeando para soltar as palavras enquanto os dedos tentavam limpar as lágrimas escorrendo elas conclamavam sua luta: ‘Já conversei com meu grupo e lá ninguém vai sair não, só se for no caixão!’ Era o temor do despejo que chegara amargando as esperanças da tão florida estação.”
Não, não se trata da ocupação Pinheirinho. O relato é de uma reunião, presenciada por mim, que ocorreu em outubro de 2011 com organizadores e apoiadores de uma comunidade de sem-teto em Belo Horizonte chamada Dandara. O trecho faz parte do livro-reportagem Cidade de Terra: lutas de ocupações urbanas por moradia em Belo Horizonte, feito por mim e apresentado como Trabalho de Conclusão de Curso em Comunicação Social-Jornalismo na UFMG no ano passado. A emoção e desespero dos moradores diante do perigo de despejo são apenas algumas das coincidências com o recente episódio de despejo em São Paulo, e nem de longe são as que mais assustam.
Realizada em 2009 em um terreno de 315 mil m², a ocupação Dandara está localizada próxima à Toca da Raposa (da ocupação é possível ver o centro de treinamento), do time de futebol Cruzeiro, na região da Pampulha. A área faz fronteira com outros dois municípios da Região Metropolitana da capital mineira – Ribeirão das Neves e Contagem. Abrigando cerca de mil famílias, a ocupação é menor e menos populosa do que foi o já destruído Pinheirinho. Coincidência ou não, a área também pertence a uma empresa (Construtora Modelo, cujos donos amargam milhares de processos na justiça mineira) que possui uma dívida milionária com a prefeitura local, ainda que consideravelmente inferior à da Selecta, não chegando à casa dos dois milhões de reais. A construtora, contudo, alega que não pode divulgar a dívida pois ela está sendo negociada com a prefeitura na justiça.
Cidades sustentáveis
Coincidência ou não, prefeitura (essa, a principal gestora do espaço urbano e, portanto, maior responsável pela política habitacional local), estado e governo federal também não chegam a uma solução para o problema da Dandara. Enquanto o Ministério das Cidades coloca os recursos do programa Minha Casa Minha Vida à disposição, estado e município caem em imbróglios técnicos e jurídicos e simplesmente não assumem a responsabilidade de tornar a área de interesse público ou mesmo disponibilizar terrenos para as famílias (coincidência?). A postura do prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda, é ainda mais grave. O político simplesmente se recusa a qualquer diálogo com a comunidade e seus representantes, alegando interesses políticos no movimento que, de acordo com a prefeitura, seria uma afronta para com o programa habitacional do município. Até a relatora da ONU para a Moradia Adequada, Raquel Rolnik, esteve com o prefeito e pode perceber a postura do representante municipal.
Coincidência ou não, apesar de toda a discussão envolvendo a politização do processo do Pinheirinho entre PT e PSDB, em nenhum dos dois casos – Dandara e Pinheirinho –quase (ou literalmente) nada se falou sobre o Estatuto das Cidades, lei federal que regulamenta a política urbana no país. Em meio a inúmeros princípios para a gestão das cidades que não são aplicados em ambos os casos, a lei prega a gestão democrática das cidades, envolvendo diferentes setores da população na formulação de políticas urbanas, e também a cooperação entre governos e entidades privadas visando à garantia de cidades sustentáveis e que atendam ao bem-estar geral. Em outras palavras, todos os setores da sociedade deveriam participar das políticas urbanas, incluindo-se aí os sem-teto e suas associações e movimentos organizados, como ainda governo e iniciativa privada deveriam trabalhar em conjunto em prol de cidades sustentáveis. Não é necessário ser especialista em direito urbanístico para imaginar que a noção de cidades sustentáveis implica, no mínimo, garantir à população o direito à moradia digna. Basta conferir no link acima a definição de cidades sustentáveis presente no Estatuto das Cidades.
Muitas coincidências
Tampouco, quase (ou literalmente) nada se falou sobre um princípio fundamental de nossa Constituição, que é a necessidade de toda propriedade, móvel ou imóvel, rural ou urbana, atender a uma função social (confira no artigo 5? da Constituição Federal). Essa função social envolve, basicamente, submeter o acesso e o uso da propriedade ao interesse coletivo. Dessa forma, não apenas a especulação imobiliária vai contra um princípio constitucional (o que deveria ser, no mínimo penalizado pela justiça), como ainda é possível, sim, garantir a ocupações como Pinheirinho, Dandara e tantas outras pelo país afora o direito à moradia, como mostra o artigodo juiz da 3? Vara da Trabalho de Jundiaí e professor de Direito da USP, dr. Jorge Luiz Souto Maior. Em outras palavras, legitimar ocupações urbanas em terrenos ociosos não é necessariamente uma afronta ao Estado Democrático de Direito, apesar de que sai mais caro para o poder público do que se ele já estivesse planejado uma política habitacional que contemplasse, de fato, os mais necessitados.
Por fim, e talvez a mais trágica das coincidências, ambos os casos acontecem justamente na 6ª maior economia do mundo e o quinto país em extensão territorial, que prefere gastar dinheiro com grandes contingentes policiais (caso ocorra a reintegração na Dandara, estima-se que todo o efetivo do Batalhão de Choque de Minas Gerais participe da ação) do que em políticas sérias para garantir moradia digna e habitação para todos. No caso da Dandara, o mandado de reintegração de posse foi suspenso e deve ser realizada uma audiência de conciliação em abril para definir os rumos da ocupação, que já não dispõe de tantas saídas jurídicas para ficar no terreno. Resta saber se a população e a mídia deixarão passar mais uma triste coincidência, sem esquecer, é claro, dos poderes públicos federais, municipais e estaduais que, para um projeto de “país sem miséria”, estão deixando passar muitas coincidências.
***
[Mateus Coutinho é jornalista, Belo Horizonte, MG]