Durante muitos anos as concessões de rádio e televisão foram usadas pelo Poder Executivo como moeda de barganha na política brasileira. O ápice dessa prática nefasta ocorreu durante a Constituinte de 1987-88, quando era ministro das Comunicações o hoje senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA) e se decidia a forma de governo (presidencialismo ou parlamentarismo) e a duração do mandato do então presidente da República, José Sarney. Pelo menos 91 parlamentares constituintes foram beneficiados com concessões de rádio ou televisão. Destes, 92,3% (84) votaram a favor do presidencialismo e 90,1% (82) votaram a favor do mandato de cinco anos para Sarney.
Uma das inovações da Constituição de 1988, como se sabe, foi exatamente estender a responsabilidade da outorga e da renovação de concessões de rádio e televisão ao Poder Legislativo (Artigo 223, § 1º). Desde então o Congresso Nacional tem, obrigatoriamente, que apreciar os atos do governo.
Além disso, desde 1995, qualquer interessado em uma concessão de rádio e televisão comercial terá que se submeter a uma habilitação inicial por meio de licitação pública nos termos da Lei 8987/95 e do Decreto 1720/95.
Os procedimentos legais relativos às concessões de rádios e televisões educativas (Lei 4117/62 e Decreto-Lei 236/67) e de rádios comunitárias (Lei 9612/98), embora não tão rígidos, também limitam o espaço de manobra do Executivo e, de qualquer maneira, estão igualmente sujeitos à apreciação do Congresso Nacional.
O objetivo dessas normas legais, obviamente, era impedir a continuidade da prática do uso das concessões de rádio e televisão como moeda de barganha política.
‘Grande fisiologismo’
O vínculo histórico entre grupos de mídia e elites políticas regionais e locais no Brasil, no entanto, fez com que a nova prerrogativa constitucional conferisse a deputados e senadores expressivo poder num campo de seu interesse direto. Abriu-se aí uma porta importante para a continuidade do coronelismo eletrônico (ver artigo ‘As bases do novo coronelismo eletrônico‘, deste OI).
Outras formas de reinventar o uso das concessões como moeda de barganha política foram surgindo ao longo do tempo. A autorização para as retransmissoras de televisão (RTVs), por exemplo. Um levantamento feito em 1997 mostrou que 268 RTVs autorizadas entre 1995 e 1997 beneficiavam diretamente políticos profissionais. E, em 2000, o Decreto 3451 conferiu ao Executivo o poder de transformar em concessionárias de televisão retransmissoras educativas que até então funcionavam com licença precária. Utilizando-se dessa ‘brecha’ legal, pelo menos 23 políticos foram diretamente beneficiados no final do governo de FHC.
O jornal O Globo traz, agora, o tema de volta em reportagem assinada pelo jornalista Bernardo de la Peña e publicada no domingo (20/11), baseada em ‘estudo’ realizado pela liderança do PFL na Câmara dos Deputados. A chamada de capa dizia ‘Concessões de TV proliferam’ e a matéria na página 4 tinha como título ‘Concessões de rádio e TV bateram recorde durante a crise na Câmara’ (ler aqui http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=356ASP002).
O corpo da matéria informa (?) que no período de 13 de setembro a 20 de outubro deste ano ‘foram dadas’ 50 concessões de radiodifusão e que esse número representa uma ‘média mensal’ superior às médias dos meses anteriores de 2005 e também de 2003 e 2004 – isto é, desde o início do atual governo. Com base nos dados apresentados, o deputado Rodrigo Maia (RJ), líder do PFL, é citado na reportagem afirmando que ‘o governo deve ter ampliado o número de concessões para garantir a base parlamentar e a retomada da presidência da Câmara dos Deputados’.
E continua:
‘O problema é que eles [o governo] assumiram e ampliaram as práticas que o PT sempre disse que não eram corretas e que faziam parte de um grande fisiologismo do governo anterior. Eles conseguem fazer o fisiologismo e ampliar o que eles dizem ter sido feito no governo anterior’.
Que deputados?
Existem sérios problemas nessa matéria tanto do ponto de vista jornalístico quanto em relação aos dados nos quais ela se baseia. Vamos por ordem.
