O imigrante africano insistia: “Existe racismo na Itália!” O repórter florentino anotava com ar de reprovação. O senegalês subia o tom: “A Itália é um país racista!” O jornalista meneava a cabeça para os lados e fazia cara de desagrado. “Como assim, racismo na Itália? Você diz que a Itália é um país racista. Por que você diz isso?”, reagia o repórter, inconformado. O africano explicava. O seu interlocutor discordava com uma ênfase de chamar a atenção. De férias em Florença, eu mesmo presenciei esse diálogo no entardecer do dia 13 de dezembro.
Poucas horas antes, um maluco fascista matara e ferira imigrantes negros na cidade. Originário de Pistoia, o escritor Gianluca Casseri abrira fogo contra senegaleses que vendiam roupas e bolsas na Praça Dalmazia. Depois de acertar quatro deles, entrou no carro e foi para o Mercado de San Lorenzo, local em que trabalham muitos imigrantes. Lá, ele atirou em mais dois africanos. No total, seis pessoas foram atingidas. Dessas, duas morreram. Em seguida, Casseri se suicidou com um tiro na garganta.
Quando souberam dos crimes, dezenas de senegaleses saíram pelas ruas da cidade para protestar e foram agredidos pela polícia na Praça da República. “Em Florença nunca havia acontecido algo assim, tão grave. A polícia reagiu, foi com um aparato pesado”, testemunhou a jornalista brasileira Kátia Lôbo Fiterman. “Os senegaleses estavam desarmados, desesperados, mas não eram violentos. Eles falam alto, gesticulam muito, são altos, fortes, e os italianos veem esse comportamento como agressivo, quando na verdade os africanos muitas vezes só estão conversando. Foi pancadaria mesmo, a polícia bateu, os africanos apanharam sem reagir”, diz ela. “E nenhum jornal deu isso.” Não é de se estranhar que não tenham dado, a julgar pela recusa acintosa daquele repórter de avaliar uma crítica que está longe de ser absurda, conhecendo-se minimamente a cultura e a história da Europa.
O repórter que não gosta de ouvir
A própria Fiterman sabe bem o que diz. Ela mora na Itália há vinte anos. Cidadã italiana com direito a voto (“E não votei no Berlusconi!”), trabalha há 12 com imigrantes na Caritas Diocesana de Florença. “Este é um momento intenso ante a comissão pelos refugiados políticos que chegam da Líbia e provenientes de muitas partes do mundo”, diz ela. “Trabalhei e estou trabalhando como uma danada, junto aos meus colegas, para ver se conseguimos convencer quem não se quer convencer, a respeito desse inviolável direito de continuar existindo.”
Anos antes, no Brasil, a jornalista produziu para o Jornal da Bahia e para o Folha Sete e colaborou com Gilberto Dimenstein na revista Sem Fronteiras, com a reportagem “Rua Madrasta”, sobre a situação dos menores no Brasil. Na Itália, escreveu artigos sobre menores imigrantes e a respeito do embargo a Cuba, entre outros temas.
Conversei com a jornalista para tentar entender o que havia acontecido naqueles dias. Para começar, ela confirmou o que o entrevistado africano tentara, sem sucesso, explicar ao repórter que não gostava de ouvir: “De modo geral, o florentino é racista. Muitas vezes a gente tentou encontrar trabalho para imigrantes, e muita gente dizia: ‘Sim, eu quero uma pessoa pra tomar conta da minha mãe, pode ser qualquer pessoa, mas não negro.’ ‘Por que negro não?’, eu perguntava. ‘Porque a pessoa tem pele escura, a gente tem medo da pele escura’.” Talvez o repórter impaciente não se lembrasse de uma das explicações para essa “paúra” toda: “Na Itália, o bicho-papão dos contos infantis é o homem negro [l’uomo nero]”, diz a brasileira.
Mídia “ajuda” a repressão
Parte dessa culpa, porém, pode ser atribuída à própria mídia, explica Fiterman. “O jornalismo italiano é bastante decadente porque os meios de comunicação, infelizmente, como nas ditaduras, estão concentrados nas mãos de pessoas com interesses econômicos internos, vedados aos estrangeiros. Isso complica a cabeça das pessoas, dos próprios jornalistas.”
Para ela, outra razão é o vale-tudo na hora de contratar. “O jornalismo na Itália não tinha a obrigatoriedade de um curso de formação, muita gente que trabalha nos meios de comunicação tem uma formação em ciências humanas, mas muitos chegaram pelo clientelismo, ‘o amigo do amigo’, e isso empobrece as redações.”
O pano de fundo para o tratamento da notícia seria político e ideológico. “Não se pode ir contra as tendências dos partidos sobre a repressão aos imigrantes. A tendência hoje é impedir o fluxo de pessoas, a costa da Itália é grande, é difícil controlar as fronteiras. A mídia ‘ajuda’ muito nesse sentido. Se um italiano atropela alguém, não é notícia. Se é um estrangeiro atropela, é notícia. No caso de um estupro ou de um homicídio normalmente não se publica o nome e o sobrenome de um acusado italiano. Se for um estrangeiro, não só se diz o nome, o sobrenome e o lugar onde nasceu, como se publica a foto dele”, lamenta.
“Acerto de contas”
O preconceito sairia das ruas para as páginas de informação. Em Florença, imigrantes são chamados por muitos pela forma pejorativa “vu comprá”. É que muitos deles, na Itália há pouco tempo, ao vender os seus produtos nas ruas não sabem como falar “vuole comprare?”[“quer comprar?”]. Assim, acabam perguntando aos transeuntes: “Vu comprá?”
Fiterman chegou a ler uma explicação com esse termo para o atentado fascista daquela tarde de inverno. “Na internet deram esse fato como um acerto de contas entre ‘vu comprá’, eles colocaram as coisas em outro plano. Um acerto de contas significa que havia alguma pendência entre aqueles imigrantes, o que não era verdade. Para quem escreve esse tipo de coisa, as pessoas que morreram não eram pessoas, mas ‘vu comprá’, elementos para se eliminar realmente.”
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[José Paulo Lanyi é jornalista e escritor]