A presidenta Dilma Rousseff fez sua primeira visita oficial a Cuba. Na pauta da breve estadia (que durou menos de quarenta e oito horas) constavam, sobretudo, acordos econômicos entre o Brasil e a ilha caribenha. Dilma ressaltou que a população cubana sofre com o embargo comercial imposto pelos Estados Unidos e que o compromisso do Brasil é ajudar a desenvolver a economia da única nação socialista do continente americano. “O Brasil, hoje, participa aqui em Cuba de várias iniciativas que eu considero importantes. Financiamos, através de um crédito rotativo de quatrocentos milhões de dólares, a compra de alimentos no Brasil [pelo governo de Cuba]. Também uma grande contribuição é a construção do Porto de Mariel, fundamental para se criarem condições de sustentabilidade para o desenvolvimento do povo cubano”, ressaltou a presidenta. Dilma foi recebida pelo presidente Raúl Castro no Palácio da Revolução, participou da cerimônia de oferenda floral ao monumento de José Martí (mártir da independência cubana) e se reuniu como ex-presidente Fidel Castro.
Aproveitando a ida da presidenta a Cuba, a grande mídia nacional mais uma vez chamou a atenção para o desrespeito aos direitos humanos no país caribenho. Questionada pela imprensa sobre o tema, Dilma foi enfática: “Nós vamos começar a falar sobre os direitos humanos nos Estados Unidos, a respeito de uma base aqui [em Cuba] chamada Guantánamo. Não é possível fazer da política de direitos humanos só uma arma de combate político e ideológico. O mundo precisa se convencer de que é algo [direitos humanos] que todos os países têm de se responsabilizar, inclusive o nosso. Quem atira a primeira pedra, tem telhado de vidro. Nós, no Brasil, temos os nossos. Então, eu concordo em falar de direitos humanos dentro de uma perspectiva multilateral. Esse é o compromisso de todos os povos civilizados. Há, necessariamente, muitos aspectos a serem considerados. De fato, é algo que nós temos que melhorar no mundo de maneira geral. Nós não podemos achar que direitos humanos é uma pedra, que você joga só de um lado para o outro. Ela serve para nós também.”
Tema controverso em Cuba
A respeito do caso da blogueira opositora Yoani Sánchez, que aguarda o visto do governo cubano para ir ao Brasil participar do lançamento de um documentário, a presidenta disse que o Estado brasileiro concedeu seu visto para a blogueira e os demais passos não são, evidentemente, da competência de Brasília. Posteriormente, a presidenta ficou estarrecida com a pergunta de um repórter sobre as suas atitudes mais à esquerda (como a participação no Fórum Social e a própria viagem à ilha socialista). Dilma afirmou que o Brasil se relaciona com todos os países e que acredita ser importante dialogar com movimentos sociais.
Por outro lado, como sempre, a grande mídia brasileira e os políticos da oposição procuraram, de todas as formas, deslegitimar as declarações da presidenta. Durante o Jornal Nacional, William Bonner destacou que “a presidente Dilma Rousseff relativizou a importância da discussão sobre os direitos humanos na ilha comunista”.Em seu blog, Reinaldo Gonçalves, em mais uma atitude nonsense, fez questão de destacar os erros gramaticais de Dilma.“Noto que poucos dirigentes no mundo – na verdade, nenhum que eu conheça – espancam tanto a própria língua como os brasileiros. É uma coisa impressionante”, provocou o articulista da Veja. Arnaldo Jordí, deputado federal pelo PPS (nominalmente um partido socialista, mas, na prática, um partido “laranja” da direita), lamentou que “o governo brasileiro tenha deixado a garantia dos direitos individuais fora da pauta de discussões em Cuba. O deputado disse ainda que “a comunidade internacional não aceita mais a privação de direitos como a liberdade de expressão e de organização política”.
Obviamente, é falacioso negar que haja desrespeito a alguns direitos humanos por parte do governo de Havana. Apesar dos avanços sociais nas áreas de saúde e educação, as liberdades individuais ainda são um tema absolutamente controverso em Cuba (aliás, essa questão é problemática em todos os regimes que se intitulam socialistas).
“Telhado de vidro” da imprensa
Entretanto, é interessante salientar que, para a grande mídia brasileira, as violações aos direitos humanos ocorrem (curiosamente) apenas em nações não-aliadas às grandes potências globais. As carnificinas promovidas por Washington contra vários povos do planeta, os cinco prisioneiros políticos cubanos mantidos injustamente nos Estados Unidos, os maus tratos a presos políticos na Colômbia, o genocídio de palestinos promovido pelo Estado de Israel e a utilização de mão de obra semiescrava em países subdesenvolvidos por parte das empresas transacionais, por exemplo, são alguns fatos propositalmente negligenciados pela nossa imprensa. Será que, caroWilliam Bonner, somente Dilma Rousseff relativiza a questão dos direitos humanos?
Por que os grandes conglomerados do setor de comunicação, que fazem questão de denunciar a violação às liberdades individuais em Cuba, não se pronunciam com a mesma intensidade em relação às recentes políticas de extermínio promovidas pela prefeitura de São Paulo contra usuários de droga na Cracolândia e pelo governo paulista contra a população do Pinheirinho? Os pobres brasileiros não têm “direitos”, ou não são tão “humanos” como os dissidentes cubanos? O direito à habitação, prerrogativa justamente pleiteada pela população do Pinheirinho, não faz parte dos “direitos humanos”? (só para lembrar, segundo dados da ONU, praticamente não existem moradores de rua em Cuba). E o extermínio de indígenas e trabalhadores sem-terra no interior do Brasil? E os milhares de moradores de favelas (geralmente negros) vítimas da violência policial?
Nada a declarar. Parece que o “telhado de vidro” da grande imprensa brasileira continua mais vulnerável do que nunca.
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[Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas, Brasil: Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de História e Geografia em Barbacena, MG]