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Primeiro: desde outubro de 1988 – data de promulgação da nova Constituição – o governo não ‘dá’ concessões de radiodifusão. As concessões devem necessariamente ser aprovadas pelo Congresso Nacional e são confirmadas por decreto legislativo assinado por seu presidente.**
Segundo: os dados utilizados pela assessoria técnica do PFL, em relação a 2005, estão incorretos. Este ano foram enviados pelo Executivo para apreciação do Congresso Nacional, até o dia 21 de novembro, 367 atos de concessões e/ou renovações. No período escolhido para o ‘estudo’ do PFL – 13 de setembro a 20 de outubro – foram remetidas 91 e não 50 atos. Por outro lado, as médias mensais revelam números superiores aos indicados: de janeiro a julho, a média é de 36,16 atos remetidos por mês; e a média de julho a novembro (até 21/11) é de 30 atos remetidos por mês.As médias mensais, portanto, não indicam alteração significativa entre o primeiro e o segundo semestre. Há, no entanto, um aumento significativo nos meses de setembro e outubro – onde está o período escolhido pelo PFL para a análise – em relação a julho e agosto de 2005 (dados disponíveis no site da Câmara dos Deputados – no menu Tipo, procurar por TVR).
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Terceiro: as datas de 13 de setembro e 20 de outubro são inteiramente arbitrárias e não indicam qualquer relação com a crise política ou com votações de interesse do governo na Câmara dos Deputados (a eleição do novo presidente da Câmara aconteceu em 28 de setembro). O surgimento de uma cópia do cheque de Sebastião Buani – referência utilizada para o início do período ‘estudado’ – aliás, não ocorre no dia 13 de setembro, mas sim no dia seguinte, 14 de setembro.**
Quarto: a insinuação feita pela matéria, a partir de declaração do líder do PFL, de que haveria uso das concessões como moeda de barganha pelo governo, para garantir a base parlamentar e a retomada da Presidência da Câmara, só pode ser comprovada com uma relação de nomes de deputados eventualmente beneficiados pelas concessões – que, reafirme-se, ainda dependem da cumplicidade dos próprios deputados, tanto nas comissões como em plenário, para sua aprovação.E mais: essa aprovação – se for o caso – configura uma ilegalidade de vez que a Constituição proíbe que deputados e senadores mantenham contrato ou exerçam cargos, função ou emprego remunerado em empresas concessionárias de serviço público (letras a. e b. do item I do Artigo 54).
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Quinto: se eles existem, quem seriam esses deputados? Só quem tem acesso aos processos – que incluem concessões e/ou renovações de emissoras de rádio e televisão comerciais, educativas e autorizações para rádios comunitárias – pode responder a essa questão. As lideranças dos partidos políticos na Câmara dos Deputados certamente podem respondê-la. Inclusive a liderança do PFL.[O pesquisador só consegue responder a essa pergunta quando, na fase final de tramitação dos atos no Congresso Nacional, tiver acesso às composições societárias das entidades beneficiadas que são publicadas no Diário do Senado Federal.]
Quem perde
O episódio revela, mais uma vez, a facilidade com que denúncias são transformadas em fatos pelo jornalismo partidário e de insinuação que se pratica hoje no Brasil (ver artigo ‘Lições do jornalismo de insinuação‘, deste OI). Não deveria o jornalista ouvir o ‘outro lado’ envolvido na questão? Não seria seu dever elementar checar as informações fornecidas pela liderança de um partido político em oposição ao atual governo? E mais importante: não deveria o jornalista ter buscado comprovar ou não as denúncias do PFL revelando os nomes (se houver) dos deputados envolvidos?
Mesmo que amanhã sejam confirmadas as denúncias agora levantadas – de que houve uso de concessões de rádio e televisão como barganha política –, a matéria de O Globo ignora a responsabilidade do Congresso Nacional na aprovação dessas concessões, não questiona os dados – errados – que lhe foram passados pela assessoria de PFL, e não faz o ‘dever de casa’ mais elementar de buscar a comprovação ou não das denúncias.
Quem mais perde com esse tipo de jornalismo é o leitor. E, claro, a já combalida credibilidade da imprensa brasileira.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: Teoria e Política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª ed., 2004